O que o racismo já causou em minha vida

Hoje é Dia Internacional contra a Discriminação Racial e, bom, sobre isso eu entendo muito bem. Demorei muito para entender o que o racismo já causou na minha vida e, hoje, olhando pra trás, vejo a quantidade de coisas que já deixei de fazer pelo preconceito dos outros contra a cor da minha pele. Nascer negro é saber que uma hora ou outra alguém vai te olhar diferente por causa da sua cor e te discriminar pelos seus traços. Se bobear, a discriminação já acontece antes mesmo de você sair do berçário.

Foto: Reprodução ONG Criola

Por Karla Lopes no Superela

Na escola as crianças eram cruéis. Falavam da minha boca, do meu cabelo, do meu nariz… Beiçuda, nariz de tomada, cabelo duro e outros “apelidos” eram coisas que eu ouvia praticamente todos os dias. Puxavam meu cabelo e diziam que iriam cortá-lo para ariar as panelas da cantina. Aos 9 anos, implorei para a minha mãe alisar o meu cabelo na esperança de que as provocações racistas parassem – não pararam. Aos 15 anos, procurei uma cirurgiã plástica para saber se havia alguma possibilidade de eu fazer uma redução dos lábios e também afinar o meu nariz. Se eu tivesse condições na época, fatalmente teria feito tais procedimentos.

Imagem: Instagram @illustration315

Nos relacionamentos, o racismo não é diferente. Vocês com certeza já ouviram falar sobre a solidão da mulher negra (explicamos aqui o que é). Até pouco tempo atrás, eu não entendia muito bem o que era isso, mas bastou ler um pouco sobre o assunto para me reconhecer nessa posição. Ainda na escola, eu não era a escolha dos meninos como par para as festas ou apresentações. Lembro muito bem de quando um me disse que até me escolheria se eu não fosse tão pretinha. Isso me marcou tanto que passei a não quer mais participar das festas escolares.

Outro fato que me causa certo trauma até hoje foi quando, já aos 18 anos, fiquei com um menino em uma boate na minha cidade e o amigo dele disse que ele teria que lavar a boca caso quisesse beijar uma menina bonita na festa. Depois que aconteceu isso comigo, junto aos milhares de relatos sobre racismo que vejo em festas assim, passei a não frequentar mais boates heteros (mesmo sendo). Entro nesses locais e sempre vêm essa história a minha cabeça. Aí o que acontece? Me sinto desconfortável, sufocada e acabo indo embora em menos de 10 minutos de permanência.

Uma vez, quando eu ainda era adolescente, minha avó me disse que para ter cuidado ao namorar homens brancos. Eu não entendia muito bem o porquê dela dizer isso até começar a me relacionar com um e ele me dizer que não se sentia confortável para me apresentar para a família porque eles tinham dificuldade em se relacionar com gente de cor. “Olha, Ká, não sou racista nem nada, você sabe, mas acho que vai ser difícil te apresentar pra minha família agora como minha namorada porque eles não têm muita relação com negros”. Vocês não imaginam como isso me doeu e o trauma que me causou.

No trabalho o racismo também existe. Não esqueço da vez em ia fazer uma ação para uma loja e o marketing de lá entrou em contato comigo, uma semana antes da data, falando que teriam que cancelar o trabalho porque tiveram que mudar o perfil das fotos. No dia em que elas foram feitas, entrei no Instagram e todas as meninas das imagens eram brancas e loiras. Não precisei pensar muito para entender o x da questão, né? Depois veio a confirmação de uma amiga que trabalhava em tal loja de que cancelaram comigo porque negros não eram o público alvo da marca. Negros não podem comprar lá? Oi? Fiquei tão triste com isso que quase joguei fora um projeto que já tinha 6 anos!

Lidar com racismo não é fácil!

Canso de ver pessoas dizendo que “agora tudo é racismo“, “quanto mimimi” ou que “o mundo está chato”. Queridos, tudo SEMPRE foi racismo. A diferença é que as pessoas não lutavam, não falavam, não confrontavam ou, até mesmo, pela discriminação racial já estar tão introjetada na sociedade, nem percebiam que estavam sendo alvo de preconceito. Eu fiz tratamentos psicológicos para me livrar dos meus traumas – e alguns ainda só foram amenizados.

Antes de julgar uma opressão que você não sofre, tente entendê-la. A gente vê casos de racismo to-dos os dias. E isso atinge to-dos os negros, independentemente se eles estão na TV ou passando na sua rua. Racismo não só mata, como também machuca, causa traumas, nos trava, nos impede de viver com a segurança física e pessoal que qualquer outra pessoa não negra viveria. Hoje eu sei do meu valor, mas isso não impede de eu ter que prová-lo o tempo todo.

Como já vi muitos negros dizendo por aí, a gente precisa fazer as coisas duas vezes melhor para se igualar a um branco. Fora que, muitas vezes, precisamos ser os primeiros – a ganhar um Oscar, a estar na TV, a ser protagonista de uma novela, a descobrir um feito histórico, a ser presidente de uma nação… – porque, mesmo no século XXI, ainda falta espaço pra gente em posições que são majoritariamente ocupadas por brancos.

Sei que tudo isso está longe de acabar. A gente não consegue botar um fim de anos de opressão em apenas um dia. Mas hoje, no Dia Internacional contra a Discriminação Racial, o meu único pedido é pra que a gente continue lutando. Sei que é difícil, é dolorido, mas quero que você aprenda que não deve abaixar a cabeça e deixar que te diminuam pela cor da sua pele. Eu estou tentando todos os dias, e vejo muita gente nessa tentativa também. Se vamos conseguir acabar totalmente com isso, eu não sei. Mas, mesmo em pequenos passos, vejo que o que a gente mais tem é força para lutar. Vamos juntos – e de cabeça erguida!

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