O machismo disfarçado de boa intenção, preocupação e cuidados

Estudo há certo tempo, assim como acompanho as noticias e diversos pensamentos a respeito da igualdade entre os gêneros, o feminismo. E creio que vale a pena falar que, além das cenas de ódio, de atitudes extremas e radicais a respeito do machismo na sociedade, muitas vezes acho mais assustador o fato desse regime estar tão presente e enraizado em nossa cultura, meio social, politico, histórico e religioso de tal forma que muitas vezes não percebemos que somos e agimos de forma machista ou mesmo convivemos e até questionamos enquanto existência com base no machismo.

por Raquel Baldo Vidigal  no HuffPost

Sim, há muitas pessoas machistas que não são agressivas, que não matam, não batem e nem odeiam outras pessoas que não pensam e agem como eles. Mas agem camufladas e disfarçadamente, talvez não só de nós, mas possivelmente até de si mesmos, por não questionarem suas falas e pensamentos e acreditarem em seus conceitos, justificando que eles são determinados pela história ou por uma força maior, como Deus e por isso apenas devemos cumprir e obedecer.

Essas pessoas acabam, muitas vezes, através de seus atos de amor, cuidados e boas intenções reforçando e declarando que quem não segue tais tabus e regras históricas e religiosas irá sofrer por não estar seguindo padrões estipulados por uma hierarquia sobre a existência.

São pessoas que acabam existindo para cumprirem normas, tabus, horários e formulas de vida, dentro da escola, do trabalho como casar, ter filhos, pagar contas e envelhecer. Isso não quer dizer que não sejam felizes, assim como essas mesmas pessoas não fazem necessariamente mal a alguém, não da forma que costumamos assistir nos noticiários ou ler nos jornais.

Não se trata daquele religioso que matou um homossexual ou aquele ex-marido que atirou em sua ex-mulher e matou seu filho. Não, não é disso que estou falando e nem é isso que venho somente observando. Estou levantando aqui o “machismo disfarçado”, o machismo que existe porque foi aprendido e nem mesmo é percebido na maioria das vezes. O machismo que prega palavras de boas intenções, que protege sua menina em casa e com bons modos, que ensina seu menino a ser herói e proteger as meninas, que diz que o homem deve cuidar de sua mulher e sustenta-la e também mostra que a mulher será plena e feliz quando for mãe e formar uma família para cuidar.

Percebem?

Não falo aqui de impedimentos radicais, ataques, ódios ou palavras agressivas e pejorativas. Falo aqui de palavras, gestos e costumes cuidadosos e que nessas cenas, que são apenas algumas das tantas existentes na sociedade, demonstram suas ideias protetoras e afetivas.

Acho importante pensarmos no machismo também presente desta maneira. Em um machismo que não necessariamente te assassina e te soca, te critica ou te ataca concretamente e fisicamente. Mas num machismo repetido e aprendido culturalmente e com discurso de boas intenções ou mesmo camuflado de ordem, organização, ética e etiquetas sociais.

O que nos mostra e esclarece se tratar de machismo é o fato de que os gestos, as palavras e intenções deixam claro que o homem tem seu papel na sociedade, assim como a mulher tem o dela e esses papeis e posturas são distintos e mais ainda, colocam o homem como herói protetor e a mulher como ser frágil e doadora de sua existência.

Cresci ouvindo em casa que meu irmão mais velho não podia fazer algo ou até podia fazer algo, porque era homem. Ele era o sinônimo da inteligência, do bom caráter, bom filho, irmão e por isso a ele era permitido certas “regalias” como não lavar a louça ou mesmo não querer fazer algo em família, quando não fosse de seu agrado.

Enquanto isso, eu não tinha opção de escolher se queria ou não ir a um evento familiar, pois era menina e precisava estar junto, mas também era muito elogiada, quase sempre ouvia que era uma menina bonita, educada, bem vestida e de bons modos, frequentemente fui apresentada para outras meninas como exemplo de postura.

Eu não era agressiva, na verdade, era bem obediente e mesmo quando não gostava de algo, fazia o que era esperado por uma menina. As pouquíssimas vezes que tentei expressar uma opinião ou atitude diferente fui rapidamente repreendida e notificada que aquilo não era coisa de uma boa menina.

Eu pensava: “Porque ele pode e eu não?”. Mas não passavam de pensamentos e um dia, quando menos esperei, estava eu também discursando que mulheres são melhores que homens para cuidar da casa, dos filhos, para escolher roupas e estava esperando que um homem em algum momento da vida me sustentasse e quisesse ter como objetivo de vida me fazer feliz e cuidar de mim.

Hoje só consigo pensar: “Onde é que eu fui parar este tempo todo?. Em que parte da minha história eu fiquei para traz, me perdi e segui sendo levada por um regime que pre determinou minha existência que me diminuiu a uma menina bonita, simpática e boazinha que se estendeu a minha vida adulta?

Nunca fui alvo de agressões físicas, mas sempre tive minha inquietação a respeito da desigualdade entre os gêneros, preferia ficar sozinha ao invés de me relacionar com alguém unicamente para ter companhia ou cumprir padrões. Não fui atacada por ninguém, nem vi meu pai bater na minha mãe (aliás, ele nunca bateu) nem mesmo fui abusada física ou psicologicamente.

Mas fui vitima das boas intenções do machismo que queria “me proteger” e determinar qual seria meu papel na sociedade, na história e na família. Fui reprimida da possibilidade de ser quem eu queria ser, de questionar as diferenças e as igualdades, cada vez que ouvi que aquilo era de menino ou de menina e como eu deveria me portar frente a sociedade para ser respeitada.

E engana-se quem acredita que isso ficou na infância, durante a faculdade e nos primeiros anos de trabalho tive que ouvir muitas vezes você é bonita não se preocupe em se esforçar tanto ou você é bonita e simpática o mundo profissional não é para você. E durante anos pensava isso não é justo, mas nada mais fazia, além de lamentar comigo mesma e fazer movimentos e buscas pessoais isoladamente para que eu pudesse no mínimo ser eu mesma comigo mesma em meus estudos e estudos e estudos.

E foi então que descobri que a questão era mais profunda, não se tratava sobre o que fazer ou como fazer, na verdade a pergunta era: Quem eu era, afinal de contas? No que eu acreditava? E porque não sentia liberdade para poder me expressar como gostaria?

E foi quando descobri que o machismo das boas intenções.

Aquele que não bate, nem mata ou xinga, havia tirado minha possibilidade de ser eu mesma até então. Mesmo sem encostar um dedo em mim, o machismo enraizado na sociedade e na minha família em algum momento aprisionou minha existência. Era hora de fazer algo a respeito, era hora de me dar o direito ser eu mesma, era hora de seguir meu caminho.

Qual caminho? Pra onde? Não fazia e nem faço a menor ideia, mas era hora de ir em busca de mim reconhecer meus direitos e deveres. E aqui estou, apenas caminhando por mim, nada contra ninguém, apenas caminhando pela chance de ser eu mesma e nada mais.

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