O meu black vai ficar solto!

”Mulher negra não se acostume com termo depreciativo, 
Não é melhor ter cabelo liso, nariz fino; 
Nossos traços faciais são como letras de um documento, 
Que mantém vivo o maior crime de todos os tempos; 
Fique de pé pelos que no mar foram jogados,
Pelos corpos que nos pelourinhos foram descarnados.
Não deixe que te façam pensar que o nosso papel na pátria
É atrair e gringo turista interpretando mulata;” (Yzalú- Mulheres Negras)


De alguns meses pra cá tenho ouvido muito essa música. Acho que em alguma fase da vida, nós, mulheres pretas precisamos de uma música que trata de maneira tao profunda da nossa realidade e talvez mais da metade dela fale de tudo o que já aconteceu na minha vida e que acontece na vida da maioria das mulheres negras.
Sim, esse é o meu primeiro post e pode ser que ele fique um tanto quanto doloroso.

Desde pequena eu sempre percebi que existia algo de errado em como as pessoas me tratavam, ou tratavam minha mãe, meu pai ou qualquer outro preto que conhecesse e com o tempo eu ouvi que todos nós eramos iguais… Mas se eramos todos iguais, porque eu ouvia tanto que o meu cabelo era feio ou duro, ou que eu era feia?


Uma vez tomando banho de chuva com os amigos na rua, um deles me disse: no seu cabelo não entra água?Eu baixei a cabeça e dei um sorriso tentando disfarçar ou fingindo que aquela pergunta não tinha sido feita a mim.


O meu cabelo está longe de ser cacheado ou encaracolado. Ele é crespo! Crespinho crespinho! Agora eu uso ele solto, aprendi a fazer turbantes, ponho flores e um monte de outras coisas. Eu usava trancinhas e em Outubro do ano passado eu tirei, foi um desafio! Mesmo com todo mundo dizendo que ele estava lindo e tudo mais, eu custava acreditar ou mesmo achar que estava realmente bonito. De lá pra cá eu entendi que sim, meu cabelo é bonito, e mais que isso, usar meu cabelo crespo é um ato politico e sinal de resistência.


Mas especificamente hoje, o racismo veio mais uma vez. Ele veio e me disse que o meu cabelo não servia pra ir em um casamento de luxo em um castelo. Sim, hoje, em pleno jogo do Brasil eu ia no casamento da filha de uma amiga da minha mãe e ele ia ser em um castelo. Eu cancelei todo o meu dia, ia ver o jogo do Brasil no bar com os amigos e fiquei em casa pra ir nesse casamento. Eu estava quase pronta até que olhei pra todo mundo e me senti altamente inferior, me olhei no espelho, olhei pro meu cabelo e para os outros cabelos lisos ou alisados e desisti de ir ao casamento, porque não queria parecer menor que ninguém, não queria parecer a preta pobre do casamento cheio de rico.


Fiquei sozinha em casa e chorei o mesmo choro de quando eu era pequena, quando tudo o que eu queria era poder viver em paz, com o meu cabelo, minha cor e meus tracos, sem que ninguém me olhasse dizendo que exista algo mais belo ou ditando um padrão.


Hoje eu me perguntei, até quando o racismo vai vencer? Tentando fazer com que eu me sinta insuficiente pra um lugar muito luxuoso? E se eu tivesse ido nesse casamento? Eu iria ser vista como a menina do cabelo diferente? Talvez as pessoas me olhassem dizendo: porque não fez uma escova? Ou talvez me olhassem com aquele olhar: que cabelo diferente! Ou talvez eu só me tornasse a preta gostosa da festa. Nada muito longe do papel que é colocado pra uma preta.


O fato é que de uma maneira ou de outra eu não seria olhada como uma pessoa normal. Porque no dia a dia meu cabelo black parece algo anormal para a maioria das pessoas. Meu black parece curioso, exótico. Quantas e quantas vezes eu já ouvi: você é muito corajosa por usar seu cabelo assim! Talvez de fato eu seja muito corajosa mesmo. É preciso coragem para enfrentar isso tudo. É preciso ter coragem para sair de casa e soltar meu crespo, é preciso coragem pra enfrentar o racismo que me cerca assim que eu coloco o pé fora de casa.


Fiquei pensando: quantas mulheres pretas já deixaram de sair de casa porque estão simplesmente cansadas de serem coisificadas? Quantas prenderam seu black por achar que ele é feio solto? Que ele é seco? Quantas não voltaram a alisar porque se sentiam tao inferior quanto eu me senti hoje?


Meninas mulheres da pele preta, nossos cachos, crespos black são lindos!Não  deixem que te façam pensar que seu cabelo é inferior! Não deixem o racismo dizer isso a vocês! Não deixem que te tirem orgulho, não deixe que tentem te abater o bril! Os nossos fios são carregados de histórias de resistência! A cada volta que dá o cacho são lágrimas derramadas, cada centímetro dos nossos fios significam dias em que dizemos: racismo, cale a sua boca!  E mais que isso, quando soltamos o nosso black mostramos para os racistas que permanecemos aqui! Nossos fios incomodam o racismo! Nossos fios são a memoria de Dandara, Luiza Mahin, Odara, e tantas outras guerreiras negras que lutaram por nós!


Nossos tracos faciais são como letras de um documento que mantém vivo o maior crime de todos os tempos!

Saia! Solte seu cacho, solte seu crespo!

Autora Laura

 

Fonte: Menina Mulher da Pele Preta

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