‘Moça, você é machista’: trans criam maior página feminista do país

Irmãos descobriram identidade de gênero ao lado de militantes em MG.
Página criada em Poços de Caldas é a maior da internet atualmente.

Por Jéssica Balbino Do G1

Com mais de 463 mil curtidas nas redes sociais até a publicação desta reportagem, a página ‘Moça, você é Machista’, criada em Poços de Caldas (MG), lançou o desafio “Campanha Pelo Dia da Mulher”, lembrando a importância da luta não apenas durante a data. Desde então, a página tem recebido fotos dos seguidores que respondem à pergunta: “Pelo quê ainda é preciso lutar?”. Na rede social, essa luta é protagonizada pelas duas pedagogas Andréa Benetti e Marília Freitas Rossi, mas ainda por dois irmãos transexuais,Victor e Erick Vasconcellos. Apesar de terem deixado para trás os nomes civis femininos, os cabelos longos e as roupas de mulher – que já eram pouco usadas – eles trouxeram consigo a vontade de buscar a igualdade entre os gêneros e incorporaram isso ao universo de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros (LGBTs). Os próprios criadores contam ao G1 suas lutas e os desafios diários para manter a página ativa e continuar militando no feminismo.

A ideia de que existem irmãos trans administrando a maior página feminista da internet, muitas vezes, é questionada na própria página, já que para alguns internautas, para não fazer sentido que seres que se sentem homens queiram lutar em prol das mulheres. Entretanto, Victor explica como o feminismo os afeta e como o movimento acontece.

“O feminismo me fez perceber o quanto a sociedade ainda é desigual em relação os gêneros. Coloco aos gêneros porque não é só uma relação de opressão de homem para mulher, mas pessoas trans também sofrem opressão da sociedade cisnormativa (expressão usada para classificar os gêneros apenas como feminino e masculino), por exemplo, nós ainda não temos uma discussão sobre transexualidade. As pessoas ficam invíveis. O feminismo me ajudou a me desconstruir também enquanto homem. Não preciso ter atitudes machiustas e homofóbicas para ser ‘mais homens’, até porque esse conceito não existe e a questão primordial do feminismo para mim foi a ideia de que sexo biológico e gênero não são as mesmas coisas, eu não preciso ter um pênis para ser homem e uma mulher não precisa ter uma vagina para ser mulher, essa quebra com o determinismo biológico explica muita coisa não só para transgêneros como também para pessoas cis, de que não existe um determinismo e um papel já pré-estabelecido por ser mulher ou homem. Essas coisas são apenas construções sociai,  históricas e culturais”, explanou.

Como tudo começou
De Muzambinho (MG), formado em pedagogia, Victor Vasconcellos, de 25 anos, nasceu Vitória e foi só depois de adulto que iniciou a transição – abandonando o nome civil, deixando de lado o corte de cabelo feminino, procurando médicos e tratamentos para assumir-se como homem. No processo, o irmão gêmeo, Erick Vasconcellos também se assumiu como transexual e ambos enfrentaram juntos a mudança.

Segundo o psiquiatra Álvaro Deon, a transexualidade é quando a pessoa de um sexo se vê e se percebe como pertencente a outro. “Num exemplo bem didático é quando o menino se sente como menina. É como se fosse uma mentalidade invertida, mas é diferente da bissexualidade. O transexual não sente apenas desejo por pessoas do mesmo sexo ou do sexo oposto, ele pertence a um sexo, mas se identifica como outro”, explicou.

Victor Vasconcellos, um dos criadores da página (Foto: Arquivo Pessoal/ Victor Vasconcellos)
Victor Vasconcellos, um dos criadores da página
(Foto: Arquivo Pessoal/ Victor Vasconcellos)

O cruzamento de caminhos e a criação da página
“Com quatro anos mais ou menos eu já tinha algumas experiências de falar que me sentia como homem e meus pais negavam isso. Na pré-adolescência, quando surgiram e ficaram mais evidentes as características femininas, foi um momento ruim, pois eu passei a ter vergonha dos seios e de outras características. Em torno dos 16 anos, comecei a pensar que era lésbica, mas também foi uma fase conturbada, porque eu não me sentia assim”, revelou Victor.

Mas foi a partir de quando se reconheceu como homem,  que Victor conheceu Andrea Benetti e juntos, inspirados na página ‘Moça, seu namorado é machista!’, resolveram criar uma própria, contestando o machismo existente na própria mulher, que de acordo com eles, muitas vezes reproduz o comportamento opressor do gênero oposto.

“Eu conheci o Victor e ele estava justamente na fase de transição e nós começamos a conversar muito e resolvemos criar a página, reforçando a ideia de que a mulher precisava ser menos machista consigo mesma. Em pouco tempo, ela cresceu. Acho que o que a levou fazer sucesso foram as postagens curtas e rápidas”, disse Andrea.

O crescimento e a queda da página
Em menos de uma semana, a página ganhou 50 mil seguidores. Meses depois, com a chegada da pedagoga Marília Freitas Rossi, que entrou também como moderadora de conteúdo, já alcançava 70 mil pessoas. No entanto, nem sempre foi assim, e as autoafirmações feministas, questionando as opressões masculinas e os padrões impostos, causaram revolta no ambiente virtual.

“Um grupo se reuniu e resolveu fazer um ataque para derrubar as 10 maiores páginas do Facebook na época. Por um lado, ficamos felizes, pois estávamos entre as 10 mais. No entanto, começamos a sofrer ataques misóginos (ataques machistas radicais)”, disse Marília.

Andrea Benetti e Marília Freitas Rossi, feministas em Poços (MG). (Foto: Jéssica Balbino/ G1)
Andrea Benetti e Marília Freitas Rossi, feministas em Poços (MG). (Foto: Jéssica Balbino/ G1)

Com isso, a página chegou a ficar fora do ar por dois meses e a integrante Andrea chegou a ser ameaçada em seu perfil pessoal, além de ter tido o perfil do filho e do marido invadidos.

“Eu era atacada com ameaças de estupro, meu marido com frases e comportamentos racistas. Acho que me encontraram com mais facilidade porque eu tinha uma exposição maior, já que gravei alguns vídeos e colocamos no nosso canal do Youtube. Eu tive que ficar um tempo afastada da internet, mas nunca da militância”, lembrou Andrea.

Acreditamos em um feminismo que luta pela igualdade de gênero. Somos muito questionadas por termos meninos na página, mas também queremos dialogar com o público LGBT e lutamos pela igualdade de gênero, por quê não?”
Marília Freitas Rossi
pedagoga

Contudo, as coisas ruins e a queda da página não derrubaram a popularidade. Tanto que os integrantes foram surpreendidos por mensagens positivas, como algumas da cartunista Laerte, que há alguns anos assumiu a transexualidade e também da ex-candidata à presidência Luciana Genro, que gravou um vídeo elogiando o trabalho feito.

“Acreditamos em um feminismo que luta pela igualdade de gênero. Somos muito questionadas por termos meninos na página, mas também queremos dialogar com o público LGBT e lutamos pela igualdade de gênero, por quê não?”, pontuou Marília.

Experiências pessoas
A história de vida dos irmãos Victor e Erick não só se confundem com a da página ‘Moça, Você é Machista’ e impulsionam a luta individual e coletiva, como também já inspiraram o documentário “ Transgêneros”, onde ambos relatam experiências pessoais.

“Eu me descobri a partir do Victor, meu irmão gêmeo né, que me ajudou muito nesse processo, porque ele se descobriu primeiro e a partir disso eu fui me descobrindo, me sentindo afim com isso e me encontrei nessa categoria de transexual. Achei bem legal a gente ser gêmeo, porque um dá apoio para o outro”, revelou Erick em depoimento ao documentário.

Ainda de acordo com ele, uma lembrança que o marca bastante é sobre a infância. “Eu lembro que saí com meus pais e tive que colocar vestido, toda aquela roupa feminina e me senti muito mal durante todo o tempo que estava fora de casa. Quando cheguei, a primeira coisa que fiz foi tirar a roupa e colocar a que eu estava habituado a usar em casa”, lembrou.

 

Irmãos, quando crianças, ainda como meninas, em Muzambinho (MG). (Foto: Arquivo Pessoal)
Irmãos, quando crianças, ainda como meninas,
em Muzambinho (MG). (Foto: Arquivo Pessoal)

Já para Victor, as experiências pessoais e o apoio familiar o ajudaram a ter a formação de hoje. “Eu tive a primeira conversa com a minha mãe. Foi chocante, mas a reação dela foi melhor do que eu esperava. Ela contou para parte da família e para o meu pai. Eu ainda não tive uma conversa com ele sobre isso”, mencionou.

Os irmãos, há meses, realizam tratamentos psicológicos e tomam medicamentos com testosteronas e acompanhamento médico, antes de estarem aptos para realizarem cirurgias como a mudança de sexo. Erick já consegue usar o nome social no trabalho, onde atua como biólogo.

Já Victor ainda luta para conseguir o nome e revela que em Minas Gerais ainda não existe uma lei que regulamente o processo. “Não existe legislação para o uso do nome social. A gente fica sempre na mão do juiz e depende da boa vontade das pessoas”, disse.

Ainda de acordo com ele, com ou sem nome social, com a identidade consolidada como trans, tudo fica mais fácil. “Quando eu ainda achava que era lésbica, eu não ia em qualquer lugar, não entrava em qualquer bar e hoje eu passo despercebido, como um homem qualquer e não sou vítima de assédio”.

Victor, João Nery (o primeiro trans operado no Brasil) e Erick (Foto: Arquivo Pessoal)
Victor, João Nery (o primeiro trans operado no Brasil) e Erick (Foto: Arquivo Pessoal)

Transexualidade e feminismo
Para Victor, a página “Moça, você é Machista” foi fundamental para ajudar a desconstruir os estereótipos de masculinidade.  “Vejo que isso não é necessário e não me faz menos ou mais homem. Além disso, a página tem sido um lugar para colocar toda a energia de militância a favor do feminismo e de pessoas que fazem parte do grupo de gays, lésbicas, bissexuais e trans (LGBTs). Essa energia para mim é mais do que uma simples luta, é também uma questão existencial”, declarou.

Assim como para ele, a página abre portas para os outros membros. Em 2014, Andrea teve a oportunidade de ministrar um minicurso de gênero e sexualidade na PUC em Poços de Caldas, além de palestras na Universidade Federal de Alfenas (Unifei) e presença em rodas de conversa e debates em outros eventos e universidades.

“Hoje temos um reconhecimento muito bom dentro do feminismo. Somos a maior página feminista do Brasil e isso tem sido muito importante para dar visibilidade para a militância. Além disso, recebemos, pelo menos uma vez por semana, depoimentos de pessoas, na maioria mulheres, que conseguiram desconstruir o machismo que reproduziam com a ajuda da página. Ou, até mesmo nos solicitam ajuda para enfrentar o machismo que sofrem, desde casos de agressões verbais até as físicas”, pontuou Victor.

E por meio destas palestras e troca de ideias, tanto no ambiente virtual, onde diariamente as mensagens se espalham para mais de 400 mil pessoas, como presencialmente em encontros, os administradores da rede acreditam que novos conceitos podem enriquecer e reforçar o feminismo para outras pessoas.

Feminismo radical
Há, contudo, correntes do feminismo que se identificam como radicais, ou seja, não aceitam trans no movimentam e limitam a luta apenas às mulheres, que, de fato, nasceram e permaneceram assim. Tal posição é bastante difundida em páginas da internet, em fóruns e até mesmo no convívio do dia a dia, quando travestis ou transexuais são impedidos de usar determinados banheiros ou barrados em diferentes tipos de locais.

O apoio, para mim, é a capacidade de entender outras pessoas e ter empatia até mesmo ser compreender”
Victor Vasconcellos
trans e feminista

Para os administradores da página, a ideia do feminismo radical é segregadora, tanto quanto o próprio machismo. “Eu encaro como sendo um atraso para o feminismo, usar argumentos transfóbicos contra mulheres transexuais é inaceitável. Eu vejo que elas voltam para um argumento machista e não percebem, por exemplo, se elas determinam o gênero por conta da genital de uma pessoa. Elas aceitam que também são determinadas pela genital delas e isso na minha opinião é atraso”, dissertou Victor.

Questionado sobre trans frequentando banheiros femininos e masculinos ou a criação de o que seria um terceiro banheiro, Victor explana novamente sobre segregação. “A ideia de terceiro banheiro é segregadora, não me desce. Ela gira em cima de dados que até agora não existem de fato. Em pesquisa sobre possíveis ataques de mulheres trans  mulheres, ou seja, coisas infundadas. Acredito que a pessoa deve usar o banheiro de acordo com a identidade de gênero dela e não de acordo com o genital, porque se formos passar essa ideia, vamos permitir que mulheres trans e travestis continuem sofrendo violência”, completou.

Integrantes da página em debate no IMS em Poços de Caldas (MG). (Foto: Ricardo Senegal)
Integrantes da página em debate no IMS em
Poços de Caldas (MG). (Foto: Ricardo Senegal)

Contudo, para mudar, os criadores  e moderadores da página acreditam que não basta a militância, a cybermilitância ou mesmo atingir quase meio milhão de pessoas, se não houver a aceitação. Por isso, lutam diariamente e não só no 8 de março, como fazem questão de lembrar por meio do conteúdo que criam e distribuem.

“O apoio, para mim, é a capacidade de entender outras pessoas e ter empatia até mesmo ser compreender. Minha mãe nunca sabia o que era transexualidade na vida dela e buscou saber e não deixa de amar os filhos que tem por esta questão”, finalizou Victor.

 

Marília Freitas Rossi, durante protesto contra violência feminina em Poços (Foto: Jéssica Balbino/ G1)
Marília Freitas Rossi, durante protesto contra violência feminina em Poços (Foto: Jéssica Balbino/ G1)

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