Nem tudo era italiano …

Este brilhante trabalho foi apresentado originalmente em 1995 como dissertação de mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em História da PUC-SP com o título : “A população pobre nacional na cidade de São Paulo – virada do século (1890-1915). Foi publicado pela Annablume/FAPESP apenas três anos depois da defesa, em 1998 e, dez anos depois, já ganhava sua terceira edição, que é esta da foto ao lado.

Carlos José Ferreira dos Santos é historiador e professor universitário da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), em Ilhéus-BA, tendo se graduado em história pela Unesp-Franca, mestrado pelo Programa em Estudos Pós-Graduados em História pela PUC-SP e doutorado pela FAU-USP.

Nem tudo era italiano é uma pesquisa bastante original sobre as populações pobres nacionais que viviam na cidade de São Paulo na virada do século XIX para o XX.

Intrigado pela imagem da São Paulo que emergia tanto de documentos oficiais da época quanto da historiografia produzida no período posterior, Carlos José parte da pergunta-chave “Era tudo italiano em São Paulo na virada dos séculos XIX e XX” para tentar localizar onde viviam e o que faziam os brasileiros que estavam em São Paulo na virada do século. Portanto, um dos objetivos do trabalho é demonstrar que, ao contrário do que era veiculado pela elite paulistana da época, através dos censos, anuários e demais documentos oficiais produzidos pelos governos municipais e provinciais, nem tudo era italiano nesta cidade entre os anos de 1890-1915.

No decorrer de sua pesquisa, Carlos José mostra a presença de outras cores e matizes de outras experiências étnicas e culturais, como bem disse Heloísa de Faria Cruz na apresentação do livro, e complementa:

“Questionando à contrapelo à Belle Époche paulistana, desvela a construção ‘em negativo’ de outros sujeitos, os pobres, ‘todos pretos ou quase pretos de tão pobres’, os trabalhadores pobres nacionais”.

Além das fontes oficiais, Carlos José também faz bom uso de memorialistas, cronistas, periódicos e fotografias da época como fontes importantíssimas no intuito de identificar onde estavam as camadas populares nacionais na cidade de São Paulo, propositalmente suprimida e excluída do progresso da desejada metrópole. O esforço do autor é localizar, nos silêncios destes documentos ou escondidos nos cantos das fotos, como se fossem figurantes, quem eram esses sujeitos esquecidos da história, onde eles trabalhavam, como subsistiam e, de sua maneira, como resistiam às transformações impostas por uma São Paulo que crescia cada vez mais e que, através deste crescimento, buscava a substituição de toda esta camada social composta por negros, mestiços, caboclos, mulatos, índios e caipiras, dentre outros, pelos celebrados imigrantes europeus (italianos, na maioria).

No primeiro capítulo, “Os elementos indiscutíveis de nosso progresso”, o autor busca fazer uma recuperação crítica do projeto modernizante e de branqueamento para a cidade. Nesta parte inicial do trabalho suas fontes principais são as estatísticas, nas quais analisa minuciosamente os censos e anuários, buscando os silêncios, omissões e inversões, para dar visibilidade as transformações étnicas e demográficas da população paulistana num período mais alargado do que o da pesquisa (1872-1920).

O capítulo II, intitulado”Em busca da presença dos nacionais pobres”, é o mais marcante da obra, pois nele o autor busca estabelecer os espaços e modos de viver e pensar das populações nacionais pobres, relacionando suas vivências aos processos de luta que constituíam a cidade. Ainda mencionando a apresentação de Heloísa Faria Cruz:

“Através da leitura detalhada de fotos que, em geral, destacavam o progresso e a modernindade da vida urbana, em segundo plano, nos cantos, fora do foco central, o autor identifica os homens negros descalços transportando sacos, conduzindo carroças, mulheres com tabuleiros, trouxas ou embrulhos, crianças descalças em trajes caseiros.

Busca remapear socialmente o centro e outros espaços da cidade, indo além da representação elegante e europeia do Triângulo e encontra becos, ruas alagadas, quiosques, mercados, igrejas, terreiros, batuques, congadas, caipós, na Várzea do Carmo, no Largo das Casinhas, no Largo do Rosário, no sul da Sé.”

Abaixo disponibilizamos duas fotos para exemplificar o método utilizado por Carlos José para analisar as fotos da cidade em busca da presença dos nacionais pobres.

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Na foto acima, cuja intenção era mostrar o melhor do comércio da cidade, é possível flagrar um carroceiro circulando na rua bem ao fundo da imagem e, um pouco mais adiante, um negro está parado observando o movimento.

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Já nesta outra foto, o autor destaca as lavadeiras negras que desciam até a Várzea do Carmo para exercerem seu ofício. Como destaca Carlos José, alguns espaços da cidade, como o Carmo, eram marcados pela presença dos nacionais pobres que, poucos anos depois, foram vítimas de processos de higienização na virada do século, sob a desculpa da modernização e do progresso da cidade, que acabou expulsando-os dali para outras regiões mais periféricas da cidade.

No Capítulo III, “Serviços de Negros: na cadência de Modas indígenas e africanas”, Carlos José faz a crítica ao discurso da desqualificação dos “serviços de negros” e aponta muito bem a natureza “subversiva e inventiva das formas de sobrevivência e práticas culturais dos nacionais pobres”. Aqui seu objetivo é apontar ofícios, biscates e ocupações casuais e temporárias que pouco foram examinadas pela historiografia do trabalho e considerado como serviços de negros.

“São carroceiros autônomos, coletores de lixo, lavadores de casa, cavoqueiros, limpadores de trilhos, empregados das cocheiras, quitandeiras e quituteiras, lavadeiras e vendedores ambulantes, como os flagrados em algumas fotos publicadas em seu livro”.

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Na foto acima, o detalhe de trabalhadores negros no ofício de catadores de lixo e, abaixo, um limpador de trilhos é flagrado no exercício de sua atividade por volta de 1917.

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PALAVRAS FINAIS

Embora o livro tenha como tema a São Paulo da virada do século XIX para o XX, ele é bastante atual, pois mostra como se deu os processos de exclusão dos brasileiros pobres, em sua maioria negros, que viviam no centro da cidade no período pesquisado. Hoje, uma vez mais, estamos em pleno processo de higienização do centro onde as camadas mais pobres da população estão sendo retiradas com extrema violência para liberarem o espaço para os grandes especuladores imobiliários. Além disso, ainda tem a questão da posição do negro em uma sociedade pós-abolição, apontando claramente a condição em que viviam e os ofícios aos quais foram relegados, determinando sua condição de extrema pobreza e a imensa dificuldade de romperem com esse quadro por não terem acesso à educação. Tema este que viemos tratando nos últimos meses ao falarmos da necessidade da implementação do sistema de cotas raciais.

Para concluir essa breve e despretensiosa resenha, nada melhor do que as palavras da orientadora da pesquisa, a já citada Heloísa de Faria Cruz, que diz:

“Com seu trabalho, Carlos José nos propõe uma São Paulo onde nem tudo era italiano e contribui para uma compreensão dos processos de exclusão, ontem e hoje, pois joga luz nos silêncios da historiografia que tratou sobre o tema das cidades e do trabalho no período”.

Fonte: Um Historiador

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