Museu de Percurso do Negro: arte e memória nas ruas de Porto Alegre

Algumas referências do Museu de Percurso do Negro devem que ser resgatadas, tendo em vista a perenidade do projeto. Assim, falar sobre o CRAB – Centro de Referência Afrobrasileiro e mestre Lua – José Alves Bitencourt são fatores condicionantes para que o Museu existisse em sua plenitude. O CRAB reuniu militantes do movimento negro, ativistas que sonhavam com melhores condições de vida da comunidade negra, seja expressando através da arte, como também de projetos sociais. Já o mestre, figura exponencial, liderança firme e forte, conduziu diversos processos que levaram a comunidade negra rio-grandense a um crescimento. O griô tinha por princípio trazer para junto do movimento pessoas com propósito de mudança e solidariedade, mas ele possuía o dom de identificar talentos e capturá-los para o meio, para o olho do furacão, conseguia agregar novas forças que representavam um avanço do movimento social negro. A partir dele muitos militantes engrossaram as fileiras do movimento negro, emprestando sua força e luta pela causa. Percebia em figuras aleatórias grande capacidade de trabalho. Ele mesmo um incansável. Tinha habilidades múltiplas de sedução e encanto com referência aos movimentos sociais. Conhecia a história de Porto Alegre como poucos. Sua agenda era invejável. Possuía a documentação do movimento negro em suas minúcias, que levava, conforme o evento, em suas bolsas de pano. Era humilde, sem ser arrogante. Muitas vezes participava de uma reunião e no final dava uma opinião que mudava os rumos traçados, tal era a sua precisão e foco. Com sua morte ficou uma lacuna significativa nos movimentos sociais do município.

Por Jeanice Ramos via Guest Post para o Portal Geledés 

Muitos esforços foram dedicados para que este quarto marco viesse a ser concretizado. A ação do Grupo de Trabalho Angola Janga se faz presente. Com uma história de muitos anos dedicados ao movimento negro e ações como a desenvolvida junto às comunidades quilombolas, visando a inclusão digital, com a participação em diversas Semanas da Consciência Negra, tanto no município, na Câmara Municipal, como no Estado; o grupo se apresenta credenciado para desenvolver este quarto marco.

A cultura de uma sociedade gira em torno de sua capacidade de transmitir valores, de promover a produção e uma certa dose de apropriação coletiva de bens culturais.

Registrado estes aspectos, passemos para o Museu de Percurso do Negro propriamente dito, que para a surpresa de muitos a cidade de Porto Alegre tem o privilégio de possuir um. A criação do Museu de Percurso do Negro é muito relevante não só do ponto de vista formal, mas principalmente porque é um espaço de interlocução de diversos segmentos da sociedade.

Não existe sede, seu acervo reúne três equipamentos urbanos, dentro de uma nova estética, já foram entregues à sociedade: o Tambor, a Pegada Africana e o Bará do Mercado. O Tambor já faz parte da história da cidade, é uma referência da cultura negra em Porto Alegre. Seu colorido amarelo com imagens brancas trouxe uma nova alegria a Praça Brigadeiro Sampaio. Sua reverberação de tambor atinge toda a comunidade portoalegrense. É a primeira obra do Museu de Percurso do Negro. O núcleo inicial desta obra veio da reunião de diferentes artistas plásticos que estavam dispersos pelo município, que constituíram um corpo de peso para a realização desta obra.

Já a Pegada Africana tem um significado de trajetória, percurso, incorporando valores africanos a temática rio-grandense. Muito apreciada por artistas locais.

Temos ainda o Bará do Mercado, localizado no Mercado Público, ponto de confluência de todos os moradores da cidade, registra o assentamento do Bará, figura da religiosidade de matriz africana.

Desde a sua criação, o Museu de Percurso do Negro buscou integrar-se a sociedade porto-alegrense como um todo, privilegiando espaços responsáveis por importantes feitos dos negros que marcaram o seu cenário.

Este quarto marco conceitual e prático reverencia a arte muralista e representa a conquista de um dos objetivos iniciais do Grupo de Trabalho Angola Janga. Trabalha com um conceito ampliado de cultura, definindo-o como um fenômeno social.O artista Pelópidas Tebano projetou no Largo Glênio Peres uma visão negra do espaço, redesenhando a cultura e dando-lhe uma dignidade especial.

Trata-se de algo inovador e singular. Este registro que está sendo incorporado ao Museu propicia o estabelecimento de um elo formal de nossa sociedade, eminentemente branca, um novo vínculo, um novo cartão postal de um artista plástico negro. Não, não é redundância temos que salientar esta conquista:  artista plástico negro com sua obra incorporada ao acervo do município.Realmente é um marco… um marco para Pelópidas Tebano e para a cidade de Porto Alegre, tão carente de registros de obras da comunidade negra. Trata-se de um avanço a duras penas obtido. A arte muralista possui expressivos artistas internacionais que projetam desta forma seu contato com o mundo externo. Pelópidas Tebano estabeleceu o seu elo, através deste painel. Com vigor delineou seu mundo interior captando formas coloridas, quentes, significativas e vibrantes. Para se chegar neste resultado houve todo um processo de elaboração, para que a obra no papel tivesse a mesma  intensidade na cerâmica. Foi um processo árduo e laborioso, manual e a obra está aí, para que todos possam admirá-la. Com certeza Porto Alegre fica mais cosmopolita agregando esta obra ao seu Centro Histórico, mais precisamente no Chalé da Praça XV. Um caleidoscópio de cerâmica, em um ângulo privilegiado da cidade, em seu coração, no Largo Glênio Peres local de muitas manifestações culturais e de visibilidade.

Largo Glênio Peres, um espaço do povo

O marco no Largo Glênio Peres resgata a trajetória da comunidade negra da cidade, que transita pelo local. Opção para compras no Mercado Público, entre um café e uma cerveja se observa a manifestação sindical, política ou cultural que esteja acontecendo no espaço. O Largo Glênio Peres tem tudo a ver com os negros. Trata-se de um local onde vários portoalegrenses têm como ponto de encontro. O nome do político já traduz democracia, solidariedade e visão de mundo. Glênio Peres era assim, um ativista, um combativo, com sua retórica mudava regras estabelecidas. O Largo corresponde a este todo de vida e ação.  Não há quem não transite neste espaço, é onde todos procuram um ônibus, Várias manifestações artísticas também se expressam neste espaço, como conjuntos musicais, do tradicionalismo ao rock; veem um “comedor de facas”, um fanático religioso e até o “homem do gato”. A territorialidade deste universo de possibilidades fala para os negros, é uma referência.

É também uma reparação histórica da sociedade como um todo, uma reparação da existência da comunidade artística negra porto-alegrense. Um elaborado conceito de arte que perpassa aos equipamentos urbanos. Porto Alegre estava carente de uma representação muralista, tendo poucos exemplares a serem vistos na capital. Enquanto referencial negro é ainda mais ausente. Assim, esta obra de Pelópidas Tebano atende várias reivindicações culturais, abrangendo a necessidade do município, como também da cultura negra, com tão poucos registros expressivos nesta área.

O muralismo introjetado na pedra tem um significado especial para os negros. O painel expressa uma nova manifestação, que resgata o pendor do artista negro desta cidade. Pelópidas Tebano foi muito feliz ao desenvolver este projeto, que puxa para si a ancestralidade. Esta sua concepção transpõem algumas barreiras, modificando o ambiente e firmando o desafio que ele, com sua sensibilidade atitudinal , pratica o empoderamento. Adaptações e adequações são realizadas e expressam a valorização de uma nova relação de poder, a fim de eliminar estigmas. Essa equiparação modifica o ambiente, propiciando-lhe uma acessibilidade universal. Com a remoção de barreiras que entravavam o projeto, segue em sua autonomia e de livre acesso ao conhecimento arquitetônico.

Participação do Areal da Baroneza

Uma outra etapa do projeto se refere a parte de monitoria desenvolvido no Quilombo Areal da Baroneza, uma ideia de coletividade bem sucedida. O Museu surge com a missão de construir conhecimento e de ser um agente catalisador dos processos colocados em andamento. Trata-se de um avanço considerável. Estudantes, adolescentes foram ao longo de quatro meses treinados para fazer a monitoria do projeto. Foram aulas de artes, história, cidadania, práticas sociais, enfim, um conjunto de conhecimentos passados para que eles estivessem aptos a fazer o trajeto do Museu de Percurso com todo o conteúdo teórico, técnico e prático. Ver o empenho com que estes jovens se dedicaram as diferentes etapas de conteúdo não tem preço. São estas ações que por si só já justificariam a existência do projeto. Meninos e meninas que poderão seguir a carreira de guias de turismo, com desenvoltura e com informações ricas da cultura negra na Capital. Esta é uma etapa  significativa do projeto onde jovens são inseridos em conhecimentos que podem ser emblemáticos para a sua futura vida profissional, graças ao embasamento cultural empregado nas oficinas trabalhadas.

A inclusão social é notória, observamos uma evolução desde o início do projeto até o seu final, onde os adolescentes elaboraram tarefas, discutiram políticas sociais, estudaram a participação do negro na sociedade e manifestaram o seu pendor artístico fazendo uma releitura das obras do Museu de Percurso do Negro. Tudo coletivamente, no grupo, que ficou bastante coeso no transcorrer dos encontros. Nota-se pelo brilho no olhar e através de questionamentos, o interesse destes jovens. A participação efusiva nas oficinas revela a grande lacuna que existia em termos de conhecimentos em suas vidas, devidamente preenchida com aulas dialogadas, exercícios práticos, enfim, uma gama de conceitos que os preparam para a vida.

Foram vários episódios onde dúvidas mais banais foram dirimidas e conteúdos de história, arte e direitos humanos, dentro de uma ótica centrada em   relações humanísticas. Ao todo, 60 horas/aula no Curso de Formação de Jovens Monitores. Foram dezesseis jovens que compuseram esse espectro cultural Acreditamos que este seja um caminho para se atingir a cidadania plena, fruto da memória e do empoderamento cultural. O diálogo foi estabelecido.  Observamos que somos todos sujeitos ativos desse processo. Esta concepção do Museu de Percurso do Negro faz com que o desafio proposto seja alcançado e que, através destes cursos tenhamos aí novas lideranças que poderão levar o bastão do Mestre Lua adiante. Não podemos apenas testemunhar toda a mudança, mas sermos partícipes do que ainda está por vir. Passamos pelo enraizamento social proposto nas atividades, pela afirmação de uma concepção de museu contemporâneo, na rua, onde as pessoas passam e enxergam, visualizam aquele novo equipamento urbano, um agente de transformação. A partir desta monitoria podemos ampliar, qualificar e melhorar o investimento no quadro de participantes da ação educativa e do memória sociocultural aproveitando potencialidades.

E considerando que estes jovens entraram em contato com informações referentes as suas origens, lembramos o poema de Oliveira Silveira “Encontrei Minhas Origens”, que trata sobre a identidade negra.

Encontrei minhas origens

Oliveira Silveira

Encontrei minhas origens

em velhos arquivos

                livros

encontrei

em malditos objetos

troncos  e grilhetas

encontrei minhas origens

no leste

no mar em imundos tumbeiros

encontrei

em doces palavras

               cantos

em furiosos tambores

               ritos

encontrei minhas origens

na cor de minha pele

nos lanhos de minha alma

em mim

em minha gente escura

em meus heróis altivos

encontrei

encontrei-as enfim

me encontrei.

Do livro Oliveira Silveira: obra reunida (IEL /Corag,2012)

Fomentar a área museológica criando mecanismos de apoio, que preveem o estabelecimento de parcerias entre o poder público e o privado, com vistas à promoção e à valorização do patrimônio cultural musealizado. Esta é a ação primordial a ser desenvolvida, pois garantirá avanços perceptíveis. Da definição dos marcos à sensibilização da comunidade porto-alegrense, do resgate das  memórias à preparação da cerâmica, propiciam que o povo tenha um contato a céu aberto de uma obra de arte que tem tudo a ver com a comunidade negra, lembranças coloridas multifacetas que atraem olhares e movimentam a população do entorno. Este novo marco se consolidou pela articulação de lideranças que não deixaram a ideia morrer, levaram adiante esta possibilidade  alegre e vibrante e que, a partir desta obra, podem ser registradas poesias, músicas, publicidade, enfim, diferentes leituras ligam artistas à obra.

O Museu como agente de mudança social, alterando os registros do próprio artista ao ver sua obra realizada, dos adolescentes que entraram em contato com uma obra significativa, com a população de Porto Alegre recebendo um novo equipamento urbano artístico de ponta. O desenvolvimento carrega em si uma troca de experiência entre a comunidade museológica, a sociedade civil, museus e órgãos de gestão museológica federal. Com certeza, alcançamos diversos resultados: temos o centro da cidade com mais uma obra nova, criativa e participativa; o Museu do Percurso do Negro, através do GT Angola Janga conseguiu registrar mais um marco de sua memória e quem ganha é a população que recebe esta obra contemporânea, mas que estabelece um elo criativo com o passado.

Devemos refletir sobre todos estes envolvimentos propostos – memória, cultura e sociedade. Tais referências por si só já se bastavam para se propor um novo paradigma – memória e história. Estas questões todas podem fazer ver que a aparente simplicidade e transparência de um marco, em se tratando de memória traz o enfoque da resistência e muitos outros desdobramentos.

É de grande importância este novo marco e devemos saudar a sua inauguração e que passe a fazer parte do cenário da cidade de Porto Alegre, como sendo algo bonito, estético, significativo e duradouro. Vida longa para o marco de número quatro e suas significativas apropriações por parte da população. Localizado em um espaço privilegiado, onde turistas acorrem para conhecer o Mercado Público, o Chalé da Praça XV, enfim verdadeiros cartões postais da cidade, a obra passa a fazer parte deste cenário. Temos a noção do dever cumprido e que venham outros marcos que possam ser um fator de pertencimento da população negra e não negra da Capital.

Jeanice Dias Ramos

Jornalista, Bibliotecária e Museóloga.

Especialista em Estilo Jornalístico (PUC) Projetos Sociais e Culturais (UFRGS) e Gestão em Políticas Públicas com Ênfase em Igualdade Racial e Gênero (PUC).

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