Orgulho Crespo contra o racismo: Nanda Cury

Em entrevista à Fórum, Nanda Cury, organizadora da Marcha do Orgulho Crespo, fala sobre as motivações do movimento e o racismo que impõe um padrão capilar liso

Por Jarid Arraes Do Portal Fórum 

No último domingo (26), a avenida Paulista se encheu de cores e texturas, principalmente capilares, de quem participou da 1ª Marcha do Orgulho Crespo. Para Nanda Cury, organizadora do evento e administradora do Blog das Cabeludas, A Marcha do Orgulho Crespo foi o desdobramento de um trabalho de muitos anos para empoderar mais mulheres a assumirem seus cabelos naturais. “A Marcha foi criada para mostrar ao mundo que amamos nossos cabelos e que não toleramos preconceito”, afirma Cury.

A concentração inicial aconteceu no vão do Masp, ​quando foi formada uma roda e proposto que cada mulher presente ​(e que se sentisse à vontade) ​contasse sua história e a relação com o seu cabelo no megafone. “Pedi que os homens entendessem que estavam ali para ouvir e aprender com as mulheres e destaquei o fato de que isso era importante justamente porque ​as mulheres negras ​não têm representatividade na maioria dos espaços de poder”, explica Nanda. Foram diversos depoimentos emocionantes, histórias de luta, orgulho e coragem contadas por crianças, meninas e mulheres. Todas enxergavam e celebravam a importância de estar ali, compartilhando suas vivências e ouvindo outras histórias sobre a libertação dos cabelos e de si mesmas.

O momento de compartilhamentos durou cerca de duas horas. Alguns grupos, principalmente os mais jovens, se dispersaram e organizaram atividades paralelas. Muitas das pessoas presentes posaram para lentes de fotografia profissionais, conversaram com curiosos e com a imprensa que estava presente para cobrir o evento. O grupo #15contra16 distribuiu algumas placas e todos foram fotografados com elas, em um posicionamento contra a redução da maioridade penal. Uma nova roda foi formada, dessa vez com diâmetro ainda maior e todos cantaram a música Olhos Coloridos, de Sandra de Sá, antes de iniciarem o percurso na avenida Paulista.

“Eram muitos cabelos crespos juntos, trançados, turbantados, alisados e coloridos, os olhos emocionados, as mãos de luta para o alto e um orgulho das nossas origens, da nossa festa e da nossa pequena revolução pessoal”, conta Cury. As pessoas que passavam de bicicleta na Paulista acenavam para quem marchava e algumas se juntaram à caminhada, que teve cobertura da imprensa internacional e de drones.

Quando o grupo chegou à Casa Amarela, ecoando gritos de “Orgulho Crespo!” “Quero trabalhar com meu cabelo assim”, “Negra sim, mulata não”, o restante da programação começou. Focada em dar voz às mulheres, especialmente às mulheres negras​, as atividades incluíram um debate sobre cabelo crespo e identidade, oficinas de trança, turbante, maquiagem, hip hop​ e também contou com um espaço para afroempreendedoras​ mostrarem seus trabalhos.

A Marcha do Orgulho Crespo foi um evento que mostrou, além da necessidade de combate ao racismo, a importância de ocupar espaços públicos com cultura gratuita e aberta à população.​ “Por isso, optamos por fazer a festa pós-Marcha na Casa Amarela – para ajudar o local a se estabelecer como ateliê compartilhado e não ser desapropriado”, explica Nanda Cury, deixando evidente que as pautas contempladas pelo movimento são importantes e certeiras. Em entrevista à Fórum, Cury compartilha mais sobre o movimento e explica, afinal, por que o Orgulho Crespo é tão pertinente no Brasil:

Fórum – Como surgiu a ideia da Marcha e como foi o processo de organização?

Nanda Cury – A ideia do evento surgiu após um post que publiquei na página do Blog das Cabeludas no Facebook e no Instagram. Estava no meio da Parada LGBT e encontrei várias pessoas com cabelo crespo. Paramos para fazer fotos com a bandeira do arco-íris ao fundo​ e escrevi na legenda “Parada do Orgulho Crespo. Quem ​anima?”. As seguidoras da página, que são ​quase 2​5 mil, imediatamente se manifestaram, perguntando onde seria a Parada e o post se espalhou ​rápido.

Já conhecia e frequentava a festa Hot Pente, organizada pela Thaiane de Almeida (produtora de eventos) e a Neomísia Silvestre (jornalista). Elas também acompanham meu trabalho com o blog e me convidaram para fazer uma edição especial da festa junto com elas. Fiquei super feliz com o convite e perguntei o que elas achavam de além da festa fazermos a “Parada do Orgulho Crespo”. Elas amaram a ideia e durante duas semanas trabalhamos duro para organizar a marcha–- do conceito à pós-produção.

Decidimos que a Marcha seria na avenida Paulista porque acreditamos que era importante levar as vozes, cabelos e rostos da periferia para o centro da cidade.​ Além disso, a Paulista é símbolo de São Paulo e palco de manifestações sociais relevantes ​para a cidade.

Fórum – A Marcha atendeu às expectativas da organização?

Cury – A Marcha superou as nossas expectativas. As pessoas que participaram ficaram muito emocionadas e recebemos muitos elogios de todo mundo que participou. Veio gente de outros estados e uns gringos de Nova Iorque, que cobriram todo o evento para a revista Vice, disseram que nunca tinham visto um evento tão incrível. Fomos procuradas por pessoas de outras cidades, que querem nossa ajuda para organizar a Marcha do Orgulho Crespo em outras regiões do país. Estamos abertas para contribuir e para somar com todas as pessoas que entendem que cabelo crespo é resistência e um ato político.

Fórum – De todo o evento, é possível destacar o momento que foi mais marcante pra você?

Cury – Um momento marcante pra mim foi conhecer a senzala que ainda existe na Casa, construída com mão de obra escrava, como quase tudo nesse país. É um buraco frio, abaixo do nível do chão, com camas pequenas de pedra. Não tive coragem de entrar, é muito forte, tem uma energia pesada. Fiz uma oração em silêncio para as pessoas que viveram ali.

Fórum – Muitas pessoas tiveram reações hostis na internet, especialmente após a matéria da Globo. O que você pensa a respeito? O que motiva reações hostis contra um movimento como esse?

Cury – Acho que as reações hostis se concentraram principalmente na página do G1. É um público intolerante e preconceituoso, que não entende que vivemos num país democrático, mas que vai ter que aceitar o fato de que mulheres negras estão finalmente sendo protagonistas na História. Falam que deveríamos Marchar por outros motivos, mas quem são eles para nos dizer pelo que devemos marchar? Estamos num país livre, cada um marche pelo que quiser. Qualquer um pode sair às ruas e se manifestar pelo que quer que seja. Gostei muito da matéria do BuzzFeed, que fez um comparativo sobre o encontro das ruivas e da Marcha do Orgulho Crespo. Os comentários racistas no post da Marcha são gravíssimos, podemos nos unir para tomar providências legais para denunciar essas pessoas que se julgam acima da lei.

Acho que quem critica a Marcha é porque não esteve lá. A maioria das pessoas presentes não milita em outros movimentos, então esta foi uma oportunidade de empoderar um monte de gente por meio de debate pertinente e que está relacionado à autoestima e ao resgate da nossa ancestralidade. Não queremos concorrer com outros movimentos, queremos somar, trazer vozes novas para as ruas e ecoar ideias em que acreditamos.

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Fórum – Quais são os seus planos daqui para a frente?

Cury – Queremos libertar todo cabelo e identidade oprimida. Acho que as pessoas estão cada vez mais se libertando da ideia de alisar o cabelo para serem aceitas e se enquadrarem nas expectativas da sociedade com relação a padrões de beleza. Nosso cabelo é uma característica física e parte de quem somos e não estamos dispostas a fazer concessões para agradar a quem quer que seja. Ainda estamos digerindo tudo que aconteceu, começamos a colher alguns frutos e já estamos em contato com pessoas de todo o Brasil e até do exterior. A ideia é fortalecer a Marcha, o Orgulho Crespo e a nossa cultura, que é de festa, resistência e celebração. No que depender de nós, vai ter muito cabelo crespo pelo mundo e, principalmente, muita mulher empoderada. O mundo precisa ouvir a voz das mulheres, especialmente das mulheres negras.

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