Música Baiana em Estado de Imbecilidade por Eduardo Sergio Santiago de Queiroz

Caro Vanderley Soares!

Há alguns dias recebi um email atribuído ao Sr. Intitulado: “Musica baiana, em estado de imbecilidade”; e no texto o Senhor toma como foco da musicalidade e da degradação musical, àquilo que o mercado fonográfico resolveu batizar por pagode – O senhor vai mais além:

“Quando alguém pronuncia a palavra analfabetismo na Bahia, e se essa declaração parte de um acadêmico, branco ou da elite, parece tratar-se de racismo, discriminação e ódio.

Quando dizem que o som do berimbau é simplório, e que qualquer um pode reproduzi-lo sem maiores conhecimentos instrumentais, por possuir apenas uma corda, logo diriam, é mais um que odeia as raízes baianas, suas influências e sua cultura. Isso já ocorreu na Bahia e deu muito pano pra manga.”

De imediato, não sei se por algum trauma contido ou algo parecido, o senhor liberta um grito contra descendentes de africanos que vencidos de guerra, vieram na condição de escravos para a construção deste país. Falo isto porque o senhor desconsidera o racismo sofrido pelos descendentes dos povos originários destas terras, e até mesmo, o que representou para a formação da nossa sociedade o movimento eugenista brasileiro – que, aliás, dá suporte a parte do discurso que o senhor utiliza e que foi muito bem defendido há pouco tempo pelo prof. Natalino Dantas na UFBA. Agora sim, falo que esta intervenção sobre o BERIMBAU é racista e preconceituosa!

E falo abertamente primeiro dado ao grau de ignorância que tanto o senhor quanto o prof. Natalino da UFBA manifestaram e fizeram questão de levar em frente sobre este instrumento – Gente, o som do BERIMBAU NÃO VEM DA CORDA! É o dobrão ou qualquer outro recurso que você possa substituir para fazer o som exigido pelo momento, conforme a dinâmica da vida, e não reproduzido no momento; e mais, tem que saber usar a cabaça junto ao corpo. Não foi por menos que mestres como Walter Smetack e Hermeto Pascoal fizeram questão de usá-lo – Lembra de Gil em Domingo no Parque?

“E quando dizem que a música baiana está cada dia pior, e que o pagode não passa de mais um sonoro palavrão multiplicado por milhares de incautos, ignaros e estúpidos, certamente repetiriam, trata-se de mais um a ver-nos como sub raça, desinformados e inconformados.

Pois é. E quando essa declaração parte de um pardo, de origem negra e indígena, e que cursou apenas o segundo grau? Aí, certamente dirão, trata-se de um oportunista, um comunicador frustrado ou de alguém que não conseguiu galgar os seus objetivos.”

Toda Escola de Samba tem uma ala de Baianas em homenagem a baianas como Tia Ciata e Bebiana, que foram expulsas da Bahia e no Rio de Janeiro com o pagode em suas casas construíram a “pequena África” que dá origem ao samba carioca.

Quero dizer que um PAGODE não é isso que o senhor e o mercado fonográfico querem que acreditemos que seja! Preciso deixar claro que não estou nem um pouco me importando se o senhor é pardo, índio, ou seja, lá onde o senhor queira se encontrar; para mim, o pior é a pessoa não se achar em termos de identidade. Isso preocupa por conta de ser àquilo que Marcus Garvey chamou de árvore sem raiz. Mas neste momento, quero trazer uma professora que nos deixou recentemente; Kátia Mattoso e seu livro, Ser Escravo no Brasil:

Dizem-se crioulos os escravos nascidos no Brasil e que logicamente, falam realmente o português. Em geral, foram criados na família do senhor e são fortemente marcados pela sociedade dos brancos. Para eles os problemas de adaptação serão muito sérios, pois cedo sentem a necessidade serem melhor assimilados pelo conjunto da sociedade. Nessa sociedade escravista existe uma certa mobilidade que permite passar da condição de mão-de-obra à artesão de talento ou de domestico, por exemplo, que proporciona também a esperança de uma alforria, se os valores ocidentais forem aceitos e renegada a herança africana. De fato, o forro é sempre relançado pelos brancos à comunidade dos negros; esta comunidade negra está sempre a receber novos membros vindos da África e não está necessariamente disposta a repelir a herança cultural dos ancestrais para aceitar a dos brancos. Daí as tensões que agitam continuamente o grupo escravo, retesado entre seus crioulos e seus africanos: o crioulo é objeto de contradições irredutíveis entre brancos e negros, é o que tem maiores dificuldades de assumir sua individualidade, pois os poderosos esperam muito mais do escravo crioulo que do africano, e não lhe perdoam coisa alguma.

Estou aqui para para fazer uma defesa que se faz necessária, diante dos constantes ataques a quem está em situação de retaguarda, tentando entender o porquê disso tudo? O senhor textualiza: “Não falo do Axé, que apesar da mesmice, não usa palavrões nem ridiculariza a Bahia como Estado analfabeto.” Mais uma vez, quero lembrar que é leviano usar o mercado fonográfico e suas relações de poder e consumo como referencia das instituições de ancestralidade dos descendentes de africanos aqui escravizados.

O Axé é um patrimônio imaterial do nosso povo! Ele é quem dar substância e sentido as nossas ligações e religações com ancestrais – É o nosso “devir”.

Outra coisa que me chama atenção no seu texto é a constante associação de cultura com formação escolar e /ou grau de escolaridade; suas idéias, ainda que ou talvez, involuntariamente, são muito próximas de Cesare Lombroso – o curioso é que você vai buscar referência em Castro Alves, o poeta branco que se compadeceu com a dor dos escravos… E “esquece” de Luiz Gonzaga Pinto da Gama; o senhor continua em suas referencias e cita Jorge Amado, aquele que a mulher negra não passava da cozinha ou de um aperitivo como “cravo e canela”, sempre lasciva e insaciável. Neste momento, começo a entender as razões pelas quais são personalidades que para o senhor, fazem lembrar que aqui tinha àquilo que o senhor chama de cultura.

Eu não vejo motivo para tomar como surpresa um Caetano Veloso que escreveu: NÃO ENCHE, um texto que não está longe de TAPA NA CARA, e as coisas do gênero que têm surgido! O tempo histórico é única distância que existe entre O Teu cabelo não nega de Lamartine Babo e os irmãos Valença e a música: Meu cabelo duro é assim, cantada por Chiclete com Banana; em termos de olhar para a mulher negra.

Não se pode desconsiderar que este país saiu da ditadura Vargas e entrou na ditadura militar – e vale lembrar que para os pretos a ditadura continua! Ou você ainda não leu o livro CIDADE PARTIDA de Zuenir Ventura? Aliás, pelo visto você também não conhece o livro Comando Vermelho: A História Secreta do Crime Organizado de Carlos Amorim.

Nessa confusão toda, há espaço para pincelar sobre a coisa de uma música ser brega ou rotulada como tal pela mídia! Núbia Lafayette, que não fazia “a cara da jovem guarda”, possivelmente exausta de ouvir o clássico: AI, QUE SAUDADES DA AMELIA, do intelectual, artista, comunista etc. Mario Lago ao lado de Ataulfo Alves, cantor consagrado na época – Gravou no início dos anos 70 CASA E COMIDA que rapidamente foi rotulada como brega!

Casa e Comida : Núbia Lafayette Composição : Rossini Pinto

Desculpe, meu amor, o que eu lhe digo,

Mas meu bem, não é comigo, que você deve lamentar,

Você nunca foi um bom marido,

Não cumprindo o prometido que jurou aos pés do altar.

É triste confessar, mas é preciso,

Você não teve juízo em dizer que não me quis,

Perdoa, meu amor, não sou fingida,

Não é só casa e comida, que faz a mulher feliz,

Noites, quantas noites, eu passava,

Por você abandonada, a chorar na solidão,

E quando eu reclamava, você ria,

Me dizendo que ficava, no escritório, no serão.

Agora você tenha paciência,

Eu lhe peço, por clemência,

Deixe em paz meu coração.

Repito o que todo mundo diz:

Não é só casa e comida, que faz a mulher feliz.

Noites, quantas noites, eu passava,

Por você abandonada, a chorar na solidão,

E quando eu reclamava, você ria,

Me dizendo que ficava, no escritório, no serão.(…)

Coisa que não ocorreu com Sidney Magal: “Se te agarro com outro te mato, te mando algumas flores e depois escapo”… Luiz Caldas é um dos maiores instrumentistas que esta terra tem; fez MAGIA, uma obra de arte e grandes trabalhos com o Tapajós, inclusive no LP Caetanave – no entanto, seu sucesso se deu quando cantou: “nêga do cabelo duro / que não gosta de pentear…” e na sequência, apresentou outra musica que é como se fosse a continuação: “…pedi um beijo a ela e ela me deu um tapa / o que é que essa nega quer…”

O clássico MEU NOME É GAL, de Roberto e Erasmo, fora o arranjo maravilhoso de Robertinho do Recife, traz em seu conteúdo:

“Meu nome é Gal

E desejo me corresponder

Com um rapaz que seja o tal

Meu nome é Gal

E não faz mal

Que ele não seja branco, não tenha cultura…”

A sutileza do racismo brasileiro sempre teve o cuidado de associar cultura a formação intelectual dentro da perspectiva européia.

Cantaria De Neve em uma música que virou clássico do bloco Afro Ilê Aiyê: “População magoada / a nossa honra tem que ser lavada”.

Quero deixar claro que não sou contra seu posicionamento; agora, devo salientar que as coisas estão colocadas de forma confusa de muito tendenciosa para uma manifestação de exclusão a partir da identidade étnica.

Estamos na era da informação e um profissional de comunicação pode e tem muito que colaborar!!! Hoje, quem quiser ouvir uma cantoria nesta terra, tem que se deslocar neste período de maio a junho, para São Gabriel na região de Irecê. Por qual razão Salvador e outras cidades do estado não tem esse direito? Vivemos sob uma ditadura e as secretarias de governo do estado e das prefeituras se renderam; ou melhor, acharam um cavalo selado e montaram sem sequer ter a menor preocupação com a procedência: é o mesmo grupo e os mesmos cantores e as mesmas músicas no carnaval, na semana santa, no São João etc.

As emissoras de rádio com os “esquemas das mais pedidas”, o processo de rotulação preconceituoso que condena determinadas musicas a serem fadadas a viverem às margens das margens de qualquer acesso público encaixotadas como brega; faz parte deste contexto degradativo e degenerativo musical – ainda vou ter que estudar muito para entender porque um texto como este cantado por Marcio Greyck que busca refletir crises de convivência e compartilhamento é considerada como algo perverso e marginal: BREGA, assim como a já citada CASA E COMIDA .

( Aparências ) Composição : Cury – Fatha

Quantos anos já vividos, revividos, simplesmente por viver

Quantos erros cometidos tantas vezes, repetidos por nós dois

Quantas lágrimas sentidas e choradas

Quase sempre às escondidas, pra nenhum dos dois saber

Quantas dúvidas deixadas no momento, pra se resolver depois

Quantas vezes nós fingimos alegria, sem o coração sorrir

Quantas vezes nós deitamos lado a lado, tão somente pra dormir

Quantas frases foram ditas com palavras

Desgastadas pelo tempo, por não ter o que dizer

Quantas vezes nós dissemos eu te amo,

Pra tentar sobreviver

Aparências, nada mais,

Sustentaram nossas vidas

Que apesar de mal vividas têm ainda

Uma esperança de poder viver

Quem sabe rebuscando essas mentiras

E vendo onde a verdade se escondeu

Se encontre ainda alguma chance de juntar

Você, o amor e eu

Tem que conversar, discutir; ou a alternativa cantada pelo não brega dar TAPA NA CARA, CHAMAR DE CACHORRA, VAGA…MATAR E CAIR FORA… Isso para não descermos ao nível dos últimos carnavais!

Não há como dissociar toda esta barafunda que estamos vivendo da sociedade que não consegue garantir saúde para todos e assim, o termo saúde fica reduzido ao simples cuidado médico com o corpo; reduzindo a palavra ao extremo. Fui aluno da Hora da Criança, de lá fui para o Jardim Infantil no ICEIA e de lá para fazer as primeiras séries do antigo primário, hoje fundamental – cheguei para a 1ª série com noções de leitura de partitura; não me esqueço da profª Maria da Hora! Ainda no ICEIA, aprendi a nadar, e pratiquei volley, basquete e hand Ball; hoje, o filho do pobre que quiser 1/3 disto tem que pagar escolinha – e mais, a criança chega à primeira série do Ensino Fundamental sem sequer saber escrever o próprio nome em uma escola pública. Os processos que envolvem a dinâmica da leitura, nem vou comentar.

Não é por conta do BERIMBAU que a VILA OLÍMPICA e todo o seu acervo histórico foram ao chão em questões de segundos, para dar lugar a uma arena de futebol “moderna” e excludente para a copa do mundo – matem-se os velhos que os novos não sabem conviver com a poesia do tempo! O que é considerado velho, é descartável, joga-se fora ou elimina por completo; isso é o Futurismo de Marinetti! E quando você anexa a este tipo de ação os procedimentos de “segurança pública” adotados nos bairros populares, irá encontrar a impressão digital de Mussolini. Será que alguém tem dúvidas que àquilo que se convencionou chamar de erro ou negligência médica, nada mais é do que ação de extermínio – Um médico não se esquece de atender com precisão e presteza a um vizinho ou a um parente; ou mesmo a um amigo ou ex-colega de infância criada juntos nestas muralhas que são as escolas particulares e os condomínios luxuosos.

Não há mais beleza, a não ser na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças desconhecidas, para obrigá-las a prostar-se diante do homem.

Nós estamos no promontório extremo dos séculos!… Por que haveríamos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós já estamos vivendo no absoluto, pois já criamos a eterna velocidade onipresente.

Outra coisa, a estrutura das escolas é tão obsoleta, em nosso caso, que a maioria está fechando por falta de alunos! E ninguém precisa ser adivinho para saber para aonde estes meninos e meninas estão se dirigindo; a escola que lhes é oferecida não consegue fazê-los ver que no material concebido em seu meio tem relações e é aplicável a sua vida cotidiana. É verdade que venho de uma geração que tinha Simone, Diana Pequeno: “…Quantas mortes ainda serão necessárias / para que se saiba que já se matou demais?” Não é preciso subir num trio elétrico e pedir ao pessoal de baixo para dizer que é ou são “gostosas”, talvez, para poder se sentir mulher dentro da sua concepção. A única coisa, que está ligada aos pretos senhor Vanderlei, é o fato de que a herança social desses excluídos é a herança de um povo que luta para sair da senzala e viver a sua experiência de sociedade quilombola; e o quilombo foi a sociedade em que todos os excluídos neste país tiveram abrigo e acesso – até mesmo fidalgos da corte quando passavam a ser perseguidos pela coroa. “As leis do corvo Jim” não chegaram aqui por nossas mãos!

Quando um desses pretos do recôncavo baiano, Assis Valente, apresentou BRASIL PANDEIRO a Carmem Miranda, ela teve a mesma repulsa preconceituosa que ao longo dos tempos tem se manifestado neste país que se fez valer da justiça para buscar e fincar em sua identidade a sua ascendência européia, como se os outros povos fossem abrir mão facilmente de suas identidades… Mas tarde, a Telúrica Baby com os Novos Baianos fez dessa música um sucesso internacional. Fernando Mendes, com sua música considerada brega, naqueles tempos, chamou a sociedade para discutir o preconceito e o pouco caso para com as pessoas que usavam cadeiras de rodas, discutiu também como estava se dando o crescimento das meninas do subúrbio; no entanto, era brega por não espelhar o Brasil que as elites queriam mostrar como sua face: Ipanema, Copacabana ou a Barra aqui em Salvador.

Quero terminar com duas estrofes de músicas de meu amigo e irmão Adailton Poesia uma quando ganhou o festival de música do Bloco Afro MalêdeBalê e outra que apresentou no Afro Olodum:

“(…) Numa explosão de mazelas e desigualdades

o preconceito chocou o ovo da serpente…”

“Num triste legado da escravidão

A necessidade fazendo a razão

Dói ver em cada esquina partir um irmão

Que tombou sem direito a opção…”

Eduardo Sergio Santiago de Queiroz – MILITANTE DO MOVIMENTO NEGRO

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