O racismo lucrativo disfarçado de humor

O brasileiro admite que vive em uma sociedade racista, mas não admite o racismo em suas próprias atitudes. De acordo com uma pesquisa, 92% da população enxerga a existência de racismo, mas apenas 1,3% se considera racista. Onde é que essa conta não fecha e qual é a falha dessa equação?

A luta contra o racismo não recebe a atenção que merece. Apesar das incontáveis denúncias esta pauta continua invisibilizada por pessoas que não sofrem este tipo de violência diretamente, e insistem em diminuir a importância do empoderamento negro. Mas por que pessoas brancas não enxergam a importância da causa negra e não desconstroem seu próprio racismo? Primeiro, a pesquisa mostra que apesar de haver o reconhecimento de uma sociedade desigual, os indivíduos não se veem como propagadores de racismo. O problema é sempre o outro. Uma outra causa, muito danosa, é que o racismo é lucrativo.

A TV lucra ao reduzir pessoas negras a objetos de entretenimento, resumidas a estereótipos negativos que a mídia não se propõe a desconstruir, a exemplo da personagem Adelaide, de Zorra Total. E outras marcas também lucram com a diminuição da identidade negra. É o que faz a página de humor do facebook “Diva Depressão”. Aparentemente a página começou com a proposta de “humor ácido”, unindo fotografias de artistas famosas por sua beleza a frases “engraçadas”, mais uma vez aqui usando aspas porque esse humor só serve para um grupo.
Diva Depressão então aproveitou sabiamente seu sucesso para fazer da página uma fonte de renda, lançando uma loja com produtos com as frases anteriormente publicadas no Facebook. Nossa problematização tem seu foco aqui: uma das frases é Je Nes Suis Pas Suas Nega.

A frase “não sou tuas nega” carrega uma agressividade imensa para as mulheres negras, como já fora bem explicado por Stephanie Ribeiro em seu artigo “Você usa a expressão ‘Não sou tuas nega’? É hora de parar”. A expressão é histórica, remete à época em que mulheres negras eram vendidas, compradas, trocadas. Enfim, elas pertenciam a homens brancos ricos que as adquiriam como amantes, escravas ou amas de leite. “Não sou tuas nega” significa “não sou sua negra escrava”, o que quer dizer “não pertenço a você”. A essência racista desta frase é bastante evidente, embora haja quem insistentemente lute para tere o direito de seguir proferindo a expressão que, por séculos, foi usada para colocar a mulher negra em patamares socialmente inferiores.

Ao tomar conhecimento do fato de que a página Diva Depressão estava lucrando com uma frase racista, enviei um e-mail via formulário de contato, explicando o contexto histórico de “Je Nes Suis Pas Suas Nega”, e alegando que o pretenso bem humorado produto era ofensivo. A mensagem, enviada no início de outubro e cujo trecho exponho abaixo, solicitava a revisão do posicionamento da marca diante de um fato considerado grave por mulheres negras:

“Essa expressão é totalmente ligada com a escravidão, quando as negras eram literalmente propriedade de homens brancos. Ela também reforça a associação direta da mulher negra ao sexo, como se ela fosse de todo mundo, como se o papel dela na sociedade fosse estritamente sexual. Pense: e se a expressão dissesse “não sou tuas branca”? Ela passaria a mesma ideia? Certamente não. É possível que ela jamais chegue a ser reproduzida. Gostaria de poder contar com a empatia, respeito e a capacidade de entendimento das pessoas por trás da página e da loja, para que compreendessem quão problemática é a expressão contra a qual temos lutado por tanto tempo.  O fato de vocês acharem que não ha nada de errado com a expressão, não quer dizer que esta visão reflita o que ela representa de verdade. Digo isso porque na fanpage muitas pessoas não negras se mostraram contrariadas e nos chamaram de exageradas, mas demonstraram não ter conhecimento do contexto histórico que nos levou a convidá-los a refletir acerca deste termo que é absurdamente ofensivo às mulheres negras.”

A resposta veio rápida e cordial:
“Prezada Gabriela. De fato a expressão endossada na estampa não é de intuito para o cunho racista. Evidentemente que não colaboramos com nenhuma forma de preconceito ou discriminação, seja contra qualquer pessoa. Informo que sua mensagem e sugestão, será analisada pela nossa equipe.”

Contudo, a resposta não veio acompanhada de uma ação. Houve um suposto entendimento por parte da marca de que se não há a intenção de ofender, a ofensa deixa de existir. O que é um erro primário e demonstra que os administradores não estão preocupados em atender os ensejos de seu público, a não ser que compremos absolutamente todas as ideias sem questionar, ainda que tais ideias sejam carregadas de preconceito. A falta de atitude também deixa óbvia a pouca empatia por parte de uma loja que parece apenas querer lucrar, custe o que custar, pouco se importando em travar um diálogo com potenciais consumidores – partindo do princípio que poderíamos nos tornar consumidores reais se a marca conseguisse desenvolver senso de confiança no público.

Há quem lucre com a desigualdade, não há surpresa neste fato. Porém não deixa de ser inacreditável como as pessoas que não são afetadas pelo racismo e machismo seguem sistematicamente se negando a ouvir quem está dentro do problema e lida com isso diariamente. É muito mais fácil apontar uma suposta “histeria coletiva” dos movimentos sociais do que questionar os limites da própria zona de conforto. Mas, como nada é imutável, seguimos lutando para que mais pessoas reconheçam seus direitos e não aceitem mais o lugar de submissão que outros grupos tentam nos impor.

Não há nada de engraçado ou inocente em lucrar com o racismo.

 

Fonte: Gabinóica, etc

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