O charque gaúcho: escravidão e guerra

A produção do charque iniciou, em 1780, na cidade de Pelotas (RS). Introduzido pelo cearense José Pinto Martins, às margens do canal de São Gonçalo, teve sua produção sustentada pelo braço escravo. Este produto monopolizou a economia sulina, por muito tempo, gerando uma elite de estancieiros ricos que, no século 19, insurgiu-se contra o Império. Entre outras causas deste conflito bélico, conhecido como Revolução Farroupilha (1835-1845), destacam-se os altos impostos taxados sob o charque e o couro, o centralismo político do império e a sua preferência pela compra do charque platino em detrimento do produzido na “Província Gaúcha”. O charque gaúcho, durante muito tempo, havia sido o responsável pela alimentação da escravaria de outras regiões do Brasil, desde o ciclo da mineração (ouro).

por Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite via Guest Post para o Portal Geledés

A produção do charque, no Uruguai, antiga Província da Cisplatina, utilizava-se de mão de obra assalariada (livre), tinha menos custos empreendedores, sendo vendido a menor preço. Desta forma, ganhou espaço no mercado brasileiro e desbancou o que era produzido pela nossa elite estancieira.

Diante de qualquer negociação, com o império, que beneficiasse a Província de São Pedro (RS), a solução foi deflagrar uma luta contra o poder central que se constituiu na mais longeva guerra, travada por uma província contra o império. Durante o desenrolar da guerra houve a proclamação da República Rio-grandense, em 11 de setembro de 1836, pelo gen. Antônio de Sousa Netto (1803-1866) após a vitória da Batalha de Seival. No dia 20 de setembro de 1835, começou o confronto: os farroupilhas invadiram, pela Ponte da Azenha, Porto Alegre, iniciando a Revolução Farroupilha que se prolongou até 1845, quando ocorreu o Acordo de Paz de Ponche Verde, encerrando o conflito bélico.

A participação do negro, durante a luta, foi destacada. O “Corpo dos Lanceiros Negros” passou para a história por sua bravura e resistência. O aceno da conquista da liberdade, após o final da guerra, transformou-os em gigantes bélicos. Infelizmente, o massacre destes bravos lanceiros, em Porongos, no dia 14 de novembro de 1844, na atual região de Pinheiro Machado, ainda, é um episódio mal elucidado pela historiografia. Afinal, os negros foram traídos ou não? Houve realmente um acordo secreto, entre o Império (Duque de Caxias) e os farroupilhas (David Canabarro), para dizimá-los, temendo uma insurreição? Para alguns historiadores, como o respeitável historiador Mário Maestri, não há dúvida quanto à traição, pois foi encontrada uma carta, cuja assinatura foi considerada verdadeira.

A traição de Porongos é tratada, por Mário Maestri, no seu livro “O Escravo Gaúcho – Resistência e Trabalho” (1993), editado pela UFRGS. De acordo com o historiador, o Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul reconheceu a assinatura do Duque de Caxias (1803-1880) como autêntica. Nesta carta se encontra o seguinte trecho:

“No conflito poupe o sangue brasileiro quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda pode ser útil no futuro”.

Os defensores de David Canabarro (1796-1867) acreditam na tese de que esta carta teria sido forjada, pelos legalistas, para incriminar o líder farroupilha. A realidade é que os “Lanceiros Negros” foram o alvo principal, sendo que a maioria, destes negros, foram dizimados neste famoso “ataque surpresa”, comandado por Francisco Pedro Buarque de Abreu (1811-1891), o Moringue, enquanto todos dormiam no acampamento farroupilha.

Após a proibição do Tráfico Negreiro (1850) – Lei Euzébio de Queirós – intensificou-se um comércio interno no País, e adquirir um escravo tornou-se ainda mais caro. O escravo que era vendido, pelo seu dono, para trabalhar nas charqueadas gaúchas, sol a sol, enfrentava um verdadeiro “purgatório”, pois sofria um desgaste físico redobrado devido à irradiação do sol sobre o sal, terminando por abreviar sua existência.

O Rio Grande do Sul, Ceará e Amazonas foram províncias que libertaram seus escravos ,em 1884, antes da Princesa Isabel assinar a Lei Áurea (1888). Infelizmente a tão sonhada liberdade não trouxe inclusão social, restando à massa de escravos libertos a pobreza, a exploração de mão de obra barata e o estigma da escravidão. O latifúndio e a mão de obra escrava foram o binômio da economia que sustentou o Brasil no período colonial e imperial.

A Independência do Brasil ocorreu, no dia 07 em setembro 1822, ou, segundo os maçons, em agosto daquele ano, porém a estrutura socioeconômica permaneceu igual: uma monarquia sustentada pelo latifúndio monocultor e escravocrata. Foram 400 anos de escravidão e exploração. Fomos a última Nação a abolir o trabalho escravo, e a última monarquia num contexto republicano que dominava o Continente Americano. De acordo com a frase constantemente reproduzida em artigos, porém sem o registro da autoria: “o Brasil era uma flor exótica nas Américas…” A partir da Lei Áurea (1888), assinada pela princesa Isabel, até a atualidade, o caminho da inclusão social tem sido árduo no que concerne o combate ao racismo, intolerância às tradições africanas; além do fator educação que colabora para a invisibilidade quando se trata da contribuição cultural do negro. Este último caso, refiro-me, infelizmente, ao desconhecimento de muitos educadores sobre o legado do negro na formação do povo brasileiro, ainda que seja obrigatória nas escolas, por lei, uma disciplina que contemple a contribuição cultural dos afrodescendentes em nosso País.

Já ocorreram avanços, mas, ainda, há um longo caminho a ser percorrido. Está presente em nosso cotidiano e sofremos os reflexos deste passado escravocrata, sob os artífices do racismo assumido ou velado. Quando velado, ele se encobre por uma pretensa “Democracia Racial”, sob o véu da hipocrisia, constituindo-se num dos piores fatores que desagregam e enfraquecem a luta pela conquista do passaporte da verdadeira cidadania. Estamos diante de um inimigo sem rosto, que atua em silêncio, como um camaleão, indo de encontro à construção de uma sociedade mais justa e fraterna e, óbvio, sem demagogia…

 

Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite / Pesquisador e Coordenador do Setor de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa.*.

 

Bibliografia

 

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SAVARIS, Manoelito Carlos. Rio Grande do Sul / História e Identidade . Porto Alegre: Fundação Cultural Gaúcha – MTG, 2008.

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