Mulheres e estupradores; os reais e os simbólicos

A coluna de sábado de Hélio Schwartsman na Folha De S. Paulo fala de uma interessante teoria. É a do economista e cientista social americano Mancur Olson que, em seu último livro, de 2000, tratou da evolução do banditismo como molde da nossa sociedade.

Por  Alex Antunes, do Yahoo 

Diz Schwartsman: “Olson (…) traça uma distinção bacana entre bandidos itinerantes e estacionários. Ambos querem tirar o nosso dinheiro, mas são animais distintos tanto pelos incentivos que os movem como pelos métodos de que se valem. O ladrão itinerante, típico de situações de anarquia, se limita a tomar aquilo que deseja e saltar para o próximo povoado. Para tornar suas ameaças mais críveis e seu nome mais temido, não hesita em matar e destruir. Já o bandido estacionário é, como o nome diz, um ladrão que não circula muito. Está sempre roubando as mesmas pessoas repetidas vezes. Se for apenas medianamente inteligente, ele vai concluir que ficará mais rico se permitir que suas vítimas habituais sobrevivam e experimentem algum sucesso econômico”.

A novidade é que nossa forma de governo derivaria do bandido estacionário: “(esse), que é um outro nome para tirano, acabará aos poucos promovendo atividades típicas de governo, como oferecer proteção contra os bandidos itinerantes e favorecer a produção, o comércio etc. Segundo Olson, é na transição dos bandidos itinerantes para os estacionários que encontramos as sementes da civilização que, em etapas posteriores, desembocarão na democracia institucional”.

Olson não acreditava no puro domínio das ideias; pensava na sociedade sendo moldada por uma dinâmica entre a economia e a política, com seus grupos de pressão. E o que isso tem a ver com o momento político do Brasil? Schwartsman lança o insight de que estamos regredindo aos bandidos itinerantes, mas não detalha. Eu chamo a atenção para uso de que o bandido itinerante fazia da criação de um clima de horror. Como sabemos, uma das formas de aterrorizar populações é massacrar e abusar mulheres e crianças – e isso até os dias atuais. Na guerra da Bósnia, há 20 anos, as milícias paramilitares sérvias, recrutadas por Slobodan Milosevic entre hooligans e bandidos, não apenas praticavam o assassinato e o estupro sistemático, como há relatos de que bebês chegaram a ser queimados vivos em churrasqueiras, em público.

Os nossos “bandidos itinerantes” não chegam a isso, mas é sintomática a simbologia das votações que Eduardo Cunha tem incentivado na câmara dos deputados. Elas tratam de fragilizar mais ainda populações que tem sido alvo de massacres, como os indígenas (PEC 125, proposta de emenda à constituição que pretende dar ao próprio congresso a palavra final na demarcação de terras indígenas, quilombolas e áreas de conservação); de dificultar o aborto em caso de estupro (PL 5069, projeto de lei que cria entraves para o aborto legal, e inclusive para o acesso à pílula do dia seguinte); de facilitar o acesso a armas de fogo (PL 3722, projeto de lei que revoga o Estatuto do Desarmamento, diminui a idade para compra de armas e autoriza a posse e o  porte mesmo para quem responde a inquérito policial ou inquérito criminal). Toda uma política orientada pró-abuso e destruição.

Poderíamos atribuir essas iniciativas do presidente da câmara, ameaçado por um processo de cassação, à: a) necessidade de fazer média com as bancadas conservadoras, com vistas a apoios no Conselho de Ética, ou mesmo b) tática de criar um ruído diversionista no ambiente político. No entanto, a forte simbologia dessas medidas parece apontar mesmo para um retorno à tática do terror dos bandidos itinerantes. Na verdade, vivemos um paradoxo entre a liturgia do poder, com suas formalidades, e a explosão de demonstrações de força bruta. Esse paradoxo se expressou de forma involuntariamente humorística no bate-boca entre o líder dos democratas no senado, Ronaldo Caiado, e o ministro de Minas e Energia. Eduardo Braga proferiu: “Bandido é vossa excelência e safado é vossa excelência”, respondendo aos xingamentos de Caiado.

Na seção Opinião do Estado de S. Paulo há algumas semanas, o filósofo Roberto Romano falava deeisangelia, o precursor grego do impeachment. Um cidadão poderia abrir diretamente o processo, denunciando um governante, juiz ou cidadão privado, por má conduta, a uma das duas principais instâncias, a assembleia ou o conselho de cidadãos. Mas nossos “bandidos” e nossas “autoridades” se encontram misturados de tal forma, perdeu-se tanto a compostura pública que não há um caminho ético claro ao qual recorrer – mesmo que as más condutas estejam visíveis em todos os níveis da vida pública (ou por isso mesmo).

No meu texto anterior, O mundo está mudando debaixo de nossos narizes (para melhor e para pior), eu saudei o surgimento dos movimentos de mulheres contra Cunha, que fizeram manifestações esta semana no Rio e em São Paulo, como uma “reserva ética” contra a investida dos bandidos engravatados e suas políticas de estupro, reais ou simbólicos. Parece que, neste século, ao invés de serem o alimento das estatísticas do horror, as mulheres é que partirão para o front da guerra simbólica, em defesa da dignidade humana. E contra os bandidos do patriarcado, os itinerantes ou os estacionários.

 

Sobre o Autor 

Alex Antunes é jornalista, escritor e produtor cultural e, perguntado se era um músico frustrado, respondeu que música é a única coisa que nunca o frustrou. Foi editor das revistas Bizz e Set, e escreveu para publicações como Rolling Stone, Folha Ilustrada, Animal, General, e aquela cujo nome hoje não se ousa dizer. Tem uma visão experimental da política, uma visão política do xamanismo, e uma visão xamânica do cinema.

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