‘Meu filho vivia sendo humilhado’: caso Dandara expõe tragédia de viver e morrer travesti no Brasil

 A trágica morte da cearense Dandara dos Santos, 42 anos, espancada em plena rua de Fortaleza no último dia 15 de fevereiro e morta a tiros, trouxe à tona mais uma vez a situação de vulnerabilidade enfrentada por travestis em um país onde, segundo ONGs, as autoridades têm se mostrado ausentes nos casos de homofobia.

Por Thays Lavor Do BBC

O crime brutal foi filmado, mostrando a travesti sentada ensanguentada no chão, recebendo pauladas e chutes desferidos, entre xingamentos, por pelo menos quatro homens. O vídeo viralizou, com dezenas de milhares de compartilhamentos no YouTube.

Em 2016, 144 travestis e transexuais foram assassinadas no país, segundo Grupo Gay da Bahia. Neste ano, que está apenas no seu terceiro mês, já são 23.

Para repudiar a violência contra Dandara e cobrar respostas efetivas do Estado no combate à homofobia no Ceará, grupos LGBT convocaram para esta sexta o ato “Contra a Barbárie Transfóbica” em frente ao Palácio Abolição, sede do Governo Estadual em Fortaleza.

Segundo vizinhos e pessoas que a conheciam, Dandara distribuía sorrisos por onde passava e ganhava a vida vendendo roupas usadas, além de ajudar a mãe nas atividades domésticas.

“Ela acordava logo cedinho, às 5h já estava de pé e às 6h o café já estava na mesa. Meu filho era querido por onde passava. Todo mundo aqui na rua brincava com ele, os garis, as meninas da padaria, todo mundo”, conta a mãe, Francisca Ferreira de Vasconcelos, 74 anos.

Embora a Polícia Militar do Ceará já tenha prendido sete envolvidos no crime, a atuação da PM-CE foi criticada pela demora em agir. As prisões só foram feitas dois dias após a divulgação do vídeo e 18 dias após a morte de Dandara.

A família chora não só pela perda do ente querido, mas também por Dandara ter sido vítima de intolerância.

“Meu filho (Dandara) não tinha inimigos, ele foi morto por preconceito. Por ser travesti, ele vivia sendo humilhado. Agora eu pergunto, qual o problema de ser assim, me diga?”, indaga a mãe.

Para ONGs que trabalham com a população LGBT, muitos casos de assassinatos de travestis ou transexuais motivadas por ódio e preconceito permanecem impunes.

Segundo o Grupo Gay da Bahia, eles formam o segundo grupo mais atingido entre vítimas fatais de ataques homofóbicos em 2016. Dos 343 assassinatos de pessoas LGBTS, 173 eram gays (50%), 144 (42%) trans (travestis e transexuais), 10 lésbicas (3%), 4 bissexuais (1%), além de 12 heterossexuais também em crimes homofóbicos – eram amantes de transexuais, chamados “T-lovers”.

Números em falta

É impossível saber quantos transexuais e travestis foram mortos no país, em busca feita nos dados das secretarias de segurança pública. Os Boletins de Ocorrência não geram indicadores baseados na identidade de gênero e orientação sexual.

O nome de Dandara, por exemplo, consta no relatório diário de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS) como Antônio Cleilson Ferreira Vasconcelos, seu nome de registro de nascimento. No espaço destinado ao tipo de arma utilizada no crime, está escrito apenas “outros”.

Para o Grupo de Resistência Asa Branca (Grab), com sede em Fortaleza, a falta de estatísticas oficiais seria uma prova da ausência do governo na luta contra a homofobia.

“Se não existem dados, é porque não existimos para eles, somos ignorados. No entanto, existe uma série de assassinatos, ataques coletivos a travestis, transexuais, gays e lésbicas, que culminam em crimes cruéis, que em sua maioria tem características que demonstram um percurso de tortura, até a execução”, afirma Dário Bezerra, representante do grupo.

Para o professor e pesquisador do Núcleo de Políticas de Gênero e Sexualidade (NPGS) da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), Carlos Eduardo Bezerra, a ausência da discussão sobre gênero e direitos humanos contribui para esse tipo de violência.

“Nada justifica estes crimes. Mas a ausência de políticas públicas efetivas (educação, saúde, emprego, lazer) voltadas para garantir a dignidade e a proteção de pessoas LGBT, sobretudo aquelas mais vulneráveis; a ausência da discussão sobre direitos humanos, gênero e identidade de gênero em escolas e espaços de formação; o avanço do discurso fundamentalista, contribuem para estes tipos de crimes”, analisa o pesquisador.

Omissão

O irmão de Dandara, Ricardo Vasconcelos, 39 anos, aponta não só o preconceito e a intolerância como causa da morte de Dandara, mas também a morosidade da polícia em intervir na ação dos assassinos. Ele conta que ligações foram feitas ao número de emergência 190 durante o espancamento de sua irmã, entretanto, a PM-CE só chegou ao local após o óbito.

“Vamos entrar com uma ação contra o Estado, eles foram omissos e essa omissão matou meu irmão. A gente tem provas, o pessoal do bairro onde ele morreu falou que ligou pro 190 e a polícia só chegou na hora de isolar o corpo, e acho que é porque disseram que iam queimá-lo se a PM não chegasse”, diz Ricardo.

O Secretário de Segurança Pública do Ceará, André Costa, disse que a viatura que estava mais próxima do local não foi encaminhada por estar atendendo a uma ocorrência. Mas, após uma segunda ligação, outra viatura foi direcionada ao local.

“Na realidade, o que temos é que a demanda é grande para as viaturas que estão nas ruas. Mas nós estamos trabalhando para colocar mais viaturas nas ruas”, explicou Costa.

Questionada sobre uma possível omissão da PM-CE em relação ao massacre de Dandara, a Defensoria Pública Geral do Estado (DPGE), por meio do Núcleo de Direitos Humanos, informou que, até o momento, nenhuma denúncia chegou à defensoria. Mas, caso tenha ocorrido alguma omissão, ela será investigada pela DPGE.

O Ministério Público do Estado (MP-CE) disse esperar que os culpados sejam prontamente processados e que respondam por suas ações.

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