Milton Nascimento lembra como o preconceito racial despertou sua consciência política

Enviado por / FonteDo O GLOBO

Em 2010, Milton Nascimento foi batizado pelos índios Guarani Kaiowá como Ava Nheyeyru Iyi Yvy Renhoi — ou Semente da Terra. Sete anos depois, o nome indígena — que, acredita-se, sintetiza a essência de quem o carrega — é dado ao show que artista apresenta hoje no Rio, no Km de Vantagens Hall.

A repetição do nome não é gratuita. No espetáculo, o cantor e compositor revê sua carreira pela perspectiva política — uma política que aparece na sua obra não necessariamente pela ótica partidária. Ao lado de canções que clamam a mobilização popular (“Credo”), remetem à resistência à ditadura militar (“Nada será como antes” e “Clube da esquina 2”) ou às passeatas pelas Diretas Já (“Coração de estudante”), há outras que se afirmam politicamente ao se identificarem, de forma ampla, com questões caras ao artista, como as lutas indígenas (”A terceira margem do rio”), a afirmação da força feminina (“Maria, Maria” e “Idolatrada”), o racismo (“Lágrimas do sul”) ou a ecologia (“O cio da terra”).

Nesta entrevista, Milton lembra como o preconceito racial sofrido na infância despertou nele a consciência política, afirma a importância da esperança frente às dificuldades do momento atual do país e anuncia que voltou a compor depois de um longo período.

Qual foi o primeiro impacto de consciência política na sua vida? Não falo apenas de política partidária (afinal sua geração presenciou o golpe de 1964 e a ditadura originada por ele), mas da noção da política do cotidiano, da consciência de que existem opressores e oprimidos?

Uma das coisas mais marcantes da minha vida aconteceu ainda durante minha primeira infância em Três Pontas, quando eu era proibido de entrar no principal clube da cidade pelo simples fato de ser negro. Isso era tão comum que quando tinha show no clube eu ficava do lado de fora ouvindo o som. Wagner Tiso, um dos maiores amigos que tenho na vida, entrava no clube e depois ia na praça nos contar o que estava acontecendo do lado de dentro. Esse foi meu primeiro impacto direto de injustiça, Eu tinha apenas 14 anos, e o Wagner, 12. Certa vez, meu pai adotivo, Seu Zino, precisou pegar um revólver pra me defender de um caso de racismo na cidade. Desde pequeno enfrentei muita coisa nesse sentido. O sentimento de indiferença apareceu muito cedo pra mim. Mas, o mesmo clube que rejeitava minha entrada quando criança quis me homenagear quando voltei do festival em 1967 (o cantor foi revelado no Festival Internacional da Canção, onde além de ficar em segundo lugar com “Travessia”, sua com Fernando Brant, ganhou o prêmio de melhor intérprete). E eu fui, mas por causa de um pedido de minha mãe, dona Lília.

A abordagem da política na sua obra passa longe do panfletário. Que política, portanto, é essa que emerge do novo show? Que causas importantes para você aparecem ali? Como elas são abordadas?

A primeira coisa é passar um sentimento de esperança. Esse é nosso principal objetivo, precisamos disso no momento atual. E o show é uma forma de passar essa mensagem diretamente através das nossas músicas.

Qual a importância de fazer um show político hoje?

As pessoas estão precisando de uma atitude de esperança. E, se a gente pode contribuir pra isso, por que não ajudar?

Como foi a definição do repertório? O que você e Danilo Nuha (que assina a concepção do espetáculo) buscavam, que critérios guiaram o show?

As músicas do show foram escolhidas para representar tudo o que eu tenho vivido: o passado, presente e futuro. É por isso que tem coisas desde meu primeiro disco, passando pelo “Milagre dos peixes” até a fase das Diretas Já. Mas ele também representa os 50 anos de “Travessia” e os 45 de “Clube da esquina”. Está tudo nesse show, que pra mim é como um sonho. E eu quero que as pessoas sonhem, cada vez mais.

E em termos de sonoridade, o que guiou seu trabalho com Wilson Lopes (diretor artístico do show)?

Wilson Lopes me acompanha há muitos anos. Tem sido meu maestro, irmão, companheiro de estrada, um grande amigo. E eu acho que tudo começa da amizade. Sem isso, a gente não consegue nem atravessar a rua. E esse show tem disso, um encontro de amigos. Uma celebração da amizade, desde a equipe técnica, os músicos, a produção até a parte artística, somos todos amigos e parceiros. É um show coletivo. A estrada é um pretexto para nos encontramos.

Como se deu sua identificação com a causa indígena, tema bastante presente em sua carreira e, especialmente, em “Semente da Terra”?

Tudo começou nos anos 1970. Eu estava em São Paulo e conheci alguns indígenas. Ali já tive uma identificação muito forte. Depois surgiu o projeto “Txai”, que virou disco em 1991, quando me encontrei no Acre com os índios da Tribo Ashninka. Depois disso, a causa indígena sempre esteve presente na minha vida. Até que fui batizado em 2010, pelos índios Guarani Kaiowá do Mato Grosso Sul. Eles, inclusive, foram a principal inspiração para este show.

Como você avalia o Brasil de hoje frente a essas causas que te interessam? O racismo, a questão indígena… O país parece estar melhorando ou piorando?

Uma das coisas mais importantes que fiz nos últimos dias foi ter aceitado o convite de Caetano para participar do show pelas Diretas Já, em Copacabana. Era muita gente boa reunida, isso já diz muito daquele domingo. Mano Brown, Criolo, Rappin’ Hood, Caetano, Gadú, Wagner Moura, entre tantos outros amigos de palco, e acho que ali conseguimos passar o recado que mais interessa no momento. E quando se trata de Brasil, não se recusa um convite de Caetano Veloso.

Tem composto? Já tem inéditas? Pensa num próximo disco?

Comecei a compor tem poucos dias, depois de um longo tempo. E posso dizer que tem coisa vindo por aí. Foi uma alegria enorme voltar a fazer música.

 

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