Não podiam ser chefes. Não queriam ser escravos

SÃO TOMÉ DO PORTO E PRÍNCIPE.

Por Daniel Rocha, no Mamapress

Um dia, a mãe de Isaura Carvalho decidiu, à revelia dos avós, ir viver com o homem por quem se apaixonara. Ela, negra, era a única filha. O avô não queria que vivesse como amante de um português branco, destino mais que provável para um casal misto naquele tempo. Mas os pais de Isaura “bateram de frente” um no outro e apaixonaram-se. Nessa altura não era permitido socialmente em São Tomé e Príncipe um branco e uma negra casarem-se, constituírem família, deixarem descendência mestiça.

Isaura Carvalho (n. 1957) lembra-se das cartas que a avó portuguesa escrevia ao seu filho dizendo que “não queria uma preta na família”. Aos netos — ela, Isaura Carvalho, e os sete irmãos — a família paterna chamava “os mulatitos”. Havia até uma tia de Viseu que propôs ao pai de Isaura enviar uma das suas filhas para a “ensinar a ser costureira”. “A minha mãe esperneou”, lembra a historiadora e uma das fundadoras da Fundação Cacau, o mais dinâmico espaço cultural de São Tomé e Príncipe. Cada vez que chegava uma carta da metrópole, o pai de Isaura Carvalho tentava escondê-la para a mulher não perceber que ela, negra, “era sempre o objecto da rejeição”.

Viver com esta realidade não foi pacífico, conta: “Não percebia porque tinha de ser assim [, se todos os outros tinham famílias que se aceitavam].”

A mãe decidiu que não ia continuar a viver amantizada, como se dizia na altura. Quis, portanto, o estatuto de mulher casada — que acabou por conseguir, já Isaura Carvalho tinha uns “seis ou sete anos”. Afinal, a sua própria mãe já tinha vivido com esse estigma. “A minha avó não queria que a minha mãe passasse pelo mesmo. O meu avô não regressou a Portugal, vivia com a minha avó, mas nunca se quis casar. Deu a dignidade de uma esposa, mas não o papel — isso na altura era mesmo muito importante”, conta.

O avô foi administrador de uma roça e deixou de organizar eventos sociais porque a avó era negra e “não queria discriminá-la”. “Havia todas as proibições imaginadas. Em nova, a minha mãe quase não saía, [os meus avós] criaram uma redoma.” No final a redoma serviu para repetir a história familiar, e ela abandonaria a casa dos pais.

A família emigrou para Angola em 1964, justamente porque a mãe se queria distanciar: “Não havia muitos casais mistos — havia muitos mestiços, mas não casais. Estas famílias tinham de encontrar alguma protecção, a nossa foi sair de São Tomé e Príncipe.”

Ainda hoje a mãe de Isaura Carvalho não gosta de ir a São Tomé e Príncipe, vive em Lisboa. Isaura Carvalho regressou ao país depois da independência.

Muita da miscigenação em  São Tomé e Príncipe fez-se na clandestinidade. Manuel Jorge de Carvalho do Rio, 54 anos, director executivo da ONG Marapa, conviveu directamente com o choque racial durante a sua infância. A mãe era são-tomense e o pai português, branco, mestre-de-obras numa grande empresa agrícola. “Sentíamos o reflexo da raça. Havia escalões. Não gostavam que nós, filhos de branco, nos misturássemos com as sanzalas.”

Em  São Tomé e Príncipe, a mãe era a companheira não oficial do pai, português, branco. Tiveram cinco filhos. Oficialmente, o pai era casado com uma portuguesa, que vivia em Portugal com os outros filhos. “Isso prejudicou-nos, porque, como o meu pai era casado, não podia perfilhar os filhos cá, apesar de vivermos e convivermos com ele.”

Até morrer, o pai nunca deu apelido aos filhos são-tomenses, mesmo tendo-os educado durante a infância, mesmo tendo-lhes ensinado a ler e a escrever. Em 1975 houve o retorno dos portugueses que trabalharam nas roças e o pai de Jorge Rio foi um deles. “Se bem que houve alguns que ficaram na roça a trabalhar, mesmo na companhia de que fazíamos parte. Mas o meu pai tinha a sua família lá, cinco filhos em Portugal, portanto foi.”

 

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