Os Limites da Inclusão Social – Por Yuri Brito*

Já é de conhecimento do mundo mineral que, nos últimos 13 anos, dezenas de milhões de pessoas saíram da extrema pobreza. Pra quem não consegue apreender a brutalidade sutil dessa afirmação, significa que dezenas de milhões de pessoas passavam fome – veja, não é “sentiam fome”, é passavam fome, tipo, dias, semanas, meses, uma vida inteira, sem uma refeição decente -, não tinham onde dormir, não tinham um documento sequer – e por isso não podiam ter trabalho formal, votar, firmar um contrato de aluguel, pedir um empréstimo, pedir socorro ao Estado.

No Quilombo Coletivo 

Essas dezenas de milhões de pessoas passaram a comer, trabalhar, morar, ter documentos, votar, aliás, isso é importante pra entender por que os partidos que se lixavam pra esse pessoal não ganham mais eleições nacionais no Brasil e, pra acessar o poder político do governo central, vivem de chantagens e golpes de Estado. E, talvez o mais precioso, uma parte significativa dessas pessoas viu seus filhos e filhas acessarem a escola e, alguns,a universidade: os primeiros de sua família a entrarem na universidade. E uma parte significativa desses filhos e filhas formulou – isso, formulou, não “adotou” – novas linguagens, seja na reivenção da fala da favela, seja na sua mescla com o juridiquês, mediquês, sociologuês, antropologuês e outras falas da academia, mudou seu jeito de se vestir, os ambientes que freqüenta.

A esse processo emocionante, que enche meus olhos de lágrimas, chamam de INCLUSÃO SOCIAL. A maior da história do nosso país. Uma das maiores da história do planeta.

Eu não faço parte desse processo. Explico, resumindo: minha família passou por um processo de ascensão social uma geração antes de mim. E por isso, totalmente diferente deste fenômeno atual. Meus avós, quase todos analfabetos, todos vindos de pequenas comunidades rurais que vocês nunca ouviram falar, parte deles migrantes, trabalhadores rurais, um deles uma pessoa com deficiência física e cadeirante, do qual minha mãe cuidou desde a infância, até sua morte prematura, muito antes de eu nascer.

Meu pai, particularmente, foi para a “cidade” estudar com 10 anos de idade, morando numa pensão, e foi o acesso a educação formal que garantiu a ele a oportunidade de transformar em permanente o ganho da vida inteira do meu avô paterno, que tinha ascendido socialmente por ter aprendido a ler, escrever e fazer conta, além de ser extremamente honesto e trabalhador, num lugar onde quase ninguém sabia fazer essas operações. Meu pai cursou Administração (e depois Direito) numa Universidade privada que iria falir, mas que, pela luta dos estudantes da época, foi estatizada e se tornou a Universidade Estadual de Santa Cruz. E passou num concurso público, no qual que se inscreveu no dia em que foi buscar seu diploma.

Assim, tive uma vida muito melhor que a de meus pais e avós. Eles eram do tempo que precisava de muita, muita sorte pra subir na vida. O que aconteceu com eles era como ganhar na loteria.

Mas uma coisa me aproxima dessa geração que arrombou as portas das universidades. Eu sou negro.

Eu descobri isso quando tinha 11 anos e resolvi deixar meu cabelo crescer. E ninguém me tratou com a mesma deferência que o meu querido amigo Daniel, ruivo, simpático, charmoso, atlético e até hoje quase um galã de novela. E branco.

Por um tempo eu achei que a questão social me afastava mais dessa geração do que a questão racial me aproximava. OK que as vezes a polícia ou seguranças me seguiam, perguntavam pra pessoas brancas que estavam comigo se “estava tudo bem”. OK que já fui atacado por pessoas num carro que tentaram me arrastar pelo cabelo só por que, bem, se eu tenho o cabelo desse jeito eu devo merecer. OK que passei o ensino médio inteiro como sendo um dos caras mais esquisitões do colégio por vários motivos mas, curiosamente, isso se materializava quase exclusivamente em comentários, brincadeiras e – o meu limite da paciência – o toque no meu cabelo.

Mas tudo isso parecia pouco com a violência brutal a que estavam submetidos meus irmãos e irmãs de cor que ainda lutavam para ascender socialmente. Minha cidade, no interior da Bahia, um ano depois que fui embora de lá, ganhou o “prêmio” de cidade mais perigosa para adolescentes do Brasil. Adivinhem: negros. Mortos aos montes. Eu não fui ameaçado por isso – ou pelo menos acho que não fui. E é disso que estamos falando quando falamos de racismo, e isso é o mais importante que tem pra se falar. Ninguém ascende socialmente se for morto, tiver seus pais, cônjuges e filhos mortos.

Ainda assim… isso não me fez branco. E o mundo me lembrou e lembra todos os dias disso. O mundo me lembrou disso hoje. De um jeito simples – não foi nem de longe o racismo que mais me doeu na vida. Mas me incendiou uma reflexão que preciso compartilhar.

Lá estava eu pagando uma conta de cartão numa loja de departamentos, num shopping de Salvador que resolveu se renovar pra ser mais chique. Mais arrumado do que costumo andar, de calça, tênis e uma camisa do coletivo que faço parte, Quilombo. E chega uma senhora, loira, uns 50 ou 60 anos, e, ignorando completamente minha presença, pergunta para a atendente se o caixa está livre.

Primeiro, não achei que ela estava falando com a moça que simpaticamente me atendia. Até ela dizer “Não, moça, to atendendo ele” e ela se virar e ir embora de cara amarrada. Chocado, só pude dizer a atendente: pois é, só ela tem dinheiro pra comprar aqui. Pelo visto eu não posso ter.

É disso que quero falar, aliás: a inclusão social tem limite, que eu conheço muito bem, na minha vida toda. Ela não impediu que continuassem matando pretos nas favelas. Mas, além disso, ela tem um limite na sua própria natureza.

É lógico que ter dinheiro no bolso faz toda a diferença no nosso mundo. Abre portas, oportunidades, nos tira do sufoco da miséria pra comer carne, feijão e arroz ao invés de ovo e farinha. Mas não nos faz, nem nunca nos fará, iguais aos brancos. Primeiro, por que dinheiro não é capital. Capital é poder e dinheiro não. Mas não estou falando de economia – embora isso seja importante também.

Não nos fará por que o mundo do dinheiro, do consumo, do open-bar e all-inclusive, do camarote e do acesso pago, das roupas bacanas, do cinema, dos livros, da intelectualidade, dos cafés gostosinhos, dos restaurantes arrumadinhos, das repartições públicas, da docência universitária, da pesquisa científica, do poder político, tudo isso é do mundo social, mas foi feito pra branco ocupar. Não é mentalidade individual de quem está lá, apenas. É uma mentalidade institucional, que organiza as pessoas para pensarem e agirem assim, negando direitos, serviços e acesso com base no fenótipo e na ascendência familiar.

O dinheiro não compra as instituições. Ou melhor, compra, se você for branco. Por que se você for negro, vai ter de lidar com o dilema que eu, as portas de me formar, vivo: será que vou ter de cortar o meu cabelo, elemento definidor da minha identidade, pra poder passar numa banca de mestrado, numa entrevista de emprego ou numa seleção de concurso pra docente universitário? Vou ter de pagar um preço que é, para minha subjetividade, análogo a cortar uma mão, em nome de uma “inclusão social” que em tese já foi concluída pela geração dos meus pais?

Aliás, um preço que eu posso até pagar, mas não vai apagar o racismo da minha vida. Não vai me fazer deixar de andar sobre o gume afiado da raiva, frustração, impotência, tristeza e da depressão frente a forma como o mundo me trata – alerto, uma das maiores causas de mortalidade de jovens negros é o suicídio.

É preciso combater a ilusão que já virou senso-comum, mas que foi formulada na academia por Florestan Fernandes – a quem respeito muito – de que o avanço da organização da sociedade de classes faria o racismo tornar-se disfuncional e desaparecer (não vou nem falar do mito da democracia racial chocado por Gilberto Freyre). Pois bem: engordar a classe trabalhadora (negra) e a burguesia (branca) no Brasil não fez isso, querido Florestan. Por motivos que você mesmo traduziu: o racismo é funcional para manter privilégios sociais dos indivíduos de uma classe que não tem como se reproduzir apenas pela dinâmica econômica. Para que os poderosos (brancos) continuem sendo poderosos, e os demais continuem, mesmo que melhor de vida, subjugados.

Stokely Carmichael e Charles Hamilton jogaram luz no fato de que a mácula do racismo faz simbiose perfeita com as instituições. O racismo institucional, assim, é o projeto de transformar aquela funcionalidade que o racismo tem em um mecanismo impessoal, invisível e inescapável de segregação que se torna parte da missão das instituições sociais em que vivemos. E Kimberle Crenshaw me ensinou como há interfaces importantíssimas entre raça, classe, gênero e mais outros tantos aspectos que nos compõe como seres humanos, e igualmente esses fatores toldam as instituições que regulam nossa vida.

Desculpe, pessoal. Eu não quero ser incluído nessas instituições.

A idéia de inclusão social herdou das noções de “assimilação” e de “integração”, outras palavras-chave da política racial brasileira, a pressuposição de que é a pessoa negra que tem de se movimentar na sociedade para produzir efeitos positivos para si. Isso tem um duplo efeito deletério: primeiro, a idéia de que se trata de processos atomizados, individuais, familiares ou, no máximo, de classe social, arrefecendo uma solidariedade que é muito material entre os que já sofreram racismo. Segundo, a idéia de que as instituições da sociedade não precisam ser reformadas para atender às demandas dessa população historicamente excluída e esmagadoramente negra, e sim essa população que tem de ser “reformada”.

E essas duas idéias estão erradas.

A inclusão social é a ascensão de um povo. Subjetiva e objetivamente, somos um povo. E precisamos construir os mecanismos necessários para que essa idéia, já presente no nosso cotidiano, tome forma de projeto político, de transformação da sociedade sob a ótica de uma população (aliás, de um conjunto de populações, pois nem só de raça vive o povo, viva a querida Crenshaw) que precisa ter voz própria, representação política própria, formas próprias de sociabilidade e socialização, linguagens próprias, e principalmente, amor-próprio. Isso em nada prejudica quem não faz parte de nós, aliás, avalio que esse projeto pode abarcar, no médio prazo, o conjunto da sociedade, pois falar só de/pra nós não vai resolver nosso problema.

E a inclusão social não resolve o problema das instituições. E esse problema é central. A universidade é uma máquina de formar brancos, e a presença maciça de negros nela vai dar curto-circuito – ou na universidade, ou nas pessoas negras. Os shoppings, templos de consumo onde minha presença atrai olhares de desprezo e ódio, são uma ode ao capital que tem cor, nos vendendo aceitação por um preço alto e uma qualidade duvidosa. Os shows de bandas bacaninhas e artistas avant-garde ainda me fazem ser revistado com duplo cuidado pelos seguranças. Os aviões – como eles odeiam pobre e/ou preto em avião! – são um ninho de hostilidade que podem fazer um senhor humilde que mora em São Paulo e foi visitar sua família no Nordeste de avião não queira nunca mais entrar nele, mesmo que tenha dinheiro pra isso.

A política, a política, meus queridos irmãos e irmãs, bota lágrimas nos olhos e raiva no coração de uns poucos parlamentares, homens e mulheres negros que tem vergonha na cara e se dignam a tentar representar seu povo de fato, e são diariamente acossados, chamados de ignorantes, de “tia do Café”, de analfabetos. E os que não tem vergonha na cara, querendo pagar o preço podre de uma ilusória inclusão institucional, são “negros, porém inteligentes”. Eu já ouvi da boca de mais de um deles que não é raro ouvir “Você não deveria estar aqui, aqui não é seu lugar”.

Eu acho que temos mesmo de ocupar todas essas instituições. Não acho que negá-las resolve. Eu acho que temos de entrar nas universidades, nos shopping, nos shows, nos aviões, nos parlamentos, nos governos, nas carreiras de Estado, nas profissões liberais, os empreendimentos, e temos de entrar com força. No mínimo, pelo curto-circuito que isso causa nas cabeças das pessoas e no comando das instituições, que precisam vir a público justificar por que duas pessoas de iguais direitos estão sendo tratadas com tanta diferença. Embaralhar as regras do jogo que eles criaram, e isso só se faz jogando.

Mas não podemos NUNCA comprar a ilusão de que nossa entrada vai promover uma “revolução interna” nesses lugares. Não vai, em nenhum. Lá dentro as regras são as regras deles, e pelas regras deles nós perdemos sempre ou viramos “token”.

É preciso ir além do paradigma da inclusão social. Ela precisa estar associada a um programa de profundas transformações institucionais. Qualquer projeto político popular que se preze, que queira fazer mudanças reais no Brasil em direção a uma sociedade para todos os seus membros, precisa levar em conta a necessidade de mudar as instituições que governam nossa vida social e política.

E parte dessas instituições, aliás, não merece sequer ser transformada: merece ser derrubada, posta a fogo e ter suas terras semeadas com sal, como fizeram os brancos romanos com a africana Cartago, para que nunca mais de suas terras nasça a hera venenosa do racismo. E em outro lugar da sociedade, ergueremos novas instituições, moldadas para oferecer a possibilidade de um destino livre e atender as necessidades e anseios todo o nosso povo. Como se estivéssemos erguendo novamente as malocas dos quilombos que já guardaram nossas vidas.

E, assim, faremos Palmares de novo.

*Yuri Brito, 24 anos, é negro, do interior da Bahia e coordenador nacional do Coletivo Quilombo.

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