Morte de menina após briga em sala de aula expõe rotina de violência e exclusão nas escolas públicas

Marta Avelhaneda Gonçalves, de 14 anos, morreu na quarta no Rio Grande do Sul; a suspeita é de que ela tenha sido estrangulada.

Marta morreu dentro da sala de aula em Cachoeirinha (Foto: Reprodução/RBS TV)

No G1

Marta Avelhaneda Gonçalves faria 15 anos em junho, e a família já começava a planejar a festa. Mas o aniversário, o sonho de cursar medicina, a vida inteira de Marta ficou pelo caminho: ela morreu na última quarta-feira após uma briga com colegas da Escola Estadual Luiz de Camões, em Cachoeirinha, na Grande Porto Alegre.

Segundo a Polícia Civil, o laudo do Instituto Médico Legal indica que a jovem sofreu estrangulamento por asfixia mecânica. Mesmo assim, ainda não estão completamente esclarecidas as circunstâncias do caso e a forma como uma briga na escola, na primeira semana de aula, se transformou em morte.

Violência, preconceito, agressão e exclusão fazem parte da rotina de escolas públicas brasileiras, mostram relatos, pesquisas e análises sobre o assunto. A necessidade de ajuda para lidar com o tema é um dos argumentos em defesa do projeto de lei 3.688, em tramitação no Congresso há 17 anos, que propõe a contratação de psicólogos e assistentes sociais para assegurar a atendimento a alunos da rede pública e apoio aos professores no ambiente escolar.

Ouvidos pela BBC Brasil, psicólogos, professores e especialistas defendem o mérito e a necessidade do projeto, mas organismos como a Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) levantam dúvidas sobre sua viabilidade financeira e operacional. A proposta foi aprovada na Câmara, passou pelo Senado e voltou à Câmara.

Clima de violência

“Não conheço esse projeto, mas vejo, infelizmente, um aumento do clima de violência nas escolas. Nossos alunos estão vindo com uma agressividade profunda, que se vira contra os colegas e os professores”, relatou à BBC Brasil a professora Mary Jane Corrêa, que conhecia Marta desde menina e foi vizinha da família em Porto Alegre.

Por seis meses, Mary Jane foi professora de Marta no colégio municipal onde a jovem estudou até se mudar para Cachoeirinha.

O delegado Leonel Baldasso disse que a polícia investiga a hipótese de a adolescente ter sofrido bullying na escola, mas ainda é cedo para afirmar com certeza. Colegas dela estavam sendo ouvidos na tarde desta sexta-feira na delegacia de Cachoeirinha.

De acordo com a professora Mary Jane, Marta era quieta e tranquila. Segundo ela, a família desconhece episódios repetidos de bullying sofridos pela garota. “Ela tinha acabado de entrar na escola! Queremos que tudo seja esclarecido”, afirmou.

A Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul mantém desde 2012 um programa de prevenção à violência nas escolas e, segundo a coordenadora Luciane Manfro, o projeto inclui desde apoio aos alunos até terapia para professores.

“Tínhamos docentes que pediam ajuda para lidar com tanto sofrimento ou lecionar em áreas violentas”, relembra a coordenadora.

 

O Luiz de Camões, onde Marta morreu, optou por não participar do projeto. “Com a tragédia, só temos a lamentar essa decisão, e vamos incluir a escola no programa”, ressalva Manfro.

Escola não pode se omitir

Doutora em Psicologia e professora da Faculdade de Educação da Unicamp, Ângela Soligo avalia que a necessidade de psicólogos nas escolas públicas vai além da tentativa de solucionar problemas pontuais e fazer atendimento individual a alunos.

Soligo foi a coordenadora científica da pesquisa “Violência e preconceitos na escola”, realizada em 2014 e 2015 por equipes de dez universidades brasileiras com alunos, pais e professores de escolas de 26 das 27 unidades da federação.

Segundo ela, os resultados, ainda não divulgados, mostram que a violência mais comum é a verbal, com xingamentos e apelidos. São também recorrentes os casos de violência física, isolamento e exclusão.

“Um componente muito importante dessa violência é o preconceito, e aí vemos o racismo, a violência contra alunos identificados como homossexuais, contra indígenas e contra alunos mais pobres”, relata.

Se os alunos sofrem, os professores pedem apoio para lidar com o sofrimento, analisa a especialista: “Hoje se exige demais do professor, que já trabalha em condições precárias, tem salário baixo e enfrenta cobranças. É preciso também oferecer apoio a esse professor”.

“Ter psicólogo e assistente social na escola vai resolver tudo?”, questiona Soligo, e ela mesma diz que não. Entende, porém, que seria uma forma de trabalhar de modo integrado em todo o ambiente escolar, como já acontece em muitas escolas particulares.

“A escola sonha com um aluno ideal, mas tem que lidar com o aluno real e precisa acolhê-lo”, afirma ela, ex-presidente da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional.

Qual a orientação para um professor diante de situações potenciais ou reais de violência verbal ou física? Na avaliação da especialista, professor e escola não podem jamais se omitir.

“É preciso falar com a direção, o Conselho Tutelar, buscar aliviar o sofrimento daquele aluno e encaminhar o caso para providências cabíveis”, afirma.

Em sua análise, tudo o que acontece no ambiente escolar é responsabilidade da escola. No caso específico da morte de Marta, acrescenta, “é muito difícil que ninguém tenha visto nada”.

Por fim, Soligo destaca a necessidade de a escola discutir o assunto com seus estudantes, pois a pior atitude é fazer de conta que nada aconteceu. “Isso agora é mais importante que qualquer conteúdo”, afirma.

Com a morte de Marta, as aulas no Luiz de Camões foram suspensas e serão retomadas segunda-feira.

Mudar o foco punitivo

A Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) vê com cautela o projeto que prevê a contratação de psicólogos e assistentes sociais na rede pública.

O presidente da entidade, Alessio Costa Lima, disse que a versão inicial, que previa a contratação em cada estabelecimento, era inviável financeira e operacionalmente.

Além disso, segundo ele, parte dos municípios brasileiros ainda não consegue pagar aos docentes o piso nacional do magistério (R$ 2.298,80), e a contratação de psicólogos e assistentes sociais por valor possivelmente superior criaria conflito com os professores, figuras centrais na escola.

A Undime não calculou o impacto financeiro da iniciativa, mas defende que a contratação aconteça por intermédio das Secretarias de Saúde e Assistência Social e que o atendimento seja realizado em parceria com as escolas.

Segundo o relator do projeto na CCJ da Câmara, deputado Glauber Braga (PSOL-RJ), esses dois pontos já constam da proposta modificada, que aguarda agora a votação em plenário.

“O projeto é fundamental, pois tira o foco punitivo e traz a psicologia para dentro da escola. A contratação pode ocorrer por outros órgãos públicos, mas o profissional fica à disposição da rede de ensino”, afirma.

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