O carnaval é a festa mais democrática do Brasil. Mas não para as mulheres

A partir de uma análise de gênero, a folia de Momo não oferece as mesmas possibilidades para mulheres e homens.

Texto escrito por Viviana Santiago, especialista em gênero da Plan International Brasil.

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O Carnaval chegou, a “maior festa popular do planeta”. Anualmente milhões de pessoas do Brasil e de todo o mundo invadem as ruas. Incansáveis, se entregam às festas que nos dias do Reinado de Momo não têm hora para acabar.

Costumamos alardear aos quatro cantos, que o carnaval é a festa mais democrática: uma explosão de ritmos, de danças, de cores que garantem um lugar para todo mundo embaixo do sol. Mas é nesta festa que também nos deparamos com os resultados de uma pesquisa realizada pelo Data Popular, na qual 49% dos homens brasileiros acreditam que carnaval não é lugar para “mulher direita”; e mais: 61% acreditam que a mulher que se encontra solteira e decide ir se divertir pulando em algum bloco do carnaval não pode se manifestar contra as possíveis cantadas.

Parece que estamos diante de dois carnavais e que em um deles parece não haver lugar para as mulheres.

Em um primeiro momento os dados parecem contradizer a tudo aquilo que vemos nas imagens carnavalescas: Nas propagandas das cidades, das marcas de cerveja, aos conteúdos das músicas, tudo parece falar de uma festa em que a presença das mulheres é algo não apenas permitido: é obrigatório. Então, o que fazer com as declarações acima?

Diante das afirmações acima o desafio é ajustar as lentes e buscar na leitura do Carnaval, ir para além da fantasia e entender que a partir de uma análise de gênero, a folia de Momo não oferece as mesmas possibilidades para mulheres e homens.

Ano após ano, ao lado das lindas histórias de carnaval veiculadas pela mídia, de encontros, reencontros, amores, também identificaremos, ainda que sem o mesmo espaço, relatos de mulheres de todas as idades que em meio à folia se depararam com a violência: beijos forçados, carícias não solicitadas, diante da recusa: empurrões, socos, espancamentos, estupros. Parece que estamos diante de dois carnavais e que em um deles parece não haver lugar para as mulheres.

Vivemos em uma sociedade na qual educamos meninos e homens para entender que masculinidade se legitima a partir de aventuras sexuais com mulheres, de comportamento agressivo, bebedeiras, capacidade de financiar outras pessoas.

Dessa maneira, criamos a noção inabalável de que somente os homens têm direito a exercer os seus direitos sexuais

Ensinamos a esses meninos e homens que seus corpos e seus desejos são incontroláveis e irrefreáveis, são educados para assumir o controle de qualquer contato com o sexo oposto, de garantir que seu desejo será saciado e se assim agirem mais homens serão.

Nesse processo de socialização que começa na infância, em nenhum momento dizemos aos meninos que as mulheres também têm os mesmos desejos, que têm autonomia para construir relacionamentos e para ocupar o espaço público. Dessa maneira, criamos a noção inabalável de que somente os homens têm direito a exercer os seus direitos sexuais e levam essa noção para todos os lugares e todos os processos que vivenciam. E nesse sentido cabe às mulheres o papel de saciá-los.

Toda vez que uma mulher ocupar esse espaço público em que esse homem está, ela deverá ser punida, principalmente se for contra o assédio. A noção de que as mulheres são propriedade masculina ainda é muito forte, e é esta certeza que orienta o assédio no Carnaval.

Aliada ao machismo operado por essa percepção tem-se o impacto do racismo que vai exotificar o corpo e a vida das mulheres negras, reduzindo-as ao lugar da mulata fogosa e vai matar, sem que se reivindique justiça, as mulheres trans relegadas ao lugar do exótico, do estranho e desumanizadas. Vai estabelecer as práticas corretivas para as mulheres lésbicas e bissexuais patologizando sua orientação sexual e estabelecendo uma cura pelo estupro.

E estejamos em alerta: Esse processo de violência que se identifica com mais facilidade na vida de mulheres adultas, não inicia apenas lá, se acrescentarmos um recorte geracional a essa discussão, identificaremos que as meninas desde muito cedo vivenciam as mesmas limitações, riscos e perigos que as mulheres adultas, serão alcançadas pelas noções e práticas objetificantes e violadoras de direitos e mais ainda, num processo de pedofilização da sociedade serão cada vez mais cedo entendidas como objetos de desejo e no carnaval isso também se evidencia.

Que possamos ter nítido que o mito da “mulher direita” é criação desse modelo de dominação que subjuga as mulheres

É preciso romper com essa lógica, pela vida das mulheres, de todas elas: pelo seu direito a viver uma vida sem violência. As campanhas no carnaval são necessárias, servem como um alerta, botam o dedo na ferida, mas elas são só parte do processo. Essa noção foi construída pela sociedade enquanto um todo e é nesse processo amplo que deve ser corrigida. Que possamos vivenciar outros processos formativos que possibilitem às meninas e meninos a vivência de outra socialização, que vá para além desses papeis tradicionais de gênero, que firmados em estereótipos violentam, controlam e reduzem suas vidas.

Que todas as mulheres possam estar no carnaval, que possamos ter nítido que o mito da “mulher direita” é criação desse modelo de dominação que subjuga as mulheres a uma autoridade masculina e que todas as mulheres que se percebem livres e autoras de sua vida serão patologizadas, recriminadas e punidas.

Por mais mulheres nas ruas, por um carnaval que seja bom para todas as mulheres!

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