O racismo no banheiro

Jamais vi um banheiro tão sofisticado como o da sede da Microsoft, em Seattle. Durante uma visita didática o guia mostrou o lugar reservado aos nerds para escorregar o moreno e tirar água do joelho. Um primor de tecnologia. Em frente ao sanitário uma tela de tevê com os últimos lançamentos. À época, Star Wars e Senhor dos Anéis, ainda não exibidos em cinemas. Havia um pedal para exercícios, turbina com xampu cheirando a frutas vermelhas e papel higiênico perfumado. Para casos de overdose, o botão de emergência antiafogamento poderia evitar tragédias na jacuzzi.

Por Zarcillo Barbosa Do Jcnet

Em compensação, os piores banheiros que conheci foram os das universidades públicas por onde passei 20 anos como aluno e professor.  Na ECA/USP, o escrito à lápis sintetizava tudo: “Quando tem papel não tem privada, quando tem privada não tem água, quando tem privada e água não tem porta”.  Na Unesp, para entrar no banheiro masculino, era preciso ser muito homem. Inscrições sexuais degradantes. Cheiro de urina, maconha e peixe misturados com pinhosol.

O cenário e o ar são ideais à vazão de frustrações e taras. Pouco inspiradores à “defecacio”, que tanto motivou os romanos a capricharem no que, para eles, eram instituições públicas, com utilização taxada. Pecunia non olet (dinheiro não tem cheiro),  justificava o imperador Vespasiano. Nas escolas, os  professores e colegas são sempre personagens de versinhos maldosos. Principalmente os mais exigentes e os de viés folclórico.

O preconceito localiza-se na esfera do consciente ou afetiva dos indivíduos. Embora violando as normas do bom senso e da afetividade, o preconceito não implica necessariamente em violação de direitos. Isto porque ninguém é obrigado a gostar, por exemplo, do portador de deficiência, do homossexual, do idoso, do índio ou do afro-brasileiro. Discriminação é outra coisa. Diferentemente do preconceito, depende de uma conduta ou ato que resulta em violação de direitos com base na raça, sexo, idade, estado civil, deficiência física ou mental, opção religiosa.  A Constituição dispõe sobre o racismo como crime inafiançável e imprescritível. O Código Penal, a partir de 1997 exasperou o crime de injúria, se utilizar elementos relacionados à raça, cor, etnia, religião ou origem. Pena de reclusão de um a três anos, e multa. Em matéria civil, se a violação causa dano à vítima, ao autor do ato ilícito cumpre o dever de repará-lo.

Fica evidente que todas essas lucubrações foram motivadas pelo recente caso de inscrições racistas no banheiro do Departamento de Comunicação da Unesp, câmpus de Bauru, que virou assunto nacional, com chamada de primeira página na Folha e entrevista com o professor negro, alvo da  violência latrinosa. Serviu para a reação dos acadêmicos, ao decidirem discutir a questão. Ninguém mais, no País, acha que vive numa democracia racial, mas podemos vir a ser. O sociólogo Florestan Fernandes (A integração do negro na sociedade de classe) defendeu que aquela ideologia era manipulada em razão dos interesses da classe dirigente. Mas que, se caísse nas mãos de pretos e mulatos e estes dispusessem de autonomia social, poderia se transformar em “fator de democratização” da riqueza, da cultura e do poder.

A escravidão durou quase 400 anos, num país com pouco mais de meio milênio de existência. À época da abolição, o Estado e a igreja, assim como os  ex-senhores, entregaram os libertos à própria sorte. No campo, eles não tinham terras para cultivar. Na cidade, não recebiam educação, nem instrução técnica necessária para se engajar no novo mundo produtivo. Foi assim que ex-escravos e descendentes chegaram ao século 20. Não apenas em estado de pobreza ou de miséria, mas, sobretudo, sem os instrumentos indispensáveis à superação de tal situação. Vale dizer, condenados ao subproletariado urbano, num contexto de inadaptação e anomia.

Neste ainda novo século, finalmente o País decidiu a copiar o presidente Kennedy, nos Estados Unidos, com a instituição de políticas afirmativas – o reconhecimento de que o princípio da igualdade de todos perante a lei é insuficiente para garantir a plena cidadania. Para erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, como dispõe a Constituição, se faz necessário tratar os desiguais de forma desigual, através de políticas e ações afirmativas. A questão das cotas nas universidades para os afrodescendentes é uma delas. Infelizmente, ainda  poucos  se conformam com essa alavancagem para romper o círculo vicioso da subcidadania, com o ingresso do descendente de escravos na “ordem social competitiva”, como queria Florestan Fernandes.

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