O perigo dorme ao lado. E agora? O que fazer?

Lembro que durante uma aula – ainda no meu primeiro semestre da graduação – escrevi um texto com o título “o perigo mora ao lado”. Ao lado. Quando essa situação ocorre com um vizinho, por exemplo, podemos recorrer a certos tipos de proteção como cercas, trancas, alarmes, câmeras e afins. Mas e quando o perigo dorme ao nosso lado? Nessa mesma época, eu estava há quase dois anos num relacionamento. Morávamos juntos e dormíamos na mesma cama. Não havia ferramenta de segurança que pudesse me proteger. Se um dia ele acordasse e quisesse me agredir (fisicamente ou sexualmente), seria fácil abafar meu grito. Ninguém iria me ouvir, e se ouvissem, provavelmente não interviriam. Portanto, com esse relato, meu intuito é escrever sobre comportamentos que denunciam um agressor em potencial e dicas para que você possa reconhecer e sair de um relacionamento abusivo, principalmente quando você mora com o agressor. Algumas informações serão deixadas ao final do texto para que você possa e saiba onde denunciar e pedir acompanhamento profissional.

por Juliana Cavalli no Psiqué Vulva

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Como reconhecer um agressor em potencial e um relacionamento abusivo:

1. Agressores em geral e agressores potenciais demonstram – e denunciam – suas tendências violentas através de atitudes cotidianas. Se o seu “companheiro” se torna extremamente agressivo antes ou durante situações que geram baixo ou médio estresse como: assistir a jogos, reuniões de trabalho, congestionamentos, atrasos, críticas, prazos e afins, tome cuidado. Isso é um forte indício de falta de controle.

2. A violência doméstica, geralmente, está atrelada a fatores emocionais e o uso de substâncias psicoativas. Busque perceber se ele faz uso dessas substâncias – principalmente álcool – e demonstra sentir muito ciúmes, paranoia, desconfiança, sensação de abandono, faz cobranças excessivas, entre outros.

3. A violência psicológica é o estágio inicial da maioria dos relacionamentos abusivos. Difícil de reconhecer e naturalizada pela sociedade, a violência psicológica se reproduz, principalmente, através da chantagem emocional. A chantagem emocional tem como objetivo tirar a sua autonomia, o seu poder de escolha. Se, por exemplo, através de chantagens e ameaças ele pede que você se afaste de amigos e/ou familiares; pare de ir para festas e/ou locais sem a presença e autorização dele; tenta controlar suas roupas e passa a presenteá-la com roupas que ele “gostaria” que você usasse, entre outros; ele está te violentando psicologicamente e de forma grave! Nenhuma chantagem é “inofensiva”. Na verdade, a chantagem é um meio de controlá-la de um modo “não-violento” fisicamente.

4. Se quando vocês discutem ele grita durante a maior parte do tempo; te ofende (principalmente de forma pejorativa como: “vagabunda”, “feia”, “gorda”, “puta” e afins); soca móveis, portas, paredes, etc; desconta a “raiva” em animais domésticos e sai de casa para, nas palavras dele, “evitar que aconteça algo pior”, ele está reproduzindo comportamentos presentes na maioria dos agressores. Gritar é uma forma de intimidação, assim como se posicionar de uma forma em que ele pareça ser/estar bem mais alto do que você. Isso é uma maneira de tentar tomar o controle da situação e impôr medo em você. A ofensa faz parte da violência psicológica e o que o agressor deseja é diminuir a sua autoestima, para que você acredite que não é desejável, que não é forte o bastante para enfrentá-lo, que é repugnante, submissa, suja… ele dirá qualquer para colocá-la numa posição inferior, para que assim consiga ter mais controle sobre você. Mas, vejamos, particularmente, eu acredito que socar móveis, portas, paredes e afins é uma espécie de metáfora. Na verdade, ele quer agredir você, mas está socando objetos porque ainda tem medo das consequências de te agredir. Ele sabe que você ainda não está sob o seu controle e que pode denunciá-lo. E ele não quer isso. O mesmo vale para quando ele sai de casa, mas deixa ameaças pairando. Traduzindo o clássico “vou sair para que algo pior não aconteça”, é fácil perceber que ele está dizendo que vai sair para não te agredir. Ou seja, a vontade está aí. A ameaça também está presente. Não ignore isso. Quando chegamos nesse estágio, geralmente falta pouco para que as agressões físicas iniciem.

5. Fique atenta aos sinais de isolamento. Se ele evita sair com você; insiste que você permaneça o máximo de tempo possível em casa; não te apoia quando você começa um curso, uma graduação ou arranja um novo emprego; fala mal de suas amigas e tenta coagi-la para que “evite” maior contato com elas, ele quer te isolar. Isolada você se torna mais dependente. Isolada você não tem apoio para denunciar as agressões, sente que não tem local para ir e que ninguém pode te proteger. E ele quer que você se sinta exatamente assim. Ele quer te fazer acreditar no abandono dos seus amigos e familiares. Todos te deixaram. Menos ele, é claro. Sem contato com o mundo exterior, nos tornamos muito mais vulneráveis, inclusive psicologicamente. E se, por acaso, você desenvolver transtornos psiquiátricos durante o relacionamento abusivo como: Depressão, Fobia Social, Transtorno de Ansiedade Generalizada, entre outros; ele também irá se aproveitar disso. O agressor se aproveitará dos nossos momentos de tristeza para nos dar colo e nos momentos de enfrentamento nos agredirá. Ele bate e depois assopra. Por isso a maioria das mulheres – e eu fui uma delas – ainda acreditam na “melhora” do agressor.

Essa suposta “melhora” nunca ocorre e com isso, o ciclo de violência aumenta e perpetua-se cada vez mais. Por isso é importantíssimo que estejamos atentas não só ao nosso relacionamentos, mas também aos relacionamentos construídos por nossas mães, filhas, irmãs, primas, amigas…

E como eu quebro esse ciclo de violência?

Se você mora com o agressor, precisa de orientações específicas para quebrar esse ciclo de violência. Supondo que você tenha identificado que está num relacionamento abusivo e deseja sair, abaixo estão algumas dicas.

1. Se você já passou por todos – ou quase todos – os estágios do relacionamento abusivo (violência psicológica, física e sexual), incluindo o isolamento, é importante que você pense em alguém a quem poderá recorrer, principalmente familiares ou amigos muito próximos – e que não sejam amigos do agressor, que de preferência o detestem -. Conte a violência pela qual está passando e diga que está decidida a sair. Pergunte se a pessoa pode lhe ofertar alguma espécie de “segurança”, se pode passar uns dias com você ou se você poderia ligar a qualquer hora para pedir ajuda, conselhos, etc. Se esse(a) amigo(a) ou familiar lhe oferecer “abrigo”, deixo-o(a) ciente de que é de suma importância que você não fique durante longos períodos de tempo sozinha nesse local e que ninguém deve saber da sua atual localização sem a sua prévia autorização. Caso o agressor conheça o endereço para o qual você pretende ir, priorize hotéis, pousadas ou um outro local que ele não saiba o endereço. Caso você queira auxílio legal, existem casas de acolhimento para mulheres em situação de violência que dispõe de segurança e localização confidencial (explicação ao final do texto).

2. Se você teme pelo “enfrentamento” que vai ocorrer quando avisá-lo que pretende terminar o relacionamento e sair de casa, planeje uma fuga. Caso ele trabalhe, anote seus horários e calcule em que período (manhã, tarde ou noite) você poderia se organizar e sair com a garantia de não encontrá-lo pelo caminho. Não se preocupe em levar todas as suas roupas ou tirar seus objetos na casa. Leve o necessário para passar algumas semanas. Monte uma mochila com algumas “mudas” de roupa, tênis (de preferência), e roupas íntimas. No momento de saída, priorize uma roupa e um calçado confortáveis. Não esqueça de permanecer com o celular carregado a maior parte do tempo – de preferência compre outro ou troque o número, assim você evita que ele fique te ligando -. Saia e deixe um bilhete. Não mencione sua localização e diga para ele não te procurar mais. Nessas horas, você precisa ter em mente que não deve maiores explicações à ele. Preze pela sua segurança!

3. Tenha dinheiro. Um dos fatores mais comuns em casos de violência doméstica é a dependência financeira. Sem dinheiro, o agressor sabe que você vai conseguir chegar, no máximo, até a esquina. Se você não trabalha (muitas vezes porque ele não permite) ou se ele controla sua renda, busque fontes alternativas. Por exemplo, se ele é desleixado e tem a mania de esquecer dinheiro nos bolsos das calças ou pela casa, pegue-o e guarde. Qualquer quantia é importante nessas horas. Se ele controla sua renda, aproveite os momentos em que ele pede para você pagar algo ou lhe dá dinheiro para comprar alguma coisa e burle seus cálculos. Se ele exige ver o comprovante das compras, opte por lugares que não emitem nota como: salões de beleza, lojinhas de 1,99, lojas de bijuterias, roupas e semelhantes. Se você tem acesso aos cartões de crédito dele, retire quantias pequenas a cada semana e guarde-as em um lugar seguro, de preferência na conta bancária de um(a) amigo(a) ou familiar.

4. Se a casa é sua e você quer que ele saia, opte por um choque de realidade. Nessa situação, o enfrentamento é inevitável. A minha situação era essa e ele demorou um mês para sair da minha casa. Durante esse um mês ele me perseguiu, me vigiou, me hostilizou… e, de fato, essa situação é mais delicada. Para esse tipo de enfrentamento, você precisa de apoio, de preferência, físico. Se você teme pela sua segurança, arrume a mala dele e deixe-a em frente à porta (ou portaria, caso você more em prédio) e tranque-se em casa. Caso ele também tenha a chave, nesse dia você precisará trocar a fechadura ou adicionar uma tranca a mais. Peça que alguém fique com você durante esse processo e deixe a polícia de sobreaviso. Como é provável que ele ronde a casa por alguns dias, exigindo vê-la, compre utensílios de proteção e deixe eles o mais próximo possível de você, sempre.

O término é a situação mais delicada quando falamos de um relacionamento abusivo. É durante ele que muitos homens “explodem” e buscam vingar-se da parceira. Dados de violência doméstica e feminicídio não nos deixam mentir. Por isso, reitero, é de suma importância que você esteja informada e saiba reconhecer os sinais de um relacionamento abusivo ou de um potencial agressor e dê um ponto final nessa relação o mais cedo possível. Também é de igual importância que você preze pela sua privacidade, evitando morar junto dele; não dê sua senha de cartões de crédito ou uma cópia da chave de sua casa; prezar pela sua privacidade é privar pela sua segurança!


Onde eu posso denunciar e receber atendimento especializado?

Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM):

Unidade especializada da Polícia Civil que atende mulheres em situação de violência. As DEAM’s realizam ações de prevenção contra a violência, recebem denúncias e investigam os crimes praticados contra as mulheres. A investigação inicia-se com o registro do Boletim de Ocorrências. Para registrar um B.O. a vítima não precisa estar acompanhada de testemunhas, nem precisa ter marcas da agressão sofrida. O relato da vítima de violência já suficiente para dar início à investigação.

As DEAM’s também solicitam as medidas protetivas de urgência à/ao Juiz/a e, quando é o caso, encaminham as mulheres para o Instituto Médico Legal (IML), para serviços de saúde, Casa-Abrigo, Defensoria Pública, Centro Especializado de Atendimento à Mulher ou outros serviços que prestam atendimento psicossocial.

Centro Especializado de Atendimento à Mulher (CEAM):

Espaço de acolhimento, atendimento psicológico e social, orientação e encaminhamento jurídico para as mulheres em situação de violência. Proporcionam atendimento necessário para a superação da violência, contribuindo para o fortalecimento das mulheres e para o resgate de sua cidadania. Os CEAM’s atendem mulheres que chegam de forma espontânea ou que são encaminhadas por outros serviços da Rede de Atendimento.

Defensoria Pública e os Núcleos Especializados da Mulher:

São órgãos do Estado que prestam assistência jurídica integral e gratuita à população que não tem recursos para pagar um advogado ou arcar com os custos de um processo judicial.

A Lei Maria da Penha estabeleceu que a Defensoria deve prestar assistência jurídica às mulheres na Delegacia ou no Juizado e criar núcleos especializados para atender as mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Se o agressor também precisar de atendimento da Defensoria, a prioridade é da mulher. A Defensoria Pública e os Núcleos Especializados da Mulher oferecem orientação e assistência jurídica e encaminham as mulheres em situação de violência para outros serviços da Rede de Atendimento.

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