O lugar das mulheres na esquerda

Há um assunto incômodo que ainda precisa ser discutido entre os movimentos sociais e os militantes de esquerda: a ausência das mulheres como sujeitos das demandas sociais e debates que têm sido feitos no Brasil.

Por  Jarid Arraes do Questões de Gênero 

Questões como a guerra contra as drogas, a redução da maioridade penal, o genocídio da população negra, entre outros problemas da sociedade, são encarados como “assuntos de homem”; ou seja, o discurso é feito com demarcação masculina, citando homens como prejudicados pelas políticas equivocadas do Estado. Porém, quando a problemática gira em torno de questões pertinentes às mulheres, o debate se torna uma espécie de nicho, uma categoria que não interessa a mais ninguém, somente às mulheres.

Enquanto é verdade que os homens negros são rotineiramente assassinados pela polícia e amontoados no cárcere, é preciso lembrar de que mulheres também são profundamente atingidas por essas questões – seja como mães e familiares desses homens ou como vítimas diretas. Basta conhecer um pouco da situação carcerária feminina para ver que mulheres pobres e negras são sistematicamente agredidas, tendo seus direitos violados nas mãos da polícia e do Estado. Os abusos que essas mulheres sofrem possuem uma forte demarcação de gênero.

Além disso, um dos maiores genocídios contra a população negra e feminina é a criminalização do aborto. Todos os anos, milhares de mulheres morrem vítimas de um Estado que trata o corpo feminino como propriedade pública e as condena aos maus tratos nos hospitais, onde são humilhadas e jogadas à própria sorte, sem que recebam o atendimento emergencial necessário. Quando sobrevivem, são presas.

Infelizmente, esse assunto parece não ser prioridade da esquerda, já que não ganha espaço em eventos, debates, mesas redondas ou pautas jornalísticas. É perturbador o fato de que esse genocídio não tenha a atenção dos movimentos sociais para além do movimento feminista. Se o aborto não for mencionado em eventos voltados para discussões de gênero, a probabilidade de que seja sequer lembrado em eventos da esquerda como um todo é bastante baixa. Uma vez que milhares de mortes ao ano não são o suficiente para despertar a atenção dos intelectuais e militantes, só nos resta concluir que temos um grave problema de machismo entre nós.

A esquerda precisa compreender que as mulheres não podem ser tratadas como uma categoria distinta dos movimentos sociais, como se separar uma “aba” no debate fosse mais do que o suficiente para as mulheres discutirem entre si, enquanto os homens falam a cerca de todos os outros assuntos; como se as mulheres não estivessem diretamente implicadas nos demais temas. Resta entender que diversas questões sociais são questões das mulheres – é impossível debatê-las sem voltar as atenções para as experiências femininas dentro desses problemas.

Pela prática, sabemos que a dificuldade para promover essa conscientização é imensa. Há resistência e desdém quando os furos desses dicursos e lógicas sexistas são apontados. Mas sem que levantemos a voz, sem causarmos incômodo, a transformação desse quadro permanecerá distante. As mulheres encarceradas, assassinadas pela polícia e mortas pela ilegalidade do aborto não podem esperar.

 

+ sobre o tema

Mas eu não sou machista!

Uma novidade: não é porque você deixou de ser...

Os autossexuais: ‘Me sinto mais atraída por mim mesma do que por qualquer outra pessoa’

A protagnista deste relato preferiu permanecer anônima. Assim ela...

Fundo ELAS lança XX Concurso com inovação.

O Concurso “Gestão Escolar para Equidade: Elas nas Exatas”,...

O que falta em uma mulher com deficiência?

O ‘diferente’ sempre assusta porque incomoda e toca na...

para lembrar

Sobre Justiça e Liberdade: E a Liberdade finalmente encontrou a Justiça

Pode ter sido apenas um sonho, pensei ao acordar. Me...

“Mjiba em Ação” homenageia mulheres negras com atrações culturais

Evento, que acontece em SP, celebra o Dia da...

Emma Watson lança clipe sobre empoderamento feminino: ‘Ninguém pode nos parar’

Em parceria com a organização Global Citizen, a atriz...

Clara Charf, gigante da história, faz 90 anos

Clara Charf, uma das mulheres mais fascinantes do Brasil,...
spot_imgspot_img

Ela me largou

Dia de feira. Feita a pesquisa simbólica de preços, compraria nas bancas costumeiras. Escolhi as raríssimas que tinham mulheres negras trabalhando, depois as de...

“Dispositivo de Racialidade”: O trabalho imensurável de Sueli Carneiro

Sueli Carneiro é um nome que deveria dispensar apresentações. Filósofa e ativista do movimento negro — tendo cofundado o Geledés – Instituto da Mulher Negra,...

Comida mofada e banana de presente: diretora de escola denuncia caso de racismo após colegas pedirem saída dela sem justificativa em MG

Gladys Roberta Silva Evangelista alega ter sido vítima de racismo na escola municipal onde atua como diretora, em Uberaba. Segundo a servidora, ela está...
-+=