A namorada negra de alguém

Aos seis anos de idade ela não servia para ser o par de alguém na festa junina. Era só uma foto de mãos dadas, vestida de caipira, porque os coleguinhas e suas mães achavam-na “feinha” demais.

 Por Stephanie Ribeiro/ Arte: Erin Robinson,  no Afronta

Era uma criança negra preterida.

Na primeira série, roubavam seu lanche e lhe davam apelidos maldosos:

– Vassoura!

– Bruxa!

– Macaca!

Até as amiguinhas cochichavam e falavam das suas roupas, cabelo e cor.

Era uma menina negra solitária.

Quando todo mundo usava o muro do fundo do colégio para beijar na boca, ninguém queria ficar com ela. Um menino certo dia chegou e lhe disse:

– Você é negra!

Como se isso fosse nojento, indigno, repulsivo… Será que tinha algo de errado em ser assim? Ela não conseguia entender. Certa vez uma colega mostrou uma caixa cheia de cartas de amor, escritas por garotos. Ela leu todas e chorou. Não servia para receber cartas de amor também? Não servia para andar de mãos dadas? Afinal qual era o problema dela e com ela?

Stéphanie Ribeiro

Era uma adolescente negra magoada.

Quem sabe fosse feia demais, como diziam. Sua mãe não achava, sempre ficava falando o quanto era bonita — “filha para de bobeira, olha para você veja quanta beleza”. Mas ela só queria sumir, se esconder, ser invisível. Primeiro prendeu o cabelo, depois usou roupas que não chamavam atenção e por fim nunca mais tirou fotos.

Então pensou em estudar mirando a faculdade, onde pensou que tudo seria diferente.

E uma vez na faculdade!

Foi desejada, cobiçada, era exótica. Até teve vários parceiros, beijos escondidos no carro, recebeu mensagens de amor secretas. Viveu breves e intensos relacionamentos com pessoas que nunca estiveram prontas para algo além de sexo. Se sentia usada, reificada, levada à condição de passatempo, distração, acessório, objeto lascivo.

Era uma jovem negra cansada.

E quando não desejava mais nada além de viver a própria solidão, conheceu um homem diferente de todos que cruzaram seu caminho, era ele, sabia, sentia, — lembra-se da noite que o conheceu como se fosse hoje. Gostou dele, ele gostou dela. Foram tentando e tentando, lapidando esse encontro, se conhecendo, se aprofundando um no outro, criando laços, afinidade, confiança, parceria, ternura, intimidade…

Enfim estavam namorando.

Poderia ser uma estória feliz caso ela não fosse negra.

Quando as pessoas próximas a ele descobriam o namoro, logo tratavam de questionar:

– Ela é negra?

– Ela é negra?!

– Nossa, ela é negra!

Sim, é negra, cabelo crespo, lábios grossos, pele escura. Negra! E tinha aprendido a ser, a resistir e a existir NEGRA, com muito orgulho disso — mesmo que o mundo dissesse o oposto e lhe impingisse dor pela cor de sua pele — era por orgulho de si enquanto negros que eles também estavam juntos. Compartilhavam esse sentimento mútuo de pertencimento e imenso respeito.

Ela também era chata – assim os amigos dele rotularam-na:

– Chata!

– Metida!

– Atrevida!

– Esnobe!

– Feiticeira!

– Macumbeira!

Toma cuidado com ela!

Ela não serve para você!

Olha como você mudou depois dessa mulher!

Era uma mulher negra julgada e que não podia ser amada?

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