O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência

Gilroy, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência, São Paulo, Rio de Janeiro, 34/Universidade Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

Eufrázia Cristina Menezes Santos
Professora da Universidade Federal de Sergipe e doutoranda do Departamento de Antropologia – USP

 Do Scielo

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No Prefácio à lª edição de The Black Atlantic (1993), Paul Gilroy aspira que a leitura do seu livro represente uma viagem marítima pelo mundo do Atlântico Negro. Este último termo refere-se metaforicamente às estruturas transnacionais criadas na modernidade que se desenvolveram e deram origem a um sistema de comunicações globais marcado por fluxos e trocas culturais. A formação dessa rede possibilitou às populações negras durante a diáspora africana formarem uma cultura que não pode ser identificada exclusivamente como caribenha, africana, americana, ou britânica, mas todas elas ao mesmo tempo. Trata-se da cultura do Atlântico Negro, uma cultura que pelo seu caráter híbrido não se encontra circunscrita às fronteiras étnicas ou nacionais. Ao longo de 419 páginas o autor repensa a modernidade por meio da história do Atlântico Negro e da diáspora africana no hemisfério ocidental, conduzindo-nos de maneira instigante por rotas de difícil navegação.

A década de 1990 foi rica em discussões de temas como globalização, cultura, identidade, nacionalismo, hibridismo, multiculturalismo. O livro do sociólogo inglês Paul Gilroy, cuja primeira edição em língua inglesa data de 1993, insere-se nesse debate contemporâneo repudiando as perigosas obsessões com a pureza racial, posicionando-se contra as representações do corpo humano como repositório fundamental da ordem da verdade racial. Seu projeto político e acadêmico renova críticas à idéia de raça e preve sua morte como princípio de cálculo político e moral. O livro questiona a definição de cultural nacional introduzida pelo o absolutismo étnico e busca explorar as relações entre raça, nação, nacionalidade e etnia, para colocar em xeque o mito da identidade étnica e da unidade nacional. As discussões sobre cultura e identidade, apresentadas, não acrescentam nada de novo em relação à produção intelectual já existente sobre estes temas. O caráter de novidade está no uso político que faz desse referencial no seu trabalho, para pensar em novas bases a cultura e a(s) identidade(s) negra(s), enfatizando, sobretudo, o problema e os limites da identidade étnica e racial.

No centro de sua análise encontra-se a noção de diáspora, que o autor importou de inconfessadas fontes judaicas para a política e a história negra. No seu quadro de análise, ela não representa uma forma de dispersão catastrófica, mas um processo que redefine a mecânica cultural e histórica do pertencimento. Para Gilroy a diáspora rompe a seqüência dos laços explicativos entre lugar, posição e consciência, conseqüentemente rompe também com o poder do território para determinar a identidade. O autor repudia a idéia de uma identidade enraizada, supostamente autêntica, natural e estável, veiculada pelo pensamento nacionalista negro nos anos 60. Para ele a rede de comunicação transnacional criou uma nova topografia de lealdade e identidade que desconsidera as estruturas e os pressupostos do Estado-nação e redefine as formas de ligação e identificação no tempo e no espaço. O modelo do Atlântico Negro remete ao sentimento de desterritorialização da cultura em oposição à idéia de uma cultura territorial fechada e codificada no corpo. “Sob a chave da diáspora nós poderemos então ver não a raça, e sim formas geopolíticas e geoculturais de vida que são resultantes da interação entre sistemas comunicativos e contextos que elas não só incorporam, mas também modificam e transcendem” (: 25).

As relações estabelecidas em decorrência da diáspora favorecem a formação de um circuito comunicativo que extrapola as fronteiras étnicas do Estado-nação, permitindo às populações dispersas conversar, interagir e efetuar trocas culturais. A referência ao mar e à vida marítima, presente no título e ao longo do livro, tem um sentido poético, mas, sobretudo heurístico. O mar indica idéia de contaminação, mistura, movimento, coerente com a perspectiva de análise adotada que situa o mundo do Atlântico Negro em uma rede entrelaçada entre o local e o global. No seu esquema interpretativo o autor elege o navio como a principal unidade de análise, sua importância histórica e teórica decorre do fato do mesmo ter funcionado como o principal canal de comunicação pan-africana. O navio representa “um sistema vivo, microcultural e micropolítico em movimento que coloca em circulação, idéias, ativistas, artefatos culturais e políticos” (: 38). Para Gilroy, a análise da história política e cultural negra no Ocidente requer uma maior atenção à complexa mistura entre idéias e sistemas filosóficos e culturais europeus e africanos. A mistura não deve ser interpretada como perda de pureza, e sim como um princípio de crescimento que ajudou a formar o mundo moderno. É dele a definição do seu livro como um ensaio sobre a inevitável hibridez e mistura de idéias (: 30).

A análise da cultura do Atlântico Negro é particularmente valiosa, entre outros aspectos, por dar visibilidade a uma face da história cultural obscurecida pelo véu do absolutismo étnico: a relação dos negros com a modernidade ocidental. Este constitui, sem dúvida, um dos principais pontos de análise apresentado. Segundo Gilroy, durante a diáspora, os negros criaram um corpo único de reflexão sobre a modernidade e seus dissabores que continua presente nas lutas culturais e políticas de seus descendentes. No entanto, o racismo moderno não reconheceu os negros como pessoas com capacidades cognitivas, ou mesmo com uma história intelectual. Um dos aspectos mais explorados no livro é o reconhecimento da duplicidade como sinal diacrítico da história intelectual do Atlântico Negro – integra o ocidente sem fazer parte completamente dele.

As proposições apresentadas pelo o autor se contrapõem às premissas do racismo científico que confinou o negro à categoria intermediária entre o animal e o homem. Indiretamente, elas se contrapõem também aos escritos filosóficos que se mostraram céticos quanto à capacidade cognitiva dos negros. O livro aponta a necessidade de uma avaliação crítica do racismo e anti-semitismo presentes na obra de filósofos iluministas como Kant e Voltaire. Merece ser aqui enfatizada a proposta apresentada por Gilroy de uma releitura da dialética do senhor e do escravo, na qual se enraíza a alegoria hegeliana da consciência e da liberdade. Para ele, as formulações de Hegel podem ser usadas para iniciar uma análise que veja a estreita associação entre a modernidade e a escravidão como uma questão conceitual chave. Igualmente, um retorno à explicação do conflito e das formas de dependência produzidas na relação entre o senhor e o escravo põe em evidência as questões de brutalidade e terror quase sempre ignoradas pelas narrativas da modernidade. Gilroy toma como pressuposto a idéia de que “o terror racial não é meramente compatível com a racionalidade ocidental, mas, voluntariamente cúmplice dela” (: 127).

O projeto do autor desencadeia uma severa crítica aos estudos culturais ingleses e afro-americanos marcados por perspectivas etnocêntrica e nacionalista. Promove igualmente uma avaliação crítica do uso das noções de etnia no interior destes estudos, ao mesmo tempo em que se opõe à falsa idéia de que a cultura sempre flui em padrões correspondentes à fronteira do Estado-nação. Do ponto de vista do autor, a relação entre nacionalidade e etnia foi apoiada retoricamente pelo inclusivismo cultural que enfatiza o sentido absoluto da diferença étnica entre os indivíduos em detrimento das suas experiências social e histórica.

Ao longo do livro, em especial, os capítulos 4 e 5, Gilroy utiliza a vida e os escritos de intelectuais negros como W. E. B. Du Bois, Richard Wright, Martin Delany, Frederick Douglas para desenvolver sua discussão sobre a modernidade e para elaborar um relato intercultural e antietnocêntrico da História e da cultura política negra modernas. Os textos elaborados por esses autores, com base em suas experiências de viagem e exílio, “expressam o poder de uma tradição de escrita na qual a autobiografia se torna um ato ou processo de simultânea autocriação e auto-emancipação” (: 151). Muitos desses autores utilizaram a memória da experiência escrava como um instrumento adicional, suplementar para construir uma interpretação distinta da modernidade. A inserção dos intelectuais negros no mundo moderno é vista como ambivalente, marcada por uma tensão entre ser produto da civilização ocidental e possuir uma identidade racial, profundamente condicionada e organicamente gerada por essa civilização. Para Gilroy é preciso atentar para o fato de que as críticas dos intelectuais negros à modernidade também podem ser, em alguns sentidos, importantes à afirmação dessa mesma modernidade. A compreensão desse quadro é prejudicada, quase sempre, por posturas que insistem em separar as formas culturais particulares a ambos grupos em alguma tipologia étnica, perdendo a oportunidade de discutir o seu complexo entrelaçamento.

A teoria da dupla consciência elaborada por Du Bois constitui um dos principais temas abordados pelo autor, a partir do qual, discute a construção e a plasticidade das identidades negras. O sujeito negro de Du Bois vive uma certa dualidade, encontra-se dividido entre as afirmações de particularidade racial e o apelo aos universais modernos que transcendem a raça. No seu quadro de análise a dupla consciência emerge das experiências de deslocamento e reterritorialização das populações negras, que acabam redefinindo o sentimento de pertença. Ele compartilha ao lado de outros escritores negros “a percepção de que o mundo moderno estava fragmentado ao longo de eixos constituídos pelo conflito racial e poderia acomodar modos de vida social assíncronos e heterogêneos em estreita proximidade” (: 368). Com esse conceito, Du Bois objetiva dar às experiências pós-escravidão vivenciadas pelos negros ocidentais uma significação mundial. Essas formulações casam perfeitamente com a preocupação de Gilroy na formação de uma transcultura negra que possa relacionar, combinar e unir as experiências e os interesses dos negros em várias partes do mundo.

O livro traz para o primeiro plano a cultura vernacular negra, sublinhando a importância dos elementos antidiscursivos e extralingüísticos dos atos comunicativos definidos pela instituição da escravidão. As expressões artísticas que emergiram da cultura dos escravos encontraram na música e na dança um substituto para as liberdades políticas formais que lhes eram negadas, “a arte se tornou a espinha dorsal das culturas políticas dos escravos e da sua história cultural” (: 129), e até hoje representa uma importante aliada nos processos de luta rumo à emancipação, à cidadania e à autonomia negra. O poder da música negra para o desenvolvimento das lutas políticas das comunidades negras da diáspora exige atenção aos seus atributos formais e à sua base moral distintiva: “Ela é ao mesmo tempo, produção e expressão dessa transvalorização de todos os valores precipitada pela história do terror racial no Novo Mundo” (: 94). O acesso restrito dos escravos à alfabetização fez crescer o poder da música em proporção inversa ao poder expressivo da língua, seu refinamento tem proporcionado um mecanismo de comunicação que não se limita ao poder das palavras faladas ou escritas. A música tem exercido um papel fundamental na reprodução da cultura do Atlântico Negro e na conexão entre as diferentes comunidades da diáspora.

Gilroy sublinha as formas nas quais as culturas vernaculares têm viajado. A cultura musical e as histórias de deslocamento, empréstimos, transformação e reinscrição contínua que lhe são características, remete à complexidade sincrética das culturas expressivas negras. Ela fornece o melhor exemplo do tráfego bilateral que vem se processando historicamente entre as formas culturais africanas e as culturas políticas dos negros da diáspora. A história de hibridação e mesclagem desaponta o desejo de pureza racial acalentado pelo afrocentrismo e pelo eurocentrismo. A história do Atlântico Negro nos ensina que a reprodução das tradições culturais não pode ser interpretada como a transmissão pura e simples de uma essência fixa ao longo do tempo, ela se dá nas rupturas e interrupções sugerindo que “a invocação da tradição pode ser, em si mesma, uma resposta distinta, porém oculta, ao fluxo desestabilizante do mundo contemporâneo” (: 208).

Ao término dessa viagem intelectual por O Atlântico Negro, o leitor brasileiro sente a ausência de uma abordagem da cultura da diáspora que englobe as experiências das comunidades negras do “Atlântico Sul Negro”. Essa ausência torna-se mais significativa se levarmos em conta que o livro ao privilegiar as rotas e os fluxos sugere maneiras importantes de pensar regionalmente e translocalmente. O estilo de análise de Gilroy não se limita a estabelecer oposições, mas tenta demonstrar as vantagens de uma abordagem que seja capaz de estabelecer relações, procurando criticar os efeitos perniciosos do pensamento dualista binário no qual um elemento do par é dominado por outro – racional/irracional, branco/preto. As rotas abertas por esta obra de caráter seminal certamente darão origem a futuras investigações que possam promover outras viagens com novos roteiros rumo à história descomunal da cultura atlântica negra.

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