A Nova Lisboa Africana. Jovens, talentosos e negros

Nina Simone terá pensado neles quando, em 1969, cantou “To Be Young, Gifted and Black”. Mesmo que este ainda não seja o mundo que imaginou. Diferentes da geração dos seus pais, que na maior parte dos casos os trouxeram de África para o país, estão a mudar a paisagem lisboeta

Por Mariana Pereira, do DN

Yolanda da Purificação Mambo Gaspar Tati. A síntese que ela é está logo no nome. Tati é o nome da sua família de Cabinda, Angola, onde nasceu. Purificação Gaspar poderia ser o nome de alguém nascido em Lisboa, cidade para onde se mudou com a família aos três anos. “Tinha vergonha do meu nome. É gigante e muito africano, e o facto de ser com “y”… Não gostava de o dizer todo. Hoje em dia amo.

Tal como no princípio tinha muita vergonha no cabelo.” Já não é assim. Nos últimos dois anos usou o cabelo afro, natural. Antes, rapou-o, como fizera Nina Simone. “A minha referência”, diz logo. É ela naquele quadro atrás de Yolanda.

A fotografia foi tirada por Barrie Wentzell em 1969, ano em que Nina editava a canção To Be Young, Gifted and Black (“Ser jovem, talentoso e negro”, em português), que se tornaria um hino do movimento pela igualdade de direitos civis dos negros nos Estados Unidos. E ela, que dizia haver “milhões de rapazes e raparigas” assim, poderia ter cantado essa canção para Yolanda Tati.

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Yolanda Tati, engenheira petrolífera

  |  JORGE AMARAL / GLOBAL IMAGENS

Chega a correr depois de atravessar Lisboa num final de tarde. Aos 24 anos, é engenheira petrolífera na Galp. Quando acabou o primeiro ano do mestrado, no Instituto Superior Técnico, tinha já sete propostas de petrolíferas de todo o mundo. Encontramo-nos no Tête-à-Tête, a casa de hóspedes que Yolanda imaginou e dirige desde novembro de 2015, quando regressou de um único ano de trabalho em Luanda, na francesa Total.

Interrompida pelos hóspedes que vão tocando à porta, ou pela espanhola que lhe elogia a casa, conta que só nessa altura, quando voltou à Angola de que poucas recordações lhe restavam da infância, percebeu que durante toda a sua vida em Portugal fizera parte de uma “classe baixa, imigrante”. “Só tardiamente tive noção de que durante muito tempo eu fiz parte dessa classe que desconhecia, e que não tinha estratificada na minha cabeça.” Não o sabia, mesmo que fossem “de abdicação e de sacrifício” as histórias que ouvia do pai, engenheiro de Geologia e Minas, que deixou de ajudar os pais na casa comercial quando foi estudar para a Argélia, e da mãe, que deixou a escola para ajudar a criar os seus seis irmãos.

“Tenho muita pena que não exista uma cadeira para dar a conhecer a cultura africana”

Os seus pais mudaram-se para Lisboa quando eram jovens adultos. Como a maioria da sua geração, sempre com o propósito de um dia regressarem a Angola. Educaram-na, e aos três irmãos, para saberem o que era importante, explica na sua forma de falar, veloz, alegre, quase que em gorjeios. Foi assim naquele que aponta como “o acontecimento que descreve quem eu sou, aqui, hoje em dia, e que foi chave na minha vida”.

“Tive o azar de ter tido uma educadora de infância que me maltratou, quando eu era muito pequena, dos três aos cinco anos. Gozava com o meu nome, dizia que eu cheirava mal, punha-me de parte, dava-me palmadonas. Os meus pais sempre disseram: “Tens de resolver os teus problemas no teu infantário com as tuas pessoas.” Eu lembro-me de ir a chorar para casa e de eles dizerem: “Se vieres a chorar ainda ficas de castigo.” Gozavam comigo por ser negra, gorda, por ter o nome que tinha. Sempre vivi neste registo de me superar e provar aquilo que eu encerrava em mim contra todas as expectativas.”

Naquele ano que passou em Luanda, entre 2014 e 2015, Yolanda diz ter percebido “que era muito mais portuguesa do que angolana”. Hoje, com dupla nacionalidade, conta que o seu sotaque português era malvisto no seu país de origem, e que assim que era escutado os preços no mercado inflacionavam. Percebeu que tinha criado um “ambiente um bocado fantasioso” quanto a Angola. Ainda que em Portugal fosse “aos concertos de Aline Frazão e do Paulo Flores – que é o nosso suprassumo – ou às sessões de leitura do Ondjaki”. “Ao dar-me conta da necessidade e esforço para me adaptar, perguntei-me: Se me estou a esforçar tanto quer dizer que não sou daqui?”

Se tiver de recorrer aos números, Yolanda Tati dirá que é “51% portuguesa e 49% angolana”. Por isso, afirma ter “muita pena” que em Portugal “existam tantos africanos e não exista uma cadeira à parte onde se desse a conhecer parte da sua cultura. Tudo o que eu cheguei a saber sobre Angola foi fruto do meu esforço”. Quanto aos seus pais, depois de 20 anos como imigrantes, “depois deste sacrifício todo, de terem formado os filhos, sempre naquela ânsia de voltar e de construir a casa deles”, regressaram a Angola. Vivem em Benguela.

Um príncipe do gueto em Lisboa

Na Quinta do Mocho, Sacavém, um grupo de crianças brinca na rua e corre para uma senhora que se aproxima a arrastar um colchão. “Quer ajuda? Quer ajuda?”, perguntam sucessivamente. Seguem com ela. Avistamos Firmeza, assim o tratam nesta zona periférica de Lisboa. O Cílio Manuel ficou para trás. Este é o DJ Firmeza, um dos principais nomes da editora Príncipe Discos, de que fazem parte DJ Marfox, DJ Nigga Fox ou DJ Maboku.

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Yolanda Tati, engenheira petrolífera

  |  JORGE AMARAL / GLOBAL IMAGENS

Não é preciso citar o que escrevem sobre eles publicações como aPitchfork, a Rolling Stone ou o Guardian para descrever a editora que conta quatro anos e tem levado a música de dança oriunda da periferia de Lisboa – cujas raízes se entendem até ao continente africano – ao mundo inteiro e, antes disso, ao centro de Lisboa. A Noite Príncipe é já uma instituição no MusicBox, onde todos os meses os produtores da editora atuam. “Quando é uma música boa, todo o mundo gosta. Era só dar oportunidade para ouvir, para entender, era só isso que nos faltava. Porque era bom e que ia movimentar, isso nós já sabíamos”, lança Firmeza. Recentemente, o Institute of Contemporary Arts, em Londres, dedicou uma noite à Príncipe, que acabava de lançar a coletâneaMambos Levis d’Outro Mundo com a prata da casa. Como ele.

Pedimos para o fotografar longe dos murais das empenas, assinados por artistas como Vhils, que hoje em dia constituem o novo rosto do bairro. Leva-nos para o terraço de um dos prédios. Há pequenas divisões metálicas com roupa estendida. Dali vemos os terraços de todos os prédios, para onde os jovens sobem para estar juntos, em festa ou não, e o rio Tejo, ao fundo.

“A stora só dava a aula quando a Grândola, Vila Morena acabava”

Filho de angolanos, Firmeza nasceu em São Sebastião da Pedreira. Nada mais lisboeta. Cresceu a ver as festas dos pais e demais africanos – cumprimentamos uma família de guineenses sentada à porta de casa antes de chegar ao seu prédio – no chamado Mocho antigo. “Eu sei porque é que sou assim, porque gosto de música. Havia semba, kizomba, plena, techno dos anos 90, pop, funaná, pimba. Angola é uma cultura que adapta tudo”, explica. Entramos no pequeno quarto onde tudo acontece. Fez a primeira batida aos 11 anos, este ano faz 22.

Firmeza liga o computador e as colunas e logo parece que estamos num clube noturno. Uma diferença: a janela está entreaberta, o som altíssimo, há vizinhos sentados à porta e nem um entre eles levanta a cabeça. Ninguém estranha que haja música no Mocho, seja a que horas for. É como ouvir crianças a brincar ou os tachos à hora de jantar.

Os nomes dos músicos angolanos Waldemar Bastos ou Ruy Mingas não lhe dizem nada, mas um dia a professora de Cidadania, do curso que frequentava no centro de emprego, mostrou-lhe Grândola, Vila Morena e a voz do Zeca Afonso. “Astora só dava aula quando essa música acabava. Ficávamos ali todos a ouvir.” Um dia fez um remix, “mesmo a bombar”, e levou-o. “Com essa música, em todo o lado onde toca tem de se tirar o chapéu.” Já a tocou em público. E mesmo que com Zeca Afonso tenham vindo “os direitos”, como diz, afirma que nunca teve qualquer luta contra o racismo.

Se a polícia por vezes entra Mocho adentro para mandar desligar a música alta à noite e o faz em equipas de intervenção rápida, conta, Firmeza não atribui nada disso ao facto de ali residir população negra: “É mais por ser um bairro social.” Não partilha, por isso, a experiência da população negra do bairro da Cova da Moura, Amadora, que acusou a polícia de violência, racismo e tortura pelas suas ações de resposta, em fevereiro de 2015, depois de um jovem ter atirado uma pedra contra uma carrinha.

Garante que em cinco minutos conseguem montar o som digno de um festival e lembra uma dessas noites em que a polícia chegou ao bairro. “Foi quando fiz os meus 18 anos. À uma da manhã a rua estava cheia. Chegam três carrinhas. “Todos na parede!” Eles vêm com coletes de choque. Tinha um polícia que queria falar comigo. E eu disse: “Olha, já vão me dar. Fui lá fora. Era um polícia que me viu crescer. Nós tivemos cá um acidente. O meu padrasto deu um tiro na cabeça da minha mãe, que ficou invisual. O polícia que me tirou nesse momento foi o que me chamou. São coisas que mexem… Cada um tem o seu trabalho, tem é de o fazer bem.” O polícia não conseguiu ajudar naquela noite. “No fim, deitaram fora as bebidas, cortaram tudo [as fontes de eletricidade]. Foram embora, montámos noutro sítio. Mas isto cansa.”

Perguntamos-lhe se alguma vez pensou em mudar-se para Lisboa, onde toca desde os 15 anos, nas noites africanas do então Alcântara-Mar, ainda antes do MusicBox. “Viver lá não, só ficar lá uns tempos e ganhar mais inspiração. Penso em viver fora, mas não completamente fora do mundo [entenda-se, Quinta do Mocho]. Assim nos arredores. O teste é cá. Aqui é a base. ”

Sabe que é ouvido em Angola, mas ainda não foi lá. “Penso ir em dezembro, se Deus quiser.”

“O cabelo afro é uma coroa”

Miriam Lopes só apresentou o atual marido ao pai um ano antes de casarem. Namoravam há sete, sempre em Lisboa. Mas na cultura angolana não é costume levar o namorado para casa, o pai de Miriam é angolano e a mãe cabo-verdiana. “Tem de pedir a minha filha em casamento de joelhos em minha casa e com toda a tradição. Tem de dar um dote, dar um fato, o traje típico.” O marido de Miriam é espanhol, e fez tudo isto. O pai de Miriam usou o traje oferecido pelo genro.

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Miriam Lopes, proprietária de um espaço de estética, o MYA’S

  |  JORGE AMARAL / GLOBAL IMAGENS

Antes de abrir o salão de estética MYA”S, onde a encontramos num dia de semana de manhã, em Benfica, Miriam trabalhou dos 15 aos 17 anos num salão de cabeleireiro da Cova da Moura, depois em atendimento ao público numa série de lojas; tornou-se modelo, para aprender a ter uma postura correta, participou em concursos como a Miss CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa), “para aprender a saber estar”, fez formação em estética e estudou Conservação e Restauro na Faculdade de Belas-Artes. Há seis meses abriu portas.

“O cabelo afro é muito bonito, é uma espécie de coroa, não é?”, pergunta retoricamente, enquanto penteia um cabelo assim. “Na altura em que pensei abrir o MYA”S importei produtos para cabelo afro, porque antes usávamos produtos para cabelo frisado ou danificado, que era o mais próximo. Só que o cabelo afro não é isso. A minha avó não desfrisa o cabelo, eu desfrisei a primeira vez com 19 anos, mas tenho amigas que desfrisaram pela primeira vez com oito, seis anos. Porque era mais fácil para cuidar.”

Hoje, adianta, já existem muitas raparigas e mulheres em Lisboa que querem fazer a transição de volta para o seu cabelo natural. Mas se, no salão, tiver “uma cliente africana que diz que vai fazer a transição” a portuguesa pergunta: “Mas por que é que vais deixar de o ter liso? Fica-te tão bem. O afro depois fica um bocado despenteado.” Não. O afro é afro. É uma coroa. Nota que “ainda há muito estigma” e muita gente preocupada com o que vai ser dito no emprego: “Escritórios, advogados, e tudo o mais, até na estética.” Chegaram recusar a atendê-la em cabeleireiros, alegando que não sabiam trabalhar com um cabelo afro. “Daqui a quatro meses no máximo”, Miriam diz que rapará o cabelo, agora alisado, para o deixar crescer tal como é. Afro.

“A minha mãe disse-me: Não, filha, tu não és preta. Preto é o chão. Tu és negra”

Tinha 18 anos quando os pais, que se conheceram em Portugal, se divorciaram. Miriam abdicou então da tripla nacionalidade e escolheu ficar apenas com a portuguesa. Todavia, aos 28 anos, diz estar “numa mistura entre África e Portugal”. Como acontece nas famílias cabo-verdianas, onde quase sempre impera a mestiçagem, Miriam cresceu entre primos e avós com a pele muito clara e outros com a pele muito escura. “Eu só percebi que era – como eles diziam – preta porque uma colega me disse na escola que eu era. Tinha seis anos. Para mim nós éramos todas iguais. Os meus primos de primeiro grau são brancos. A minha mãe disse-me: “Não, filha, tu não és preta. Preto é o chão, a parede, os cabelos. Tu és negra, da cultura africana, e os africanos têm a pele negra.” Eu não tinha a noção do que era ser negro, nem sabia que era africana em casa.”

Há aspetos na sua vivência familiar que são de cariz africano, como, exemplifica, “o respeito pelos mais velhos: se a minha avó manda uma tia minha de 50 anos sentar, mesmo que ela tenha dez filhos, ela vai-se sentar. E por norma na cultura africana não existe essa coisa de pôr os pais num lar”. Por outro lado, teve “uma mãe que fala connosco de sexo, de drogas. E isso normalmente não acontece na cultura africana, é um tabu muito grande. A minha avó não fala, o meu pai não fala, é algo completamente descabido”.

Descobriu a diáspora pela lente

Comecemos pelo nome, outra vez. Herberto Smith. Quando os ingleses foram trabalhar para a Estação do Cabo Submarino São Tomé e Príncipe, entre o final do século XIX e o início do século XX, “levaram técnicos africanos”. Entre eles ia, da Serra Leoa, “o senhor John Benjamin Smith, serralheiro mecânico, pai da minha avó Ludí (Maria da Graça Smith)”, conta o próprio. Filho de são-tomenses, nasceu na Guiné–Bissau, de onde não conhece nada, e cresceu na capital de São Tomé. Aos 18 anos veio para Portugal acompanhar o pai, que veio receber tratamentos médicos.

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Herberto Smith, fotógrafo

  |  JORGE AMARAL / GLOBAL IMAGENS

Fez a faculdade, experimentou teatro, trabalhou no Frágil, na noite do Bairro Alto, onde o foram buscar para a agência de modelos da estilista Fátima Lopes. A meio do caminho de tudo isto, descobriu a fotografia, que é hoje o seu ofício. Entretanto, Portugal tornou-se o seu país, Campo de Ourique tornou-se o seu bairro, e é ali que crescem os seus dois filhos.

Quem conhecer o seu trabalho de hoje, que passa também pelo áudio blogue Afrolis, dirigido por Carla Fernandes e dedicado a contar as histórias e a produção contemporânea de afrodescendentes em Portugal, não diria que Herberto passou anos sem contactar com elementos da diáspora. Foi no regresso a Lisboa, depois de uma temporada de trabalho no norte do país, que começou a ver “muitos jovens africanos, negros, que não via representados nos media. Porque normalmente o que aparece é no gueto. Algumas daquelas pessoas também vivem naqueles bairros, mas são lisboetas e não são representados. Achei que aquelas pessoas eram giras e mereciam uma abordagem”.

“Se eu desatar a correr, a reação da polícia não é a mesma se for um tipo branco”

Começou a fotografá-los para “chegar a eles e perceber o que é que os movia, como era a condição em que eles viviam”. A ideia do que faz, conta por entre a confusão de um dia de semana no mercado de Campo de Ourique, “é empoderar as pessoas, para que sejam representadas e vistas com dignidade e com respeito”.

Fora do seu trabalho não ligado à diáspora, tem fotografado figuras do rap, sobretudo crioulo, de bairros periféricos de Lisboa, como o MKA (Más Ki Ás), no 6 de Maio, Amadora. “Comecei por tentar incutir uma certa literacia visual, porque eles têm de ter consciência de como se autorrepresentam. Provavelmente, mesmo que algumas coisas existam no bairro, se eles fazem a música e se representam como criminosos, ou como elementos problemáticos da sociedade, isso só vai reforçar a forma como são vistos.”

Quanto a si próprio, diz nunca ter tido muitas dúvidas em relação à sua identidade. “Nunca tive essa confusão de ser europeu, ou afro-europeu. Eu tenho grandes raízes africanas, tenho essas referências, e tenho consciência de como é que os outros me veem.” E quer passar essa consciência aos filhos, “de como os outros os veem pelo simples facto de terem a tonalidade de pele diferente, ensiná-los a gostarem de si, a protegerem-se nessa situação”.

Pedimos-lhe que explique. “É difícil, para quem não é negro, ter consciência de como é que, às vezes, as coisas que aparentemente são subtis podem ter um grande impacto. Posso dar um exemplo que pode parecer banal mas é muito presente. Como homem negro, se estiver a andar na Baixa e houver um grupo de polícias, se eu de repente desatar a correr, a reação não é a mesma se for um tipo branco que resolve correr. É como alguém que vive num bairro menos privilegiado e que se for a um centro comercial, ou mesmo eu – e isto não é uma questão de paranoia -, se calhar os seguranças prestam mais atenção a ti do que a outra pessoa.”

A Guiné espera-o na reforma

Filipe Henriques veio para Portugal como refugiado. Tinha 18 anos e a Guiné-Bissau estava em guerra civil. Quando estavam a embarcar para Cabo Verde – o dia era 2 de julho de 1998 -, o pai decidiu ficar em terra para ajudar quem precisava e defender o que era deles. “A partir de hoje vais ter de ser homem”, disse-lhe. Os irmãos já tinham saído num barco francês. Filipe ficou com a mãe. Dois dias depois chegaram a Cabo Verde, de onde partiram para Lisboa, e encontraram a família.

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Filipe Henriques, cineasta

  |  JORGE AMARAL / GLOBAL IMAGENS

Integrou a primeira turma do curso de Cinema na Universidade Lusófona. “Éramos 46, no último ano, sete”, conta na sua casa, em Almada. O gosto veio-lhe das noites em que ligavam o projetor no quintal de Bissau e a luz fazia aparecer o Bruce Lee. Depois vieram as cassetes em casa dos amigos ricos, no bairro dos bancários. “Aos 8 anos disse ao meu pai que queria fazer filmes. Lembro-me de ele ter feito simplesmente um cafuné e sorriu.”

Mas nasceram, em Portugal, filmes como Vejo-te Quando lá Chegares (2008) ou O Espinho da Rosa (2013), que correu o mundo e foi dez vezes premiado, sobretudo em círculos de cinema negro, como o Festival Internacional de Cinema Negro de Berlim, Colónia e Hamburgo. Vem de uma história tradicional africana, Pé-de-Cabra. “A Guiné-Bissau dá-me inspiração, foi onde eu cresci como ser humano. Todo o imaginário vem dali. Portugal fornece-me a capacidade intelectual e técnica de trabalhar esse imaginário. África tem uma série de histórias que podem ser contadas. O cinema americano já está esgotado”, comenta.

“A Guiné-Bissau dá-me a inspiração. Portugal fornece-me a capacidade intelectual”

As histórias de que fala contou-lhas o pai na varanda, nas muitas noites sem eletricidade e com muito calor. “Foi assim que eu conheci a maior parte das histórias da Disney. Mas além dessas, havia o hábito de contar as histórias fantásticas, porque África é um continente místico. Os pais não queriam que tu ficasses muito tempo na rua ou que fosses a discotecas, queriam que tu ficasses mais tempo em casa, então contavam histórias terríveis para a malta ficar assustada”, conta a rir.

“De África guardo tudo aqui dentro de mim.” Diz-se um africano. “Não há dúvida nenhuma. E sinto-me parte disto também.” Filipe Henriques tem 37 anos e, como a geração anterior à dele, um dia quer voltar a casa, na reforma. “A Guiné não tem condições para me sustentar a nível de cinema”, justifica.

Tem dupla nacionalidade. A questão da cor da pele apenas vem à conversa no final. “Foram 500 anos de colonialismo na Guiné. E toda essa lavagem cerebral faz que os próprios africanos acreditem que são inferiores. Na Guiné, a maior parte dos africanos tinha o sonho de vir para cá, mas o sonho era limitado: “Eu vou para a Europa para trabalhar nas obras.” Eu vim para cá e nunca permiti que alguém me dissesse que eu não podia fazer alguma coisa.”

Depois contou como o guião de O Espinho da Rosa era rejeitado sucessivamente quando o sabiam negro: “Preto não vende.” O seu aspeto é tão assustador quanto se vê na fotografia ao lado. Nada. Mas Filipe diz que, ao percorrer uma rua, ouve o som dos carros, um a um, a trancar. Depois entra tranquilamente no seu. E sorri.

O engenheiro raro da avenida

Mário Nzualo tem a pose mais descontraída que se possa imaginar. Nasceu em Maputo, em 1989, passou a tenra infância em Portugal e a juventude lá. Aos 18 anos veio fazer-se engenheiro informático e de telecomunicações em Lisboa. O choque foi nulo. Em Maputo já estudava na Escola Portuguesa. Mas há diferenças. O facto de ter uma avó a viver “literalmente no meio do nada”, na província de Inhambane, Sul do país, “sem água canalizada ou luz eletrificada”, e de compreender “que ela não era pobre, mas tinha uma vida diferente, tornou-me muito mais maduro”, admite.

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Mário Nzualo, programador informático

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“Completamente integrado”, e programador na Seedrs, umastart-up que funciona como plataforma de investimento e financiamento de empresas, explica: “Naturalmente, trabalho num meio onde a maioria das pessoas são completamente diferentes de mim. Não há muitos africanos a trabalharem em engenharia informática ou a estudar no Técnico. Mas nunca senti preconceito. A verdade é que é um meio muito skilled. Fui presidente de uma associação europeia de estudantes de Tecnologia. Devo ter sido para aí o primeiro presidente internacional africano. Posso dizer que nunca senti racismo, mas passo os meus dias na Avenida de Roma, entre Alvalade e o Areeiro. E a pergunta é: quão representativo é isso? Consigo perceber que o meu exemplo não é o mais representativo.”

Atualmente, a população estrangeira de Angola em Portugal é de 18 088 pessoas, 38 346 de Cabo Verde, 16 817 da Guiné-Bissau, 2787 de Moçambique e 9 405 de São Tomé e Príncipe. Estes jovens não se contam nestes números, apresentados pelo INE/SEF/PORDATA, relativos a 2015. Não se conhece o número de descendentes de africanos e luso-africanos em Portugal. Quanto à população negra, a lei proíbe que seja feito qualquer estudo estatístico a partir da cor da pele, razão pela qual não é conhecido o número de pessoas negras no país, como de resto na Europa.

Num estudo sobre jovens negros em Portugal, publicado em 2002, Simetrias e Identidades – Jovens Negros Em Portugal, conduzido por Jorge Vala, investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, dos 400 inquiridos a maioria não se identificava com os portugueses brancos. Para 177 destes jovens, a sociedade classificava-os como “pretos”. Será assim em 2016?

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