O Oscar do Oscar 2016 é debater o racismo na indústria cultural por Cidinha da Silva

Há alguma coisa de podre no Reino da Dinamarca quando um ator negro, decano do teatro e da TV brasileiros, compreende o racismo na indústria cinematográfica de Hollywood nos mesmos moldes de uma atriz branca, inglesa, também veterana, sabidamente afinada com a direita europeia

Por Cidinha da Silva, da Revista Fórum 

Há alguma coisa de podre no Reino da Dinamarca quando um ator negro, decano do teatro e da TV brasileiros, compreende o racismo na indústria cinematográfica de Hollywood nos mesmos moldes de uma atriz branca, inglesa, também veterana, sabidamente afinada com a direita europeia.

O ator do caso é Milton Gonçalves e a atriz, Charlotte Rampling. Em comum, a idade. Ela, septuagenária. Ele, octogenário.

Mas, pelo que se observa do mundo, a idade não faz das pessoas necessariamente conservadoras. Fernanda Montenegro, por exemplo, mais velha do que ambos, emitiu opinião contundente e reveladora sobre uma telenovela, supostamente incômoda porque duas mulheres octogenárias se relacionavam afetiva e sexualmente.

Na percepção acurada da magnífica atriz, o que tirou as pessoas do conforto irreflexivo do sofá não foram as velhas amantes com quase duzentos anos de vida somados, mas o número nunca visto de personagens negros empoderados. Distantes das posições de (de)mérito a que os conservadores brancos e negros costumam relegá-los.

No caso da total ausência de atrizes e atores negros indicados ao Oscar 2016 e ao reativo boicote à cerimônia, anunciado por Spike Lee e pela atriz Jada Pinkett Smith, Milton Gonçalves declarou que: “A Academia não é racista. Nenhum negro fez um filme bom como os outros fizeram anteriormente (por isso não foram indicados)”.

Charlotte Rampling, no outro lado do mundo, expressou opinião semelhante: “Isso é racismo contra os brancos. É difícil saber se é o caso, mas pode ser que os atores negros não merecessem estar na reta final”.

Nome abalizado do audiovisual brasileiro, Joel Zito Araújo estranhou o comentário do ator e postou o seguinte numa rede social: “Eu não sabia que Milton era um dos votantes da Academia, para fazer uma defesa tão ardorosa assim da correção das indicações. Uma postura que nem a presidente da Academia (uma mulher negra) teve”.

Lembremo-nos de que em outros tempos, antes de Morgan Freeman se revelar um conservador em questões raciais, o cineasta brasileiro

frente ao conservadorismo político de Milton Gonçalves e aos ataques decorrentes, viu-se obrigado a convocar as pessoas insatisfeitas a resguardá-lo como patrimônio cultural negro, como nosso Morgan Freeman. As coisas mudaram e dessa vez, o diretor considerou indefensáveis as declarações do ator.

É, de fato, um despropósito, para dizer o mínimo, referendar às cegas uma comissão selecionadora da indústria cinematográfica de Hollywood composta por 93% de pessoas brancas. É acreditar (ou pelo menos fingir que se acredita) na neutralidade da política.

A presidenta da Academia, Cherly Boone Isaacs, acostumada a jogar o jogo do poder com um lado definido, nesse caso, o lado das pessoas não-brancas nos EUA, anunciou duas medidas imediatas para minimizar as discrepâncias nas indicações ao prêmio, entre outras alterações de médio e longo prazo.

A primeira é, valendo-se de suas prerrogativas de presidenta, acrescentar três novos membros ao conselho curador com mandato de três anos. Especula-se que, pelo menos, serão escolhidas uma mulher e uma pessoa negra para esta instância diretiva. Viola Davis, quem sabe?

A segunda decisão é incluir novos membros na comissão executiva, responsável pelas decisões-chave sobre adesões e governança. Em outras palavras, Isaacs tem consciência de que é preciso ter representantes dos grupos discriminados nas instâncias de poder para modificar as coisas.

Enquanto isso, na terra brasilis, a discussão sobre o racismo no Oscar que, em suma, faz parte do debate acerca de seu enraizamento e suas manifestações no mundo, em todas as instâncias, de diferentes formas, é obliterada pelos supostos especialistas no funcionamento da indústria cinematográfica. Como se a engrenagem da exploração de pessoas e massificação de ideias e produtos no mundo contemporâneo não tivesse componentes racistas intrínsecos.

Do lado de cá, o lado das pessoas negras do Brasil, entendemos que o Oscar é um detalhe, um aspecto da complexa engrenagem racista que move a roda da vida.

Seguimos no posto avançado sobre a colina. Em posição quilombola de observação do mundo.

+ sobre o tema

Ministério Público vai investigar atos de racismo em escola do DF

O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT)...

Desigualdade ambiental em São Paulo: direito ao verde não é para todos

O novo Mapa da Desigualdade de São Paulo faz...

Nath Finanças entra para lista dos 100 afrodescendentes mais influentes do mundo

A empresária e influencer Nathalia Rodrigues de Oliveira, a...

Ministério da Igualdade Racial lidera ações do governo brasileiro no Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU

Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, está na 3a sessão do...

para lembrar

Jovem preta é afastada de bebê após nascimento em maternidade de Florianópolis

Manifestantes fizeram um ato na tarde desta sexta-feira (30),...

Pelourinho recebe Festival de Afoxés em homenagem a mulher negra

Um desfile de cores e ritmos marcou a noite...

“Racismo é estrutural e está no plano do inconsciente”

Presidente do Instituto Luiz Gama, Sílvio Almeida, e...
spot_imgspot_img

Ela me largou

Dia de feira. Feita a pesquisa simbólica de preços, compraria nas bancas costumeiras. Escolhi as raríssimas que tinham mulheres negras trabalhando, depois as de...

“Dispositivo de Racialidade”: O trabalho imensurável de Sueli Carneiro

Sueli Carneiro é um nome que deveria dispensar apresentações. Filósofa e ativista do movimento negro — tendo cofundado o Geledés – Instituto da Mulher Negra,...

Frugalidade da crônica para quem?

Xico, velho mestre, nesse périplo semanal como cronista, entre prazos apertados de entrega, temas diversos que dificultam a escolha, e dezenas de outras demandas,...
-+=