‘O racismo continua lá e ainda precisamos falar sobre ele’, diz escritora sul-africana

O primeiro livro de Futhi Ntshingila começa com um tiro. Thandiwe, uma mulher que ganha a vida vendendo seu corpo nas ruas de Yeoville e que expõe a economia da África do Sul pós-apartheid, leva um tiro na nuca depois de apanhar e ser deixada no chão. “Eu não deveria me surpreender, o trabalho dela é duro”, escreve Futhi.

Por Fernanda Canofre, Do Sul 21

Fotos: Guilherme Santos

O segundo livro de Futhi Ntshingila começa falando de um funeral. Mvelo, uma menina “jovem, mas que se sentia velha como um sapato gasto”, caminha sem esperança num país sob o regime do apartheid, depois de ver os benefícios sociais que ela e a mãe soropositiva tinham serem suspensos. “Foi naquele dia, quando a bolsa de auxílio-doença da mãe foi suspensa, que Mvelo parou de pensar mais do que um dia por vez”, escreve Futhi.

Formada em Teologia e Inglês, mestre em Resolução de Conflitos, jornalista de profissão, Futhi Ntshingila nasceu em Pietermaritzburg – cidade com 70% da população composta por negros, 57% de etnia zulu, como Futhi – numa família de cinco filhas mulheres, onde o pai era o único homem da casa. Durante 20 anos, a única realidade que conheceu foi a do regime de segregação racial que ditou a vida em seu país por mais de três décadas e da história de mulheres que conseguiam rir acima de tudo e seguiam em frente.

A tradução brasileira de seu segundo livro, “Sem gentileza”, publicado este ano pela editora Dublinense, é a primeira de suas obras para uma língua estrangeira. Ao escrever sobre histórias de mulheres negras e sobre as periferias esquecidas de grandes cidades sul-africanas, Futhi passou a ser reconhecida como uma das vozes de sua geração. Uma geração de pessoas que conheceram a indiferença e o racismo, a segregação e a libertação de Nelson Mandela, a ideia das cidades arco-íris e a realidade não tão diferente do que era quando negros e brancos não podiam se misturar, a democracia para todos e um país que ainda fecha espaço a mulheres e registra 55 mil estupros por ano.

No Brasil para lançar o livro que esgotou sua primeira edição e ficou entre os mais vendidos durante a Feira do Livro de Porto Alegre, a escritora de fala delicada e sorriso fácil conversou com o Sul21 sobre assuntos duros como racismo, feminismo, jornalismo e literatura:

Sul21: Você nasceu e viveu por 20 anos sob o regime do apartheid, na África do Sul. Como foi crescer em meio a uma sociedade legalmente dividida?

Futhi Ntshingila: Eu tinha 21 anos quando pudemos votar pela primeira vez. Era bem difícil, mas eu tive uma família que me fazia sentir como se isso fosse normal. Era um meio de sobrevivência, eles tinham de me fazer sentir como se esse fosse o jeito que as coisas são. Mas conforme você vai crescendo, você começa a perceber que algo está errado e algo está errado com o que está acontecendo. Quando tivemos de votar, nem sei explicar a alegria de todo mundo, nas ruas, as pessoas esperando nas filas e, finalmente, podendo votar. Eu acho que isso foi ainda mais significativo para as pessoas mais velhas, pessoas da geração do meu pai, por exemplo. Para nós foi incrível, foi excitante, mas para eles era algo emocional, sabe? Foi uma época muito emocionante. Acho que todos os países que passaram por algo parecido têm isso. É um sentimento quase indescritível, depois que passa, é como se você não pudesse acreditar em como as coisas eram até então.

Sul21: Como foi crescer em uma sociedade onde brancos e negros não poderiam estar juntos, onde pessoas eram separadas por etnia? Você tinha essa separação consciente?

Futhi Ntshingila: Eu acho que porque você cresce no meio do seu próprio povo, no seu próprio ambiente, você meio que foca nisso. Você foca que isso é um “anormal-normal”. É difícil, mas não era algo que eu sentia todos os dias porque íamos para uma escola que não havia ninguém de outra raça, só nós; íamos para igrejas onde não havia nenhuma outra raça, só nós. E de alguma maneira esquisita, ainda é assim. Ainda estamos separados. As leis dizem que você pode morar onde você quiser, mas as pessoas escolheram viver onde sempre viveram. Então, é algo que segue, mas de uma maneira diferente agora. As pessoas estão fazendo escolhas, mas na verdade muitas delas nem têm escolhas, porque você também precisa ter dinheiro para viver em áreas mais influentes. Se você não tem esse dinheiro, a escolha é feita por você. Por isso, ainda vivemos basicamente da mesma forma que era durante o apartheid. O que é triste.

Sul21: E por que você acha que é assim? A tradição tem algum papel nisso também?

Futhi Ntshingila: Eu acho que é a economia mais do que tudo. A economia está determinando como as pessoas vivem suas vidas. Porque, mesmo que você queira morar em outro lugar, sem dinheiro para isso… Eu acho que mais do que tudo é a economia que está falando.

Sul21: Os Estados Unidos acabam de eleger um presidente que já fez comentários assumidamente racistas e está prestes a nomear um homem, que defende a supremacia branca, para seu gabinete. No Brasil, apesar de termos sido o último país das Américas a abolir a escravidão e um dos maiores mercados de escravos do mundo, só recentemente começamos a discutir o racismo que existe aqui. Como isso tem funcionado na África do Sul? Como vocês têm conseguido fechar as feridas que ficaram depois de 46 anos de segregação?

Futhi Ntshingila: Acho que ainda não conseguimos fechar essas feridas, para ser sincera. Acho que ainda é uma conversa atual, mas temos algo que se chama Comissão da Verdade e da Reconciliação, onde as pessoas podem vir e falar sobre as coisas que fizeram. Por exemplo, policiais brancos que estavam envolvidos na segregação na época, vêm e falam sobre o que fizeram, quem eles mataram, onde os ossos podem ser encontrados. É algo que ajuda as pessoas a saberem que seus mortos estão descansando em paz. É muito importante. Um policial vir a público e dizer ‘eu matei essa pessoa, foi aqui que eu a enterrei’, entregar os ossos para que eles possam ser enterrados no lugar certo e receber orações, acho que isso é uma forma de lidar com a cura, mas não é tudo. Ainda hoje, como aqui e como nos EUA, ainda há uma conversa sobre raça, ainda é uma longa história que precisa ser contada repetidamente. Nunca desaparece completamente. O que eu gosto no meu país é que é uma conversa bastante aberta. Está lá, é forte, é dolorida, mas é conversada. [O racismo] continua lá e ainda precisamos falar sobre ele.

O que gosto da minha terra natal é que temos um grande grupo de pessoas que te escuta. Ainda existem pessoas que ficam na defensiva, mas está em aberto e público. Se você me perguntar quais as diferenças entre os EUA e o que está acontecendo lá, eu te diria que enquanto eles querem dizer “já lidamos com nossos problemas e eles estão resolvidos”, a África do Sul quer dizer “nós ainda temos que conversar sobre isso”.

Sul21: A sociedade então aceita que o problema existe e que precisa falar sobre ele?

Futhi Ntshingila: Acho que nem todo mundo aceita, mas é algo dominante. Está no domínio público e as pessoas sabem disso, o que é muito bom. O que eu gosto é que dos dois lados temos pessoas que estão dispostas a ouvir.

Sul21: O título original de seu livro “Sem gentileza” é “do not go gentle” (em tradução livre, “não vá gentilmente”), isso poderia ser um lema de como lidar com supremacistas arianos ganhando poder?

Futhi Ntshingila: O título em inglês foi baseado em um poema de Dylan Thomas, Do not go gentle into that good night. Era mais sobre a sobrevivência, da luta por sobrevivência de uma mãe e uma filha. Então, era mais sobre elas e eu não estava tão focada nesse assunto racial. Mas acho que se você quisesse relacionar com o que está acontecendo agora, eu concordo. Acho que temos de ser rigorosos, temos de falar a respeito, precisamos de mais ativismo social. Assim não importa quem esteja no poder, vai saber que tem uma oposição forte para dizer que certas coisas não deveriam estar acontecendo. Você precisa ser ativo e dizer: eu não me sinto confortável com o que está acontecendo. Mesmo que as pessoas no poder ajam como se não se importassem, eles se importam sim. Eles se sentem sim desconfortáveis ou incomodados por pessoas que se levantam e dizem “não, não pode acontecer dessa forma”.

Sul21: No seu livro você fala de três gerações de mulheres, da questão do estupro, da tradição da virgindade. Por que esses assuntos são importantes para você?

Futhi Ntshingila: Eu acho que é muito importante, não é a vida de toda mulher da África do Sul, mas é a vida de uma mulher cujas escolhas são feitas por ela, por causa das questões econômicas que eu estava falando. Como uma mulher pobre, como uma pessoa que vive em uma sociedade com pobreza, essas coisas são possíveis de acontecer e são uma realidade, triste, mas ainda uma realidade. Eu acho que o que queremos é poder dizer “ah, já lidamos com a opressão, agora temos democracia, vamos olhar para frente”. Mas existe uma boa parcela da sociedade que vive onde acontecem esses estupros, onde há pobreza e você acaba se esquecendo deles. Por isso eu precisava contar uma história que colocasse diante de você e dissesse: olha, esses problemas ainda estão acontecendo. Acho que isso era meu objetivo principal com a história.

Sul21: A África do Sul tem uma média de 55 mil estupros registrados por ano. Como a sociedade, os governos lidam com isso?

Futhi Ntshingila: Tem algo que é bastante perturbador. Quando você vai a um hospital, a coisa mais rápida para se dizer é “onde você estava?”, “por que você estava sozinha à noite?”, “por que você está vestida dessa forma?”. Eles focam mais na vítima do que no agressor e isso é um problema. Existe essa coisa no ar, como se treinassem mulheres sobre como não ser estuprada, entende? Pela forma como você se veste, pelo que você bebe, pedindo que mantenha sua bebida sempre perto de você, e aí entra o machismo. Porque é como se quisessem culpar a mulher ao perguntar por que ela estava lá, como ela estava vestida. Como se essas pessoas fossem animais que não pudessem controlar a si mesmos sempre que uma mulher usa uma saia curta. Acho que em todas a parte ainda temos esse problema. E como em todas as situações, quando há pobreza no meio, se torna ainda mais pronunciado, um problema ainda maior.

Sul21: E como são as políticas públicas de atendimento às vítimas?

Futhi Ntshingila: Em algumas estações de polícia existem o que chamamos de “kit estupro” (rape kit), que usam para coletar provas. Mas eu ainda acho que, acima do número de estupros que são denunciados, há muitos que não o são por vergonha. Há muita vergonha associada a isso. Nós temos um sistema que tenta proteger as mulheres, mas não acho que funcione ao máximo ou da forma que deveria funcionar.

Sul21: Como você consegue escrever sobre algo assim?

Futhi Ntshingila: É muito difícil. Você vai ver que está construído de uma maneira que não te dá muitos detalhes. Na nossa cabeça, a gente sabe exatamente o que está acontecendo. Nós temos esse problema com líderes religiosos que usam seu poder para estuprar e abusar de pessoas que não têm poder. Para mim, o que me ajudou era saber que em algum momento ele iria ter o que merecia. Mas enquanto eu estava escrevendo, foi um momento bastante difícil.

Geralmente, eu escrevo à noite porque trabalho durante o dia. Eu lembro que tive dificuldades para dormir por um tempo, depois de escrever esse trecho [do estupro]. Eu tentava me colocar na situação dela, de estar sozinha, estar assustada e confiando que essa pessoa faria algo de bom para ela, a mãe em casa pensando que a filha iria estar com alguém bom e ver essa pessoa destruir tudo. Então, é um pouco duro. Mas no sábado, antes de vir para cá [para o Brasil], eu participei de um painel em Durban com uma estudante de Psicologia que escreveu um livro sobre sua própria experiência. Ela fez muitas pesquisas sobre estupro e porque os homens estupram, no dia em que ela entregou sua tese e estava celebrando com amigos, ela foi estuprada. Então, quando você me pergunta sobre algo que é ficção, eu penso nela. Eu penso no que aconteceu com ela e na coragem que ela teve de escrever sobre isso. Minha situação fica pequena perto do que ela teve de passar.

Sul21: Outro tema presente no livro é a questão do HIV. Isso é outro ponto onde estamos regredindo bastante no Brasil e o Rio Grande do Sul tem a maior taxa de contágio do país. Como você decidiu que isso seria um dos assuntos principais do livro?

Futhi Ntshingila: Houve uma época em que era um tabu. Falar de HIV ou viver com HIV era um tabu. Acho que isso acontecia porque as pessoas estavam presas ao medo, elas tinham medo da doença. Na verdade, algumas famílias deserdavam e se afastavam de seus parentes se descobrissem que eram soropositivos. Mas também muito trabalho já foi feito sobre como lidar com o HIV, sobre como lidar com o estereótipo, se certificando de que as pessoas ainda são bem-vindas na sociedade, de que elas estão bem, de que isso não é mais um tópico para se ter vergonha. Também temos tido distribuição dos remédios de tratamento em larga escala, porque ainda que você não possa curá-la, hoje em dia há muitas coisas que podem ajudar a viver por mais tempo. Antes era só morte por todos os lados, era assustador. Agora, em termos de apoio, está melhorando e também está ajudando a prevenir novos casos.

Acho que é importante mostrar o quanto isso pesa sobre as famílias. No livro, por exemplo, uma criança de 13 anos é basicamente forçada a cuidar da mãe de 30 e poucos anos. Isso basicamente te mostra que algo está anormal na sociedade, quando uma criança tem que crescer rápido demais e não tem tempo de ser uma adolescente. Para mim, não havia melhor maneira de fazer do que usar essa doença, porque é isso que está acontecendo. Essa é a experiência de muitas pessoas que tiveram de crescer porque tinham de cuidar de suas mães. É como se as leis da natureza tivessem sido perturbadas.

Sul21: Sobre o pano de fundo de suas histórias – a periferia – como você o escolheu?

Futhi Ntshingila: Eu acho que definitivamente era uma voz que faltava e eram personagens que estão fora do domínio público. Como repórter, você sabe como é isso. Você consegue uma história, vai ao editor e muitas vezes ele diz “hmm, não sei bem, talvez não seja uma boa ideia escrever sobre isso” ou eles dizem “pode escrever, mas vou te dar 300 palavras”. Isso me deu uma chance de fazer algo como um formato longo de jornalismo, exceto que aqui eu também tinha de trabalhar com escrita criativa e ficção. As coisas que me interessavam como jornalista eram justamente as histórias que eu sentia que não eram bem contadas e não tinham espaço digno no domínio público.

Sul21: Seus dois livros têm mulheres como protagonistas. Gostaria de saber como você, como autora, vê essa ideia de “mulheres fortes” – que inclusive é uma categoria de filmes do Netflix – esse uso da palavra “forte” simplesmente porque elas estão vivendo histórias difíceis. Se a personagem fosse um homem, por exemplo, jamais você veria essa palavra associada porque é como se naturalmente se esperasse “força” dele.

Futhi Ntshingila: Exatamente! Para mim, quando eu estava escrevendo, eu nem estava pensando em “mulheres fortes”, em reunir ali personagens de “mulheres fortes”. Eu cresci com quatro irmãs, uma mãe e o único homem da casa era meu pai. Acho que naturalmente, quando falamos sobre isso, falamos de pessoas que você pode reconhecer em sua mente. Por exemplo, eu tenho duas avós e a história delas está em Shameless – meu primeiro livro – porque elas eram exatamente assim: elas estavam lutando por sobrevivência, mas eram engraçadas, a vida seguia para elas. Então, para mim, eu queria escrever exatamente sobre isso: ok, elas têm problemas, mas elas não são definidas por seus problemas. E isso sempre acaba se traduzindo como “mulheres fortes”. Mas esse é um ponto interessante, quando se escreve sobre homens, nunca se ouve isso.

Sul21: É como um escape fácil, não? Um clichê a que se recorre sempre que não se sabe como descrever uma personagem feminina. Como você descreveria suas personagens para fugir disso?

Futhi Ntshingila: Eu diria que elas são independentes, porque elas lutam bastante para não ser aquele tipo de pessoa que diz “por favor, me ajude”. Elas são o tipo que pensa o que podemos fazer com uma situação, como podemos seguir adiante com ela. Mas não sei exatamente que palavra eu usaria se eu tivesse que pensar em uma. O que me deixa muito feliz é que todos percebem que elas não são o tipo de mulher por quem você sente pena. Para mim, isso é muito importante. Não lamente por elas, porque elas estão apenas tentando encontrar uma maneira de ganhar a vida e estão conseguindo, estão no controle da situação. Não é fácil…

Zola [uma das personagens principais de “Sem gentileza”], por exemplo, poderia ter escolhido ficar com esse cara e ser cuidada por ele em uma casa. Mas quando ele diz que encontrou outra pessoa, ela diz “não, eu não vou dividir e vou encontrar uma maneira de viver com minha filha”. Teria sido mais fácil se ela tivesse dito “ok, vamos viver sob o seu teto e você vai cuidar de nós”, mas isso não faria sentido para mim.

Sul21: Recentemente, o jornal The Guardian fez uma matéria com escritores afro-americanos e uma autora, Tananarive Rue, disse que “escrever personagens negros ainda é um ato revolucionário”. O que você acha dessa afirmação?

Futhi Ntshingila: É um ato revolucionário sim, porque você lembra que durante um longo tempo nós não existíamos. Se você perguntasse sobre a demografia da África do Sul, as pessoas iriam pensar apenas nos brancos, ainda que nós fossemos a maioria, nós não existíamos. Vou te dar um exemplo: nos anos 1890 tivemos um episódio conhecido como Guerra Anglo Boer – quando os ingleses enfrentaram os afrikaners – os negros lutaram pelos dois lados da guerra e você não consegue encontrá-los em parte alguma dos livros de História. Como se eles não tivessem existido. Depois da democracia, alguém escreveu sobre essa história e chegou a um ponto em que já não era a Guerra Anglo Boer, mas uma Guerra Sul-africana, isso mostra o quanto nós não existíamos. Por isso eu concordo com essa escritora, ainda é revolucionário, porque mesmo hoje em dia, ainda temos de nos inserir em certas situações em que nos fizeram não existir.

Sul21: Você também é jornalista. Estamos em uma época em que uma mulher jornalista venceu o Prêmio Nobel de Literatura por seu trabalho jornalístico, a bielo-russa Svetlana Aleksiévitch. Que papel o jornalismo tem na sua escrita?

Futhi Ntshingila:  É engraçado quando você se senta para escrever uma história mais longa, porque as memórias de coisas, de histórias que você tinha largado começam a voltar para você. Eu me lembro de uma vez em que tivemos algumas enchentes, as pessoas tinham de se mudar de suas casas porque as fundações não eram muito boas e a água poderia levar tudo, quando eu estava escrevendo uma de minhas histórias, lembrei de uma vez em que fui entrevistar pessoas sobre isso. Quando eu estava escrevendo alguns dos personagens, aquelas pessoas me vieram à mente. Eu acho que me ajuda assim e me ajuda a seguir, não desistir da escrita. Não tenho certeza se a escrita como jornalista mesmo me ajudou, porque você sabe como temos de escolher com cuidado nossas palavras e frases. Acho que aconteceu o contrário, eu me libertei, agora eu posso escrever livremente porque tenho uma licença criativa. Posso colocar coisas ali que não poderia enquanto estivesse escrevendo uma história de 300 palavras.

Sul21: E o que você acha da responsabilidade que o jornalismo tem de lançar luz a temas que acabam sempre marginalizados? Especialmente agora que vemos uma onda reacionária e conservadora em tantas partes do mundo.

Futhi Ntshingila: Eu acho que tem um papel aqui, mas… Eu acho que o jornalismo já ajudou a expôr muitas coisas sobre as coisas não sabíamos, mas também acho que ainda pode ajudar a perpetuar certos estereótipos. Como alguém que já esteve dos dois lados, acho que eu posso tentar ser objetiva e dizer que tem sim um papel, como o “quarto poder” e faz seu trabalho muito bem quando se trata de expôr algo. Mas eu também aprendi, e isso foi bastante decepcionante para mim, que dentro da redação você nunca poderá ser objetivo, que não existe isso de jornalismo neutro. Cada empresa de mídia tem seus interesses, seja dos donos, de quem compra, de quem anuncia nas páginas, e a ideologia deles é o que dita o que você escreve. Nos EUA, as pessoas sabem e é bastante claro o que a FOX News representa ou a CNN. (…) [Na África do Sul] não é bem assim. Recentemente, uma repórter de televisão fez uma reportagem usando uma espécie de turbante na cabeça, a emissora cortou a história dela e disse que era por isso, que eles achavam que ela não deveria estar usando aquilo na cabeça. Isso se transformou em uma grande coisa. Por mais que a gente fale sobre a questão racial, ainda existe um racismo que é muito sutil, muito leve e acho que é isso que aconteceu aqui. Na verdade, você me lembrou de outro assunto. Através das redes sociais – que muitas vezes fazem um trabalho muito melhor do que a mídia tradicional – a repórter escreveu contando que fez a história, que gastou tempo em cima dela, mas que agora o editor estava dizendo que eles não podem usar a história porque tinha o turbante. Agora, toda sexta-feira, todas nós vamos trabalhar, para a escola, com as cabeças cobertas para mostrar para eles. Então, é isso. O papel da mídia ainda existe, ainda alcança muitas coisas, mas acho que as redes sociais e a tecnologia têm nos ajudado a expôr ainda mais. Os assassinatos de homens negros, nos Estados Unidos, por exemplo, sem esses telefones…Muitos já foram assassinados e nada acontecia. Agora, policias têm de pensar duas vezes antes de fazê-lo.

Sul21: Você também estudou resolução de conflitos. Como foi isso?

Futhi Ntshingila:  Sim, é verdade. Eu ainda não tive nenhuma situação em que pudesse aplicar meus estudos, mas eu sempre me interessei por coisas diferentes, como uma colecionadora. Minha graduação foi em Teologia e Inglês, então acho que meu interesse por resolução de conflitos veio de alguns estudos que fiz dentro da Teologia. Ainda durante a faculdade, acabei me interessando por jornalismo e deixei todas as outras coisas de lado. Quando a chance de estudar resolução de conflitos veio, resolvi aceitar. Eu acho que é um daqueles assuntos que não entendo porque não há ninguém utilizando, mas acho que é muito, muito importante. As aulas deveriam começar na fase lúdica das crianças, quando elas ainda estão brincando, aprendendo a se comunicar umas com as outras de uma forma ainda pacífica. Parece utopia, de uma certa maneira, mas acredito que pode funcionar.

Sul21: Como funcionou exatamente sua pesquisa?

Futhi Ntshingila: Eu analisei especificamente o comportamento das crianças e os efeitos psicológicos que castigos corporais podem ter sobre elas. Elas prefeririam apanhar ou conversar a respeito? O interessante é que as crianças que eu entrevistei estavam tão condicionadas a serem fisicamente punidas, que elas preferiam isso do que ser ensinadas e conversar. Foi muito interessante e muito triste.

Sul21: Qual a mensagem que você quer deixar aos seus leitores quando eles terminam de ler seus livros?

Futhi Ntshingila: Esperança. Eu tive um pouco de problemas com meu último livro, especialmente em casa [na África do Sul]. As pessoas começaram a dizer que no fim tudo ficava muito amarradinho, mas eu só dizia a mim mesma: eu me mataria se o livro não fosse assim! Eu sei que me criticam, mas não posso mudar, senão qual o ponto de tudo isso? Por que eu ainda escrevo? Eu me envolvo muito no processo, ainda que às vezes perceba que tal pessoa tem que ir.

Acho que a parte mais deprimente para eu escrever, neste livro, foi a parte do estupro. Quando eu estava escrevendo, já estava perto do fim, e eu pensava “não vou deixar isso para fim porque vai ficar muito deprimente, vamos dar as más notícias primeiro e depois vemos para onde vamos”.
Espero que quando as mulheres lerem isso, possam ver que as coisas não tem que terminar assim e que elas podem se colocar fora dessa situação. Então, esperança, esperança, esperança é minha mensagem a todo mundo que lê.

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