‘Não Fechem Minha Escola’ e o resgate do sentido político na educação

O CORPO CONSCIENTE E CURIOSO QUE ESTAMOS SENDO SE VEIO TORNANDO CAPAZ DE COMPREENDER, DE INTELIGIR O MUNDO, DE NELE INTERVIR TÉCNICA, ÉTICA, ESTÉTICA, CIENTÍFICA E POLITICAMENTE. (PAULO FREIRE)

Por Flávio Assis, do Proa da Palavra                                                                                                                       

A recém lançada biografia do guerrilheiro Carlos Marighella, escrita pelo jornalista Mário Magalhães, posiciona o leitor em um período histórico do Brasil de profunda efervescência cultural, política e social, de dentro do bornal da primeira metade do século 20. Interessa-nos, todavia, as paisagens pedagógicas circunscritas à juventude de Marighella, quando ao seu ingresso no Ginásio da Bahia no início de 1928, em especial.

“O Ginásio da Bahia tinha tanta história para contar que às vezes os alunos tinham mais prazer em ouvir as histórias sobre ele do que as lições dos seus adoráveis professores de história. Criado por lei em 1836 como Liceu Provincial, no ano seguinte entrara em atividade e já suspendera as aulas em decorrência das contendas políticas. Professores cônegos tinham sido encarcerados por participar do movimento federalista que trocou o poder de mãos na Bahia de novembro de 1837 a março de 1838, quando o sufocaram. Chefiado pelo cirurgião mulato Francisco Sabino Álvares da Rocha Vieira, ficara conhecido como Sabinada.” (p.48)

Forjado no magma da história o Ginásio da Bahia notabilizou-se pela incrível capacidade de produzir lideranças, de transgredir as convenções e já desde 1900 apresentava turmas mistas. Em maio de 1927 “a primeira professora estreou. Ex-estudante da casa, a senhorita Heddy Peltier dava aulas de inglês” (p.49). No ano seguinte, Marighella testemunharia o velho Ginásio sacudir mais uma vez os pilares da educação, desta vez em âmbito nacional, através da assunção de um ilustre conterrâneo.

“Ao vencer os quatro degraus da escada de mármore e passar por uma das três portas do prédio neoclássico de dois pisos, Marighella deparou-se com uma instituição agitada. A efervescência tinha um “culpado”, o até pouco tempo antes anônimo advogado Anísio Teixeira. Aos 24 anos, ele procurara o governador Francisco Marques de Góes Calmon a fim de cavar uma vaga de promotor na sua cidade, Caetité. Saiu da conversa como inspetor-geral da Instrução Pública, ou seja, o secretário estadual de Educação. De 1925 a 1928, conduziu uma ruidosa reforma do ensino. Incomodou-se com o crescimento dos estabelecimentos privados durante sua gestão: 211 em 1926, 249 em 1928. Padeciam, em sua opinião, de má qualidade. Teixeira ergueu dois pavilhões no Ginásio da Bahia, mas sua obra essencial foram as estocadas nas trincheiras das ideias. Desaprovou a subordinação de programa ao Colégio Pedro II, do Rio de Janeiro. Pregou a transformação do pensamento que condenou como anacrônica e elitista. Assinalou: ‘O Ginásio, com sua atual organização, é uma máquina para conservar e alimentar a mentalidade que uma velha e longa associação entre trabalho manual e classe social inferior criou, de pretensa superioridade das profissões não manuais’” (p.49).

Lançar holofotes sobre esta breve e importante passagem da vida de Carlos Marighella, ajuda-nos a reposicionar as dimensões política, ética e histórica a respeito da Escola no Brasil e, indagar criticamente acerca das proposições recentes de uma escola apolítica no país. É possível separar escola de política? A quem interessa uma escola alheia à política?

O Brasil findará 2015 melancolicamente no plano da educação. O slogan do governo federal, “Pátria Educadora”, desmantela-se em si mesmo face aos desdobramentos de um ajuste fiscal – ainda que necessário – tardio. Os cortes orçamentários afetam diretamente o ciclo de expansão da última década, pautado pela descentralização e regionalização do ensino superior e cursos técnico-profissionalizantes.

Em abril o governador Beto Richa do Paraná, tratou a greve dos professores da rede estadual de ensino com força policial e especial truculência. Em São Paulo, após a mais longa greve da categoria, o governador Geraldo Alckmin despojou o movimento, sem reajuste real dos salários e indiferença diante das pautas pertinentes à qualidade do ensino no estado. No início do ano letivo promoveu o fechamento de 3 mil salas de aula e em novembro anunciou o fechamento de 150 escolas. Neste mesmo mês, sob as justificativas demográfico-econômicas de queda na taxa de natalidade e o evangelho neoliberal da redução dos gastos públicos, o governo promove a “reorganização” da rede escolar, que acarretará na superlotação das salas de aula e a demissão massiva dos professores contratados.

Lembra-se da pergunta acima, “É Possível separar escola de política?”. Pois, em resposta à ingerência do governo estadual, os estudantes afetados pelas reformas se entrincheiraram nas suas escolas, ocupando-as por tempo indeterminado até que o governo decline da sua decisão.

Com o uso estratégico das redes sociais, educandos de aproximadamente 180 escolas em todo estado, angariam apoio da sociedade civil e se organizam coletivamente na elaboração de pautas reivindicatórias, na organização cotidiana do movimento, com palestras, aulas públicas e atividades artísticas como, shows musicais, grafite, dança, cinema e teatro. Até o momento da finalização desse texto, a página do movimento no facebook já contava com mais de 90 mil seguidores.

Esses estudantes estão fazendo política e escola ao mesmo tempo. Em comum acordo, decidem sobre os temas a serem abordados nas aulas, onde discutem sobre diversidades e legitimidades no século 21; políticas afirmativas; homofobias; racismos; gestão participativa; escola, cultura e família na contemporaneidade. Redefinem os papéis de professor e aluno, mas sobretudo, reposicionam os sentidos e significados da escola que se quer, para quem se quer e deseja. Isto é em última análise também, currículo, formação – de uma nova cultura política – e, sobretudo, práxis político-pedagógica.

Na contramão, assiste-se no Brasil o avanço de ideias conservadoras como contraponto explícito ao modelo de uma educação progressista e autônoma. O movimento Escola Sem Partido é um exemplo dessa tendência. Este se traduz na proposta dos projetos de lei, 867/2015 e 1.411/2015, que em suma se definem pelo fim à “Doutrinação Ideológica” nas escolas e proíbem os professores de tocarem em temas como política, ideologia, diversidade de gênero, sexualidade e estrutura familiar contemporânea, por exemplo.

Apenas a Ditadura Militar (1964-1985) ousou propor tamanha moralização do universo escolar, quando à época instituiu no currículo nacional as disciplinas Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil, em detrimento do eixo das humanidades, História, Geografia, Sociologia e Filosofia. Do ponto de vista prático o movimento Escola Sem Partido poderá favorecer a criminalização dos fazeres docentes e, simultaneamente, promover a naturalização de práticas anti-progressistas, sob o pretexto da “neutralidade”.

Nada há de novo no rugir das tempestades morais de agora. Nietzsche no texto O Crepúsculo dos ídolos já chamava atenção para o caráter irremediavelmente autoritário das instituições liberais ao final do século 19. “Nada é mais sistematicamente nefasto à liberdade do que as instituições liberais. Sabemos melhor que ninguém no que resultam: minam a vontade de potência, erigem em sistema moral o nivelamento dos cumes e dos vales, tornam mesquinho, covarde e estróina – nelas, é o animal gregário que sempre triunfa”.

O que está em jogo transcende o caráter estritamente ideológico da questão e se instaura na perspectiva das liberdades individuais, na necessidade de salvaguardar territorialidades escolares inventivas, potentes de liberdades e expressões compartilhadas, de legitimidades e direitos historicamente negados, borrados no formulário oficial do Estado brasileiro. Neste sentido, não é honesto lançar mão de formulações fascistas, racistas, misóginas, sexistas, reacionárias em primeira ordem, sob a justificativa aligeirada da liberdade de expressão. Este é o jogo perigoso que os paladinos da escola livre da “doutrinação ideológica”, querem submeter a educação no Brasil.

O Ginásio da Bahia onde figurou Marighella ao final da década de 1920, o fez guerrilheiro? Como afirmar? Mas certamente, um espaço escolar público, dotado de excelência pedagógica, nutrido por grande diversidade socioeconômica, solidário às artes, à organização política dos docentes e estudantes, propiciou a construção de uma comunidade catalisadora de lideranças, de protagonistas da cena cultural, política, social e econômica na Bahia. Sim, o Ginásio da Bahia moldou em Marighella sensibilidades, habilidades ao lançar o olhar sobre o mundo que o cercava e interpretá-lo de forma independente, sob o viés das suas traduções.

Mas porque a escola de hoje deveria ser diferente? O que deseja o movimento Escola Sem Partido – como no dizer de Nietzsche – para além de desejos mesquinhos?

Na esteira do debate, o movimento Não Fechem Minha Escola, capitaneado pelos estudantes da rede pública estadual de São Paulo, problematiza e reafirma o papel político da escola como espaço de resistência e contraposição ao establishment social, que apenas se articula para preservar as oportunidades, cultural, econômica, política e social a serviço do privilégio, nunca do direito e da justiça social. Trata-se de um levante pela escola pública, gratuita e de qualidade, autônoma, saudável pedagogicamente, onde se desenvolva a solidariedade dos currículos, o diálogo fraterno dos conteúdos e a generosidade na intersecção das identidades.

Nas redes sociais ou nos pátios ocupados das escolas, os meninos e meninas do Não Fechem Minha Escola, seguem com sua lição de civismo, cidadania, organização política e, a despeito das condições objetivas desfavoráveis – os desconfortos e agruras de um estado de acampamento, o medo diante da ameaça iminente da ação policial – se afirmam como no dizer de Boaventura de Sousa Santos, com ação rebelde, crítica frente a ação conformista, que a mais nada se dedica além de naturalizar as injustiças e as desigualdades.

*Breve ensaio para disciplina de Pós-Graduação “Conhecimento, compreensão e novas legitimidades” do Núcleo de Estudos das Intolerâncias, Diversidades e Conflitos – DIVERSITAS/FFLCH/USP.

Flávio Assis

Flávio Assis é bacharel em Geografia, mestrando no Núcleo de Estudos Das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos – DIVERSITAS/FFLCH/USP. Atua como consultor pedagógico no Sistema UNO Internacional de Ensino.

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