Mulher e linguagem em Carolina Maria de Jesus

A escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) vem sendo redescoberta pelo público há algum tempo, mas o grande marco de sua retomada foram as comemorações de seu centenário, em 2014. Com uma história de vida que chama a atenção por associar uma existência material oprimida – mulher negra e pobre, moradora de favela e catadora de lixo – a um impulso que a levava a escrever quando tinha fome, Carolina impressiona por sua lucidez crítica.

Por  Eliane Conceição da Silva e Elzira Divina Perpétua, do Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco

Abaixo reproduzimos dois trechos do livro Memorialismo e resistência: estudos sobre Carolina Maria de Jesus (Paco Editorial). A obra reúne estudos sobre diversos aspectos da produção artística da escritora feitas por 14 pesquisadoras e 3 pesquisadores. O livro será lançado no dia 22 de outubro, em Belo Horizonte (mais informações AQUI)

Separamos dois trechos que nos ajudam a entender melhor a obra de Carolina Maria de Jesus. O primeiro trecho é assinado pela doutoranda em Ciências Sociais (Unesp) Eliane da Conceição Silva e o segundo, pela professora Elzira Divina Perpétua (UFPOP). O livro é organizado por Aline Arruda, Iara Barroca, Luana Tolentino e Maria Inês Marreco.

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Ao longo da história, a mulher, socialmente construída como o outro, é definida ora por um discurso misógino, ora filógeno. A misoginia dos discursos se apresenta através das qualificações que associam a mulher à maldade e à perversidade inatas, indo da mulher pecadora à bruxa diabólica, cujas figuras representativas são Eva e Lucrécia. O discurso filógeno, por sua vez, descreve a mulher como a santa, a mãe virtuosa, cujas figuras associadas são Maria e Tais. Esses discursos criaram e ajudaram a manter alguns dos principais estereótipos atribuídos à mulher, mas, embora sejam diametralmente opostos no valor qualitativo atribuído a ela, estes discursos têm em comum o controle da mulher, que seja má ou virtuosa, é sempre definida de fora para dentro e a heteronomia, fundamental para esse controle, acaba por incorporar os modelos e reproduzi-los.

Carolina Maria de Jesus transita entre estes dois discursos, ora descrevendo as mulheres da favela como más, perversas, e muitas vezes generalizando tais definições para o coletivo “as mulheres são assim”; ora descrevendo o ideal de boa mãe, boa esposa, admoestando aquelas que não se adequassem a esse modelo de mulher. Assim, a autora escreve: “Nas favelas, os homens são mais tolerantes, mais delicados. As bagunceiras são as mulheres. As intrigas delas é igual à de Carlos Lacerda que irrita os nervos” (Jesus, 1960, p. 22) [nota 1]. Nesse trecho, a imagem que Carolina apresenta das mulheres da favela como piores que os homens, até porque ela passa o dia fora, o convívio com estas mulheres se restringe ao momento de pegar a água, as relações conflituosas entre os filhos e as esporádicas conversas, mas, acima de tudo, o que se percebe dessa relação é a antipatia que ela, como mãe solteira, mas autossuficiente e alfabetizada, gera, sendo definida como arrogante. Esses fatores explicariam o julgamento mais condescendente para com os homens e mais rigoroso em relação às mulheres. Entretanto, esses homens que ela define como tolerantes e delicados são os mesmos que espancam suas esposas, abusam do álcool e brigam entre si. O que torna sua posição, no mínimo, contraditória, não fosse a influência marcante do estereótipo atribuído às mulheres que, para se fazer valer, tem no homem o elemento neutro, aquele que está acima do bem de do mal, apesar de fatos concretos provarem o contrário.

[…]

Outro aspecto importante a ressaltar é que a escrita caroliniana inaugura um tipo de literatura que hoje se define como literatura marginal, tanto por sua produção ser feita por aqueles que historicamente não tiveram voz, os marginalizados da periferia, das prisões etc., cujos exemplos já conhecidos da grande mídia são Paulo Lins, com seuCidade de Deus e Ferréz, com Capão Pecado, quanto por sua produção ser feita fora do campo literário propriamente dito, criando um novo espaço de produção cultural, mas capaz de tecer suas redes que proliferam nas diversos saraus e encontros literários que ocorrem em diferentes pontos da periferia (pensando especificamente na cidade de São Paulo) e que, na medida do possível, permite fazer e circular essa produção cultural.
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O que motivava Carolina a escrever era, segundo afirma, um estado de “fusão mental”, uma manifestação involuntária que a inquietava mentalmente e só arrefecia com a escrita: “Quando escrevia tinha a impressão que o meu cérebro normalizava-se” (Jesus, 1994, p. 186) [nota 2]. Antes de seus textos terem-lhe valido a denominação de poetisa e de ela ter recebido explicações sobre essa palavra, atribuía a vontade irresistível de escrever a uma patologia: “Eu pensava que as coisas que brotavam na minha cabeça eram provenientes dos meus dentes. Procurei um dentista, solicitando um exame, êle não quis extraí-los” (Jesus, 1994, p. 188). Mesmo depois de se tranquilizar com relação ao diagnóstico, Carolina continua a manifestar inquietação ante a vontade imperiosa de escrever, que fugia ao seu controle. Essa vontade é denominada aleatoriamente de “ideias literárias”, “ideias poéticas” ou “pensamento poético”, dos quais ela vai falar insistentemente em todos os cadernos, seja para registrar a presença do incômodo, para manifestar tranquilidade com sua ausência, ou para tentar relacioná-lo à situação de miséria que enfrentava.

O desejo de escrever, às vezes, irrompe de tal forma que ela inverte o preceito segundo o qual o poema é fruto do trabalho árduo, da transpiração, mais do que da inspiração. Entretanto, quando as chamadas “ideias literárias” requerem o labor próprio ao trabalho da escrita, mas a este anexa-se a miserável situação em que vive, o impulso de escrever pode ou não ser controlado por ela, como demonstram os registros dessas contradições:

7 de agosto de 1958:
Sem dormir, e sem comer, quem é que pode ter disposição?
Começei escrever. Mas quem e que escreve sem ter o que
comêr? As ideias literarias zarpa-se desvaneçe igual a fuma-
ça impelida pela viração
E eu pensava em frango, carne assada, e bôlo.

18 de dezembro de 1959:
Quando eu fico sem comêr, Tenho tantos versos que fico qua-
se louca. Com o estomago cheio O serebro, é semi-nórmal.
Eu chorei porque… as ideias poeticas em exesso é horrível.

As “ideias literárias” de Carolina transformam-na, a seu ver, numa pessoa singular e manifestam-se unicamente na escrita. Similar às “ideias literárias” é o chamado “português clássico”, ou simplesmente “o clássico”, entendido em suas explicações como o português escorreito, mas que vai manifestar-se, segundo a autora, no plano oral: é a linguagem com que ela se comunica no dia a dia o outro fator que a diferencia dos demais:

5 de junho de 1958:
Varias pessôas procura-me para falar-me. Diz que eu falo
adimiravelmente bem o português. Não erro no falar. 

O vocabulário adotado será uma das causas do estranhamento que ela provoca em todos. Isso ocorre em virtude de seus cuidados com a língua não condizerem com sua classe social, com seu aspecto miserável nem com seu grau de escolaridade:

20 de julho de 1958:
Eu sempre achei o analfabeto insociavel. E êles não me
aprécia por eu dizer o classico e êles não compreendem e
diz: a linguagem da Carólina so ela é quem entende. E pas-
sa a odiar-me.

29 de julho de 1958:
Varias pessôas que me ouve ficam em duvida e comentam
onde é que ja se viu uma pessôa falar o classico, e andar
assim será louca?

1 de agosto de 1958:
sai da presença do nordestino que estava horrorisado com a
minha gramatica, e o meu aspéto mendigo.

5 de maio de 1960:
fui falar com o escritor paulo Dantas, […] ficamos conver-
sando perguntou-me qual foi o primeiro Dicionário que
eu li?
– Dicionário prosodico de joão De Deus.
Ele disse-me que eu tenho vocabulário.

É visível o esforço de Carolina em aproximar sua linguagem cotidiana, oral ou escrita, daquela que ela avaliava não apenas como superior à dos favelados, mas como “clássica”. Essa linguagem é, no seu entender, a que lhe possibilitaria atingir os gêneros elevados e, assim, a elevação social a que aspira e que lhe proporcionaria o meio de projetar-se, metafórica e literalmente, para fora da miséria que a rodeia. Tendo como meta os gêneros elevados, a escritora não reconhece a linguagem cotidiana como forma artística de expressão. Assim, ela distingue na linguagem duas manifestações antagônicas e estereotipadas: a clássica e a pornográfica. A primeira, no seu entender, seria a dos poemas; a segunda, a do diário. Ao almejar expressar-se pela primeira, acaba por produzir um estereótipo do clássico, e até de si mesma, enquanto tece, na escrita do cotidiano, considerações metalinguísticas sobre sua produção.

O artifício de Carolina desvenda-se espontaneamente aos olhos do leitor. Assim, vemos que a escritora tem consciência de que a linguagem que utiliza na escrita do diário não é a idealizada por ela, segundo o juízo de valor que adota, mas a que corresponde aos dos editores. Ela tenta camuflar a discordância, apresentando o registro popular como uma opção voluntária que visa a facilitar a leitura de sua obra.

[nota 1]
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Círculo do Livro, 1960.

[nota 2]
JESUS, Carolina Maria de. Minha vida… Prólogo. In: LEVINE, Robert M.; MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994. p.171-189.

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