Nos rastros de uma Manaus Negra e Africana

Fotografias de africanos, negros e mestiços retiradas em um prédio antigo na Rua da Instalação no Centro de Manaus pela expedição de Luiz Agassiz e Elizabeth Agassiz em 1865. Outras podem ser encontradas no livro organizado por Maria Helena Machado e Sasha Huber intitulado “Rastros e raças de Louis Agassiz: fotografia, corpo e ciência, ontem e hoje”. São Paulo: Capacete, 2010.

Manaus Negra

A história da cidade de Manaus padece comdiscursos laudatórios e recortes preconceituosos que pouco esclarecem sobre os processos de construção espacial, cultural e socioeconômico de sua urbanidade. Ora retratada como uma entidade, quase um espirito da floresta, “encantada pelas iaras e uirapurus”; ora como “Paris dos trópicos” – experimentando o fausto da economia gomífera, dos costumes europeizados, cujo palco principal para a encenação do “ethos aristocrático daBelle Époque” é o Teatro Amazonas  –, a trajetória da cidade assim narrada oculta vivênciasimportantes. No máximo fala-se sobreas contradições entre costumes indígenas e costumes europeus. Contudo, pouco se diz sobre as experiências de africanos e seus descendentes na construção de uma cultura urbana em Manaus.

Em meados do século XIX, apopulação da recém criada capital era formada majoritariamente por pessoas de origem indígena, entre gentios, tapuias e caboclos. Além da diminuta população reconhecida como “branca”, haviam milhares de pretos, pardos, mulatos, cafuzos, retintos, homens e mulheres negros nascidos no país, e também africanos, entre escravos e livres.De todos os cativos da província, mais da metade vivia em Manaus, trabalhando nas poucas ruas da cidade e seus subúrbios.Eram negros “aguadeiros” que carregavam, juntamente com índios, água das fontes e igarapés para vender aos cidadãos. Eram os “negros de ganho” alugando seus serviços, quer fosse para carregar pedras, colunas ou mercadoriasno cais, quer fosse nos serviços domésticos. Havia ainda os negros carroceiros que faziam o transporte dos habitantes para diferentes lugares da cidade; os negros de “bons costumes”, recomendados como vendedeiras, quitandeiras, engomadeiras, costureiras, sapateiros, ferreiros, carpinteiros, entre outros. Vez por outra, o preto Avertano da Silva Dantas fugia à regra, banhava-se pelado nos igarapés da cidade e acabava preso no calabouço por “desrespeitar” o Código de Posturas Municipais.

A partir das décadas de 1860 e 1870, Manaus passa por sensíveis modificações urbanas e por um progressivo crescimento populacional quando trabalhadores, sobretudo nordestinos, serão atraídos para a exploração da borracha. O fluxo crescente de pessoas trazia não apenas migrantes de países europeus, mas principalmente os “nacionais”, entre livres  e escravos. Navios, vapores, canoas e mercadoriasfaziam circular experiências e diminuíam as fronteiras sociais entre os menos afortunados. Em 1872, o presidente da província, José de Miranda da Silva Reis, lamentava o aumento populacional tendo em vista “o atraso em que se acha a civilização das classes sociais menos consideradas compostas por indivíduos menos educados e instruídos”. Escravos, alforriados, africanos, crioulos, escravos fugidos, indígenas de diversas etnias, bolivianos, peruanos, cearenses, maranhenses, portugueses, franceses, entre outros, compartilhavam espaços sociais no ambiente de trabalho, nas tabernas, nas praças, nos portos da cidade;ali produziam culturas urbanas e novas territorialidades, misturavam-se tanto nos conflitos quanto nas solidariedades.

Assim, índios e negros também escapavam das ações “civilizatórias” e da ordem escravista, preservando modos tradicionais de vida. Em março de 1864, o senhor Manoel Thomaz Pinto solicitava aos inspetores de quarteirão “a captura de sua preta escrava de nome Izabel”. A escrava havia fugido e “vagava pelos subúrbios da cidade”. E não era a primeira vez que o coronel Manoel Pinto pedia ajuda da policia. Meses antes, Izabel havia sido presa “a requisição do senhor” por estar fugida. A escrava de nome Ana praticava entre um serviço e outro as suas “desordens” até que foi presa. Pouco tempo depois foi a vez de Maria Salomé ser presa por “andar fugida”. Outro senhor que tinha muitos problemas com sua escravaria era Joaquim Pinto das Neves. Meses depois de José, “um mulato claro dos cabelos anelados e dentes limados”, fugir “intitulando-se forro”, o escravocrata se viu afrontado por Benedita. Ela fugiu tentando escapar da sentença de cem açoites por insultos cometidos. Meses depois foi capturada e açoitada.

Para os escravizados, alugar-se nos serviços domésticos, nas obras ou pelas ruas, com o consentimento prévio do senhor, foi uma estratégia eficaz para acumular dinheiro. Parte do arrecadado era repassado ao proprietário e o restante serviria para alugar alguma casa para morar e viver sobre si. Com um pouco mais de esforço era possível comprar a carta de liberdade. Em 1868,a policia se via às voltas com um roubo ocorrido na casa do fogueteiro da cidade, o senhor Sebastião, e o escravo Manoel foi recolhido à prisão por ser o principal suspeito do crime. Tudo porque o cativo mantinha uma mulher, sua amásia, residindo em uma casa alugada no valor de 6 mil réis bem defronte à casa do fogueteiro.

Como se pode ver, casas alugadas por escravos eram alvo da constante suspeita policial. Em meados de 1870, corria pelos jornais um apelo feito às autoridades para que se tomasse as “providencias necessárias” contra um constante ajuntamento de escravos vendedores. Eles eram acusados de atentar contra a “honra da pública moralidade”.  Dizia assim o jornal oCatechista: “principalmente das 6 às 9, juntam-se nas rampas em frente às casas do negociante Antônio Joaquim da Costa, nas pontes, e outros lugares, troças de vendedeiras e outras desocupadas que de envolta com marinheiros, escravos, dão bem triste exemplo de moral”. Ao ocupar tais espaços a população negraos transformavaem territórios de resistência social e cultural.

E vários lugares da cidade surgiam informados porvivências africanas.O mesmo Catechista, em 1871, publicava uma nota aos policiais: “É muito conveniente que a polícia preste sua atenção para os cambembes que existem alugados para os escravos na travessa da matriz e na de Tamaracá”. O nome dado aos lugares alugados pelos escravos se refere a uma localidade do interior de Angola às margens do rio Cuanza e Pundo Andongo, antiga capital do Reino do Ndongo. Por certo, as experiências vividas em África foram trazidas na diáspora e atualizadas pelos vários espaços de Manaus, especialmente naqueles onde se morava e trabalhava. Na semana que se seguiu à denúncia dos “cambembes alugados”, o redator do Catechistaameaçava “a certo janota que a pouco chegou à esta cidade” de “escovar-lhe as costas com um chicote de couro cru” e enviá-lo, como que expurgado, para “passear na Costa d’África” – um bairro de Manaus onde grande parte dos trabalhadores de origem africana residiam, os “africanos livres”, sujeitos resgatados do tráfico atlântico, ilegal no Brasil desde 1831.

Os africanos livres, que trabalhavam em diversas obras públicas, também sofriam com as suspeitas policiais. Eles costumavam sair do bairro Costa da África, onde residiam, atravessavam toda a cidade, passando quase que obrigatoriamente pela rua Brasileira (atual 7 de setembro), para ficar as noites nos riachos dos Educandos Artífices, onde moravam outros parceiros, e ali causavam às vezes “desordens com bebedeiras e rixas”.Mesmo não sendo considerados “operários da melhor qualidade”, como afirmou certa feita Manoel Clementino da Cunha, presidente da província, os africanos supriam a “necessidade de trabalhadores” e davam “andamento ao serviço”. Discipliná-los, portanto, serviria ao “progresso material da cidade”. Assim, atuavam na limpeza da casa em que funcionava o Educandos Artífices, nas obras do cemitério São José, nas obras da Igreja Matriz, na retirada de pedras para a construção de prédios públicos, na reforma da enfermaria militar e no palácio da presidência. Outros africanos agiam com maior parcimônia, como Joaquim Laudelino que colocou sua “rocinha situada na estrada da Cachoeira Grande” à venda, e o africano Sérgio que ofereceu em anúncio suas duas casas no alto da Campina na rua da Palma.

É certo que sobreos costumes da população negra de Manaus recaía uma forte repressão que retirava esses sujeitos do espaço público e os “disciplinava” no calabouço. Ali, correriam riscos de morte ao experimentar o ambiente das cadeias da província. As celas não respeitavam as exigências da Constituição Imperial: eram inseguras, sujas, abafadas, acanhadas. “Embriagados” e para “Averiguações policiais” foram presos incontáveis vezes os africanos Onorato Angola, Estevão Angola, Leonardo Angola, Roberto Benguela, Constantino Angola, Antônio Pedro, Manoel Benguela, Mathias Calabar, Vicente Congo, Braz Congo. O africano Domingos Mina foi preso por solicitação do Administrador das obras públicas. Francisco Mina foi preso por embriagues. O tapuia Marcolino foi preso e recolhido ao calabouço sob acusação de ter assassinado o cafuzo liberto de nome Antônio. Por estarem embriagados e saírem assoviando pela cidade foram presos os africanos Simão Pinto e Militão. Em novembro de 1862, o escravo de nome Albino tentou fugir com a ajuda do tapuia Manoel Bernardino e acabaram presos. Em 1865, o africano Afonso foi preso por proteger em sua casa um soldado desertor do corpo de artilharia. Acusado de “assuada”, ou seja, estar armado para fazer “balbúrdia”, foi preso o pardo José Joaquim Adorno.

As histórias aqui contadas ajudam a revelar outras representações sobre a cidade de Manaus tomando como protagonistas históricos as culturas africanas, as comunidades negras, os fugitivos e os insubordinados. Não se podeconsiderar a construção da cidade apenas como resultado dos conflitos entre a cidade idealizada pelas elites locais e as tradições indígenas. É preciso acrescentar ao quadro um outro elemento: a cidade que foi instituída também por homens e mulheres negros de origem africana.


*Ygor Olinto Rocha Cavalcante é Mestrando em História Social (UFAM) e Professor das Escolas IDAAM. Vencedor do I Prêmio de Monografia e Dissertação do Concurso Nacional de Pesquisa sobre Cultura Afro-Brasileira, Comunidades Tradicionais e Cultura Afro-Latina (Fundação Palmares/MEC – 2010). É autor de “’Fugido, ainda que sem motivo’: escravidão, liberdade e fugas escravas no Amazonas Imperial. In: SAMPAIO, Patrícia. O fim do silêncio: presença negra na Amazônia. Belém: Editora Açaí; CNPQ, 2011. É autor de “Histórias de Joaquinas: mulheres, escravidão e liberdade (Brasil, Amazonas: séc. XIX)”, em Revista de Estudos Afro-Asiáticos, n. 46, Salvador, 2012. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Culturas de Migração e Trabalho na Amazônia (GPMTAM/PPGH/UFAM).

Fonte: D24AM

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