“O cidadão que consome drogas é um portador de direitos como todos os outros”

Em entrevista aos Jornalistas Livres, o antropólogo Mauricio Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Drogas defende que a atuação do Estado deixe de ser uma questão de segurança pública e passe a ser observada sob o ponto de vista da saúde e dos direitos humanos.

Por Maria Carolina Trevisan para #JornalistasLivres

A guerra às drogas é um modelo falido. A política de repressão ao uso e comércio fracassou: não houve redução na oferta e demanda de drogas ilícitas. Ao contrário, o que aconteceu foi o aumento da violência, o superencarceramento e mais corrupção, mistura que amplia a vulnerabilidade social de quem já se encontra em situação delicada.

O Brasil é um dos países mais ativos na construção do “proibicionismo”, políticas que criminalizam o consumidor, que têm viés punitivo, ligado à segurança pública e não aos direitos humanos. “Há uma tendência cada vez mais forte de questionamento, em nível global, da guerra às drogas e de todos os seus terríveis efeitos na saúde pública, no nível de violência e criminalidade”, explica o antropólogo Mauricio Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Drogas, lançada na noite desta quinta-feira (28/5). A Plataforma é uma rede formada por 28 entidades e composta por um robusto conselho consultivo, que agrega lideranças em diversas áreas ligadas à justiça e aos direitos humanos.

Colocar a questão das drogas no rol da saúde pública, sob a lupa dos direitos, com foco na redução de danos — e não na criminalização — , faz parte da missão da Plataforma, que pretende qualificar o debate e incidir sobre as políticas de drogas. Tem como eixos prioritários a promoção da saúde pública, da educação, do desenvolvimento social e econômico e a redução de todos os tipos de violência. Propõe uma cultura de paz, que trabalhe a liberdade, a autonomia do indivíduo e o respeito aos direitos humanos.

Jornalistas Livres — Estamos vivendo uma mudança nas políticas de drogas na América Latina. Políticas de viés punitivo e proibicionista, importadas dos Estados Unidos, se provaram ineficazes e, pior que isso, nocivas. Legalização e mudanças na legislação são tendências atuais, assim como uma abordagem que considere saúde pública e direitos humanos. Qual é o posicionamento da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas sobre uma política eficiente e inclusiva? É uma tendência mundial?

Mauricio Fiore— Um apontamento, antes de responder. Ainda que os EUA tenham tido um papel fundamental na consolidação da paradigma proibicionista, não podemos dizer que os países latinoamericanos tenham importado esse modelo. O Brasil é um bom exemplo de um país que teve papel ativo na construção do proibicionismo, principalmente com relação à maconha. Feita essa ressalva, o cenário é esse que você desenhou, há uma tendência cada vez mais forte de questionamento, em nível global, da guerra às drogas e de todos os seus terríveis efeitos na saúde pública, no nível de violência e criminalidade e no respeito aos direitos humanos.

As cerca de trinta organizações que compõem a Plataforma não têm um consenso fechado sobre um novo modelo de política de drogas, mas um consenso em torno do diagnóstico crítico ao paradigma atual. Alguns membros trabalham com a ideia de simplesmente tirar as drogas do campo penal, outros em regular sua produção e comércio; outros membros estão mais focados no tratamento digno e em liberdade para usuários e dependentes de drogas. Ou seja, a Plataforma quer ser um instrumento para potencializar a ação de seus membros e colocar a discussão sobre política de drogas em outro patamar e, assim, construir uma política de drogas mais justa e eficaz.

JL — Como se dá essa relação entre a proibição e o nascimento do tráfico, tema da campanha do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESec)? Como seria se não houvesse proibição?

Mauricio — Sob uma certa perspectiva, foi a proibição que criou o tráfico, já que colocou fora de qualquer tipo de controle um mercado gigantesco e, ao mesmo tempo, gerou um faturamento de risco por conta de ilegalidade. A campanha do Cesec é muito feliz em chamar a atenção da população em geral para isso, pois há uma naturalização da questão das drogas, como se o tráfico sempre tivesse existido. O que sempre existiu é o uso de drogas, o tráfico é uma fenômeno contemporâneo. Caso nos afastemos progressivamente do modelo proibicionista, poderemos criar políticas públicas que foquem no uso de drogas em si e nos problemas que elas podem acarretar, que não sou poucos.

JL — Quais são as políticas defendidas pela PBPD? Como podem “garantir a autonomia e a cidadania das pessoas que usam drogas e o efetivo direito à saúde e ao tratamento em liberdade”, parte da missão da organização?

Mauricio — Como eu disse anteriormente, a Plataforma atua mais a partir de um diagnóstico crítico do que tendo um modelo de política de drogas pronto. Mas há alguns valores compartilhados, como a retirada da questão das drogas da esfera penal, o fortalecimento da redução de danos como forma de atenuar os efeitos negativos das substâncias psicoativas e também a defesa de modelos de atenção e tratamento baseados em evidências científicas e não no isolamento forçado e com práticas desumanizadoras. Um ponto central das políticas promovidas pela Plataforma é ver no cidadão que consome drogas, tenha ele problemas ou não com esse uso, um portador de direitos como todos os outros e cuja assistência médica e social visem a melhora de seu quadro, não necessariamente a sua submissão moral a uma determinada escala de valores.

JL — Como vocês avaliam as políticas de drogas no Brasil? Qual é a tendência? Há abertura para o diálogo? O que opinam sobre os programas da prefeitura paulistana na Cracolândia?

Mauricio — O Brasil está distanciado das discussões mais avançadas em política de drogas, está inserido completamente no paradigma proibicionista do sistema ONU.

“Somos um dos países que mais sofre as consequências dessa política na nossa violência. Temos mais de 55 mil homicídios por ano e a política de drogas é uma parte importante desse cenário.”

No entanto, percebemos algumas possibilidades de avanço no horizonte. Mas há que se ter cuidado, pois a lei de drogas de 2006, por exemplo, foi percebida como um avanço na época, mas teve consequências práticas muito ruins, como o aumento do encarceramento. De qualquer forma, há setores no executivo e no judiciário que admitem que o crescimento exponencial do encarceramento e, assim, sinalizam mudanças pontuais. O STF, por exemplo, deve discutir em breve um recurso que pede ainconstitucionalidade da criminalização da posse de drogas para uso pessoal.

Caso julgue o recurso procedente, isso pode ter um impacto importante, forçando o legislativo a se posicionar mais claramente na definição de uso e tráfico. Mas ainda há muita resistência na sociedade, que encara qualquer crítica à situação atual como uma defesa do uso de drogas. Na verdade, é uma defesa do debate racional sobre política de drogas, o que ainda não acontece no Brasil. Sobre o Braços Abertos, nos parece uma política inovadora, que encara o problema das pessoas que vivem naquela área como muito além do consumo abusivo de crack, mesmo que esse seja um problema dramático. No entanto, há problemas, não só do próprio programa, mas que têm a ver com o próprio modelo proibicionista e nossa estrutura urbana. A coordenação científica da Plataforma está envolvida numa pesquisa de avaliação do programa que deve estar pronta nos próximos meses.

JL — Está comprovada a relação entre crimes hediondos e uso de drogas? O que está por trás dessa associação?

Mauricio — As evidências indicam que a maior associação entre crimes violentos e drogas está no seu mercado, e não no consumo em si. É claro que há uma associação entre padrões de consumo de algumas drogas com ações violentas, por exemplo, o consumo de álcool com violência doméstica. Mas uma política de drogas digna desse nome tem que enfrentar essas possibilidades de acordo com os padrões e as características do consumo de cada substância. Drogas estimulantes, por exemplo, devem ser pensadas de maneira mais cuidadosa, no que diz respeito à violência associada, do que a maconha ou o tabaco, para ficar em dois exemplos práticos. Mas, repito, hoje é o mercado de drogas ilícitas que está relacionado à violência.

Ironicamente, inclusive, a lei brasileira considera o tráfico de drogas um crime equiparado aos crimes hediondos, com uma execução penal severa. Esse é um dos motivos que faz com que mais de um quarto dos homens e dois terços das mulheres presas tenham sido punidas por tráfico de drogas.

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