Menina negra e a escola

Quanto mais eu penso em como começar um texto, menos opções agradáveis eu tenho. Então, começo assim. Uma espécie de supetão gentil. Sei que faltou um “olá pessoal!”. Porém, não me incomodo. Sou feita de supetões. Eles, definitivamente, não me assustam quando brotam de mim. E sim, quando são cravados em mim com lanças e pontas com veneno. O veneno do racismo. A conversa proseada de hoje é sobre cabelos e o rendimento escolar. O que uma coisa tem a ver com a outra?

Por Flor, Priscila via Guest Post  para o Portal Geledés

Imagem: Mel Yattes/Getty Images

Infelizmente, muito.

Desde pequena ouço que nasci com uma maldição. Nasci errada. Nasci linda, mas com um defeito na cabeça. E os apelidos foram tantos… São tantos! Que até montei um dicionário modesto:

Cabelo duro: Cabelo crespo.

Cabelo ruim: Cabelo crespo.

Pixaim: Cabelo crespo.

Bombril: Cabelo crespo.

Crespo (acompanhado com um tom de voz de desdém): Cabelo crespo.

“Tifuti” (escrevi a partir da audição): Cabelo crespo.

Filha do Pelé: Cabelo crespo.

Cabeça de vassoura ou vassoura de piaçava: Cabelo crespo.

Lã de carneiro: Cabelo crespo.

Casa de rato: Cabelo crespo.

Impermeável: Cabelo crespo.

Palha de milho: Cabelo crespo.

Enfim, há muitos outros apelidos. Creio que dá para se ter ideia do tipo que coisa que temos de lidar desde que nascemos. Afinal, somo lindinhas, só nascemos com um defeito: o cabelo ruim. Lá na sétima série da vida, amorzinho da sala, panelinhas, intrigas. Bastava o atrevimento de ir com o cabelo solto para voltar chorando para casa. Ninguém compreendia e sentia compaixão pela minha derrota. Eu gostava do mocinho da sala, mas ele odiava meu cabelo. Ele me odiava. Meu cabelo é a extensão do meu corpo, mas tudo o que os meninos e meninas da sala conseguiam ver era o meu cabelo. Eu era uma das melhores alunas, tinha notas e trabalhos impecáveis. Mas, desse ano em diante, as coisas começaram a mudar. Fui me reprimindo e tentando contrair minha inteligência. Toda vez que eu conseguia um Dez, era aquele sofrimento! “Olha a neguinha tirando dez!” “huuum, bananas pra ela!” E os professores? Nunca fizeram nada. Absolutamente nada. Nunca tiveram capacidade para me parabenizar. Ficavam tão chocados quanto os outros. Estava sozinha naquele mundo hostil. Eu, errada e perdida. Minha vingança era encharcar meu cabelo-maldição com químicas que eu nem fazia ideia como eram compostas. E a cada aplicação, aquela queimação no couro cabeludo, aquela agonia, dor, pescoço dolorido por causa daquela infeliz cadeira do salão. Bem, quando eu ia ao salão! Pobre, o jeito era aplicar aquelas misturas fedidas em casa. Contudo, nada que eu fizesse estava bom. “Olha a neguinha alisou a crina!” “Agora sim virou gente!” “E essa raiz esquisita heim?” “Vai ter que fazer isso sempre já que nasceu assim!”.

Todas as tentativas de me encaixar naquele mundo obscuro não funcionavam. Eu não podia ser uma delas, pois eu havia nascido errada. Quando eu passava chapinha meu cabelo não balançava. Se eu olhasse para baixo, as pontas subiam. E eles riam. Houve um dia que um menino pegou no cabelo da outra menina (branca, linda, a que todos queriam namorar) e disse olhando pra mim “Por que o seu não fica assim? O seu não cai.” Olhei para baixo e segurei o choro com tanta força que tive que fechar os olhos. Nesse dia eu não fiz nada na sala de aula. Não copiei a lição, não respondi. Só pensava em chegar ao meu quarto e dormir. E não acordar mais. Eu desejei tanto nascer de novo. Tanto. Com tanta força que não existem palavras para descrever. Era uma vontade de ter cabelo longo e que balançasse. Cabelo que todos dissessem “Olha, que lindo!”. Queria ser a menina para que todos olhassem no recreio.

A escola nunca foi agradável comigo. Na oitava série eu e mais três alunos éramos os únicos negros em uma sala de quarenta e cinco alunos. Eu era a única que não tinha dinheiro para fazer tratamentos com químicas mais fortes. Ou seja, o cabelo delas descia. E o menino negro, raspava o cabelo. Ainda sim, nas brincadeiras de mau gosto TINHAM que evidenciar sua cor com a finalidade de humilhar. A cor negra servia como xingamento. E os professores, incluindo negros, não falavam nada. Sempre tive essa sensação de que professores são surdos para determinadas questões. Porém, além de surdos, são mudos e cegos. Os meus foram. Sempre. E é para eles que escrevo. (Para ser justa, apenas uma professora conversou comigo sobre negritude, Sandra Romualdo. Obrigada, nunca esqueci suas palavras) Sei que se algum, pelo menos um, tivesse me defendido algum dia dos apelidos, eu teria uma lembrança de garra para me inspirar. Ao olhar para o passado na escola, tenho lembranças tristes. Em dois estados diferentes, a Bahia (o estado “mais negro do país”) e São Paulo. Duas realidades e sentenças semelhantes.

Tinha medo de ser a melhor, pois a cada vez que eu me destacava não era por mérito. Era porque eu fiz macumba, dei sorte, colei de alguém, era a queridinha da professora (que ainda assim não me defendia nem aconselhava) ou, citando uma tela que pintei em casa e levei para a professora ver, “Não foi você quem fez.”. Sim, ela disse isso. Os alunos negros precisam ter um incentivo mais intenso, precisam ser encorajados a acreditar que podem e que sabem. Eu sempre soube que eu podia, mas não tinha com quem compartilhar isso. Além de ser filha única, meus pais são semianalfabetos e eu não sabia como debater assuntos da escola. Aprendi a calar-me. Calar-me foi um aprendizado difícil. E seus destroços ainda pesam em minhas costas.

Hoje, quase completando 20 anos, sinto que fiz bem de parar de lutar contra minha natureza. Cortei meu cabelo, tão curtinho… Com tanto medo… Com tanto orgulho. Um misto de reticências adolescentes com certezas adultas. Acompanhar seu crescimento é como ver um bebê se desenvolver. A cada dia eu aprendo algo com meu cabelo. Estou perdendo o medo de mostrar minha inteligência e meu talento. Desenvolvendo, escrevendo, tocando teclado. Sei que ele tem necessidades diferentes de outros cabelos e isso é o que o torna lindo. Original. Belo com suas formas e texturas. Belo com tudo o que eu posso inventar com ele: tranças, twists, bantus, moicanos e acessórios que posso usar. Ou, num dia tranquilo e gentil, deixa-lo sem nada. Sem nada e com tudo. Toda a minha identidade impressa aqui na minha cabeça. E hoje, eu sei que não nasci com maldição alguma. Eu nasci em um mundo com malditos.

É diferente. É completamente diferente.

Flor, Priscila [19 anos, estudante de Filosofia, dona de cabelo crespo e escritora]

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

 

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