O traço e a marca de Luiza Bairros: um arquivo para o Dia Internacional da Mulher Negra

“O meu material é minha cabeça e meu gogó”.
Makota Valdina

A escrita, a memória, o arquivo

No último 12 de julho recebemos a infausta notícia da morte da ex-ministra e liderança do movimento negro, Luiza Bairros. A dor da perda e a recusa do indesejável fato se juntaram a um sentimento de que Luiza, como tantas outras, nos deixou muito cedo. O desconhecimento público do estado de saúde da ex-ministra, que optou por partilhar do diagnóstico com um círculo restrito de amigos (escolha frequente em casos similares), acentuou essa percepção. Como o desfazer das nuvens pelo vento, Luiza se foi abruptamente, disseram alguns; a sua passagem não possibilitou despedidas antecipadas, reforçando ainda mais a ideia de que a efemeridade e a transitoriedade da vida são inexoráveis.

Se a vida é efêmera e a obra é perene, de que modo dar continuidade ao legado de Luiza Bairros? Em que sentido podemos postular a existência de uma obra em sua trajetória? Como preservá-la e difundi-la?

As homenagens em fluxo contínuo nas redes sociais e em outros espaços a Luiza deram destaque a uma pequena mostra do seu pensamento: “somos herdeiros de uma luta histórica iniciada por muitos antes de nós”. Eis um enunciado que oferece endereço de resposta para as interrogações acima formuladas. Referi em outros momentos que, se somos “a letra da palavra que nunca se completa”, estamos todas(os) engajadas(os) na tarefa inadiável de (re)construir, letra a letra, uma História que não finda, mas que reclama por alguma representação. História que Luiza Bairros escreveu de modo a inventar um país e um mundo para que pudéssemos existir, como bem lembra a ativista e feminista Vilma Reis.

É possível, assim, inserir a letra de Luiza num continuum em que a escrita é plataforma sobre a qual construímos história e memória. De forma contundente, sem nunca abandonar o refinamento, esta militante de proa concebeu a inserção da luta antirracista e anti-sexista na dinâmica do espaço público como um imperativo ético e uma urgência política, atribuindo novas significações ao mundo por meio da significação que ela própria enseja. Quando falamos em obra, estamos falando do jogo do ofício de escrever, da tarefa de dotar as coisas do mundo em coisas de linguagem, plenas de sentido. É preciso alertar para a noção de escrita que move este texto-homenagem: a escrita não é apenas o que se inscreve sobre o papel ou a tela; é, antes, uma operação que indica uma diferença que rompe com o nebuloso e estabelece uma marca que singulariza o que antes era indecomponível. Sob essa ótica, a escrita tem um papel fundante, de fixação das marcas do ser, uma vez que sem ela o “ser humano não se diria enquanto ser humano.” Pode-se, desse modo, falar de uma obra de Luiza Bairros, posto que em sua trajetória de vida ela não se conformou em pôr em marcha a ordem discursiva já em curso, mas instaurou uma outra com um traço singular, pontilhado de perspicácia, inteligência e compromisso.

Ora, se a escrita institui um traço, uma singularidade por meio de qualquer suporte (oral, impresso, gestual, corporal), uma das tarefas primordiais para as mulheres negras no tempo presente é captar o traço singular de Luiza Bairros, que deixou marcas, filetes de significação, no espaço público (seja no âmbito da militância negra e feminista, seja na esfera do poder público ou de organismos internacionais), fixando os vestígios de sua escrita nas diversas iniciativas que foram aventadas e consolidadas em prol da população negra no Brasil.

Gaúcha de Porto Alegre, Luiza Bairros era formada em Administração Pública e de Empresas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestra em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutora em Sociologia pela Universidade de Michigan (USA). Radicada em Salvador desde 1979, foi uma liderança do Movimento Negro Unificado (MNU); trabalhou em programas das Nações Unidas contra o racismo, em 2001 e em 2005 e foi titular da Secretaria de Promoção da Igualdade Social da Bahia, de 2008 a 2010, e ministra-chefe da Secretaria de Políticas Públicas da Igualdade Racial, de 2011 a 2014. Além disso, foi uma generosa, dedicada e primorosa pesquisadora da história do movimento negro brasileiro e de seus personagens, empenhando-se em sistematizar o legado da feminista negra Lélia Gonzalez.

Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha: Luiza Bairros presente!

Neste 25 de julho de 2016, pleno de atividades Brasil afora, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e de Tereza de Benguela, precisamos percorrer a trajetória do traço de Luiza para, a partir dele, continuarmos a escrita da palavra que não se completa, numa perspectiva diaspórica, internacionalizada, da qual ela foi uma importante voz. Com Tereza de Benguela e tantas outras lideranças latino-americanas e caribenhas, o dia de hoje convoca uma reatualização da luta das que vieram antes nós, inserindo Luiza nesse repertório de antecedências e fundamentos, abrigando a sua obra no arquivo do mundo, sobrelevando seus gestos para a mudança sociorracial e de gênero no Brasil.

No “I Seminário Biopolítica e Mulheres Negras: práticas e experiências contra o racismo e o sexismo”, realizado pelo Ministério Público (MP) de Salvador na semana passada (20), a mesa de abertura versou sobre “Escrevivência negra como difusão da intelectualidade afro-brasileira”. Na ocasião, Makota Valdina, Conceição Evaristo e eu propugnamos que é preciso dar visibilidade ao traço que compõe a escrita das mulheres negras, imprescindível que é para a composição da obra humana, constituída por uma rede intrincada de iniciativas exitosas que nem sempre conseguem dar nome e protagonismo a essas mulheres.

Se “não se pode interpretar a obra a partir da vida, mas pode-se, a partir da obra, interpreta a vida”, a obra de Luiza nos dá a possibilidade de interpretar um comum que atravessa as nossas vidas, solicitando, num movimento simultâneo, que construamos, a partir desse comum, algo singular capaz de nos inserir no mundo com uma marca que faça diferença e (re)inaugure a humanidade inteira. Sabe-se que uma obra requer armazenamento (inscrição, fixação) e circulação – modalidades que compõem o arquivo, embaladas por um fluxo dinâmico, em estreita afinidade, distante das dicotomias que enxergam alternâncias.

A cosmovisão africana adota a metáfora do rio e da casa para ilustrar, respectivamente, as noções de circulação e de fixação, ofertando elementos fundamentais para a instauração da obra humana. O rio é um dos símbolos mais poderosos que ilustra a efemeridade e transitoriedade da vida, aquilo que circula. A casa sintetiza o sentido do que acomoda e acolhe. O rio corresponde a evanescência da matéria e a irreversibilidade corrosiva e trágica do tempo. A casa concerne ao abrigo e à permanência. Não há rivalidade entre eles, ambos laboram para a constelação simbólica do fazer humano.

Nessa inevitável articulação entre rio (o que circula, o que se propaga) e casa (o que se armazena, se fixa e se inscreve/escreve) encontramos as trilhas abertas para a reformulação do arquivo do mundo, registrando nele uma história ainda à espera de ser escrita e/ou propagada, porque, como nos ensina poeticamente Aime Cesarie, “não é verdade que a obra do homem está acabada, que não temos nada a fazer no mundo, que parasitamos o mundo, que basta que marquemos o nosso passo pelo passo do mundo(…) ao contrário, a obra do homem apenas começou (…).”
E, sem sombra de dúvidas, Luiza Bairros foi uma notável mulher negra que soube, com maestria, dar continuidade a uma obra que apenas começou, mas que já deixou marcas indeléveis para a mudança de curso da história.

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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