Nei Lopes, substantivo

É intelectual absolutamente fundamental

Por FLÁVIA OLIVEIRA, do O Globo

 

Nei Lopes (Foto: Hudson Pontes/O Globo)

Nei Braz Lopes. Substantivo próprio. Nome completo do compositor, cantor, escritor, africanista e dicionarista também conhecido como Nei Lopes. As três letras do primeiro nome tornaram-se sinônimo de mestre. Filho de Eurydice de Mendonça Lopes, dona de casa, e de Luiz Braz Lopes, pedreiro, nasceu em maio de 1942 no subúrbio carioca de Irajá, bairro surgido da Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, fundada em 1644. A igreja em honra da santa, de 1613, é a mais antiga da capital fluminense ainda de pé — antes dela foram erguidas a primeira Candelária, demolida no século XIX, e as paróquias de São Sebastião e do Colégio dos Jesuítas, no igualmente destruído Morro do Castelo.

Nei Lopes é mais novo de uma família de 13 irmãos. Formou-se em Direito e Ciências Sociais pela antiga Universidade do Brasil, hoje UFRJ. Abandonou a área jurídica para se dedicar à música, à literatura e à pesquisa sobre histórias, culturas e línguas de África. No início deste ano, em entrevista a Christina Queiroz, da revista “Pesquisa Fapesp”, contou que se iniciou na investigação científica curioso sobre as origens do pai, nascido três meses antes da Lei Áurea, em 1888, e morto na véspera de o caçula alcançar a maioridade.

É casado desde os anos 1980 com Sonia Regina Lopes, sua segunda mulher, com quem vive em Seropédica, Região Metropolitana. Tem fama de recluso. Do primeiro casamento tem um filho, professor de Educação Física, e um casal de netos. Em 1981, perdeu o outro filho num acidente no mar. A compulsão por leitura e pesquisa vem dessa época. Foi em livrarias e sebos do Centro da cidade que o autor começou a montar a biblioteca com obras raras da época colonial e dicionários africanos. Hoje, são cerca de três mil títulos. Publicou 39 livros e tem outros dois prontos para publicação.

No início de dezembro, lança “Afro-Brasil reluzente” (Nova Fronteira, 454 páginas), com biografias de uma centena de personalidades negras do século XX: de Abdias Nascimento a Dona Ruth de Souza, de Joel Zito Araújo a Carolina Maria de Jesus, de Mãe Stella de Oxóssi a Luiz Carlos da Vila, de Cartola a Marielle Franco, de Gilberto Gil a Elza Soares, de Pelé a Sonia Guimarães, de Lázaro Ramos a Zezé Motta, de Sueli Carneiro a Ana Maria Gonçalves, de Joaquim Barbosa a Jurema Werneck, de Conceição Evaristo a Helio de la Peña e Flávia Oliveira, colunista que vos escreve.

Nei Lopes é intelectual absolutamente fundamental a quem deseja compreender a influência africana no Brasil. No final do século passado, publicou o “Dicionário banto do Brasil”, com mais de oito mil verbetes. Em 2001, 250 registros por ele formulados foram incorporados ao “Dicionário Houaiss da língua portuguesa”. É autor da “Enciclopédia brasileira da diáspora africana” (2004) e do “Dicionário da hinterlândia carioca” (2012), termo que remete a localidades isoladas (daí a relacionar palavras referentes ao subúrbio carioca). Publicou romances, contos, crônicas, biografia de Zé Kéti, livros sobre a religiosidade afro-brasileira .

Em 2016, foi vencedor do Prêmio Jabuti, o mais importante da literatura brasileira, em duas categorias, incluindo Livro do Ano, com o “Dicionário da história social do samba”, escrito em parceria com Luiz Antonio Simas. De Nei, o historiador destaca o bom humor e a generosidade com os mais novos: “Tem fama diferente, mas é um garoto sapeca. É de Logunedé (orixá filho de Oxum e Oxóssi, metade rio, metade mato). Não guarda conhecimento em gaveta. Não tem pudor de espalhar informação e dividir ideias. Compartilha tudo. Levanta a bola pra gente fazer gol”.

Nei Lopes tem carreira igualmente relevante na música brasileira. Desde os anos 1970, contabiliza mais de 350 canções gravadas por nomes como Clara Nunes, Beth Carvalho, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Djavan, João Bosco, Zélia Duncan, Dudu Nobre, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho. Em 1980, gravou com Wilson Moreira o LP “A arte negra”, considerado um dos melhores álbuns já lançados no país. A obra tem clássicos do samba como “Senhora liberdade”, “Gotas de veneno”, “Goiabada cascão”, “Candongueiro” e “Samba do Irajá”, em que homenageia o bairro que é meu também.

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