Oscar 2015 e o filme Selma: uma agenda de combate ao racismo e sexismo

O dia 8 de março é um marcador importante para reatualizarmos o debate sobre o lugar e o papel da mulher negra no Brasil e no mundo. Da janela em que vemos o mundo, discutimos a polêmica do Oscar em relação ao filme Selma e ao discurso da atriz Patricia Arquette para enfatizar a necessidade de um programa de ação que tem no imaginário uma de suas bases de sustentação. O diálogo com a arte integra uma perspectiva metodológica, entre vários trajetos possíveis, para que possamos encontrar pistas que nos levem a combater o racismo e o sexismo no âmbito do suportes de narração contemporâneos, como é o caso do cinema.

por Rosane Borges via Guest Post para o Portal Geledés

Causou espécie no mundo cinematográfico (e fora dele) o fato de o filme Selma, dirigido pela cineasta negra Ava DuVernay ter sido subvalorizado no Oscar 2015: a “película” recebeu apenas duas indicações, uma na categoria de melhor filme e outra na de canção original, por onde acabou ganhando a taça. Ava DuVernay e David Oyelowo, o ator britânico que desempenhou o papel de Martin Luther King, não foram indicados para suas respectivas categorias. Abreviadamente, o filme é uma cinebiografia do pastor protestante e ativista Martin Luther King. Retrata as históricas marchas realizadas por Luther King e manifestantes pacifistas em 1965, entre a cidade de Selma, no interior do Alabama, até a capital do estado, Montgomery, em busca de direitos eleitorais iguais para a comunidade afro-americana.

Algumas críticas acerbas ao filme parecem sancionar as sovinas indicações: surgiram comentários referindo-se à “Selma” como um filme menor escondido atrás de um tema de exponencial relevância. Outros arguiram que ao apresentar um presidente claudicante, DuVernay foi no mínimo injusta com Lyndon Johnson, reconhecido pela História como um defensor intransigente da luta pelos direitos civis. De maneira irresponsável, a diretora teria maculado a imagem de Johnson, posto uma nódoa inamovível em sua biografia.

Assim como Selma, os filmes que concorreram às principais categorias também foram baseados em fatos reais. “Sniper Americano”,”A teoria de tudo” e “O jogo da imitação” colheram da História recente o leitmotiv de seus roteiros, motivo pelo qual foram avaliados pelo vínculo, próximo ou distante, com a realidade. Independente da avaliação, esses filmes não deixaram de figurar como premiáveis. A acusação contra Ava DuVernay de que teve relação agreste com a verdade histórica, não pode servir de desculpa à falta de atenção de que Selma foi alvo pela Academia.

De resto, podemos questionar o binômio ficção e realidade naquilo que eles se apresentam como entidades absolutamente autônomas e opostas. O jurista Jeremy Bentham elaborou frase que fragiliza a oposição entre os dois termos: “daquilo que é real não se pode dar nenhuma explicação clara, a não ser por meio de algo de fictício”.

Realidade, ficção, verdadeiro, verossímil

Como se fossem documentários, filmes que visitam a História com H maiúsculo são normalmente perscrutados sob a lente de um certo purismo; eles são sistematicamente submetidos ao escrutínio de pesquisadores com a finalidade de examinar até que ponto conseguem mostrar evidências sem mediações. Essa perspectiva de análise é chancelada por uma lógica conceitual que diz que o documentário deve extrair os fatos da realidade sem interferências terceiras. Tal lógica criou tradição na produção cinematográfica, chegando a instituir diferenças entre o modus operandi francês e o americano. O cinema direto, de origem norte-americana, e o cinema verité, de origem francesa, para assinalar comodamente o essencial, correspondem, respectivamente, ao que foi chamado de fly-on-the-wall (mosca na parede) e fly-on-the-soup (mosca na sopa). Em outras palavras: o primeiro oculta o processo de produção e o segundo exibe, sem constrangimentos, os cineastas na tela.[2] A imagem sem interferência, imediata, – o padrão “mosquinha na parede” – foi avaliada por muitos produtores como o procedimento que mais se aproximava do ideal, porque mais próximo da realidade. Ora, mas nem os documentários estão a salvo de serem contaminados pela imaginação, de tal sorte que são considerados como tratamento criativo da realidade.

Dito isso, o exame de Selma à luz desses critérios parece nos enredar nas velhas questões formais do fazer cinematográfico. Para além desses aspectos, nos interessa pôr em discussão aquilo que, por meio do cinema, revela como as assimetrias raciais e de gênero se acomodam e, por vezes, encontram em algumas vozes a contraposição necessária para que um grão de insurreição possa germinar uma experiência futura.

O Oscar, a festa decadente, mas de simbolismo (ainda) potente

O discurso da atriz Patrícia Arquette foi a voz da insurreição no Oscar 2015. Sob aplausos entusiasmados de Meryl Streep, Jennifer Lopez e toda a plateia, a denúncia de Arquette trouxe à tona o que a academia insiste em colocar debaixo do tapete vermelho: o sexismo e, extensivamente, o racismo são duas categorias de diferenciação negativa que vêm relegando às mulheres e negros a um patamar rebaixado na dinâmica da produção cinematográfica. Não sem razão, recebeu este ano o epíteto de “Oscar das minorias”.

Os dados confirmam até mesmo o que um olhar desatento pode captar: homens dirigem 93% e protagonizam 75% das maiores bilheterias de Hollywood. Segundo a Universidade de San Diego, na Califórnia, em 2014 só 12% dos cem filmes mais vistos nos EUA tiveram mulheres nos papéis principais. O Oscar de 2015 foi o que menos destacou o trabalho feminino: cinco homens indicados para cada mulher. Em sete categorias, nenhuma mulher foi indicada ao prêmio. No Brasil, a disparidade entre gêneros também é a regra. 86,3% dos filmes nacionais entre 2002 e 2012 foram dirigidos por homens, que também assinaram 74% dos roteiros.

Ao exigir condições iguais de tratamento às mulheres no universo cinematográfico, Arquette projeta o problema de gênero na dimensão racial. Ava DuVernay, por ser mulher e negra, experimentou os condicionamentos a que gênero e raça estão submetidos na disputa pelo reconhecimento e visibilidade quando se trata de categorias profissionais impermeáveis à presença de grupos raciais não hegemônicos. Foi acintosamente acantonada pela Academia num momento em que era para ser posta em cena. Recebeu como prêmio o não reconhecimento de um trabalho zeloso que reuniu todos os ingredientes para concorrer ao Oscar (as minhas críticas ao filme não se perfilam àquelas que foram divulgadas pela imprensa). Ainda que seja uma festa chata, enfadonha, o Oscar ainda é um poderoso recurso simbólico para reafirmar os ideais culturais com os quais nos orientamos e nos pomos no mundo. (assisti à premiação este ano com paciência de Jó. O “nosso” Kikito consegue ser menos enfadonho que a premiação americana).

O ator David Oyelowo nos lembra que não são apenas as funções que atuam atrás das câmeras (diretora, roteirista) as vítimas do desprezo frontal da Academia. Atores e atrizes negros seguem desvalorizados quando ousam interpretar papéis que escapam dos estereótipos mais comuns. Para Oyelowo, aquela “Instituição” não considera palatável histórias em que personagens negros atuam como sujeitos de sua própria história. O desabafo do ator britânico nos leva a ratificar que não podemos enfrentar o racismo sem interpelar o imaginário. Peço desculpas pela insistência no termo para quem frequentemente lê meus artigos. A reiteração decorre de um trabalho reflexivo que visa apontar na expressão cinematográfica, e em outras artes do narrar, a chave da junção entre práticas políticas e práticas imaginárias.

Um programa de ação, uma plataforma política

Repetida como mantra nas minhas incursões pelo universo dos discursos circulantes, a implosão deste imaginário se mostra como prioritário para um novo agenciamento de imagens em torno do negro e da mulher negra. Como sabemos, o cinema se configura como uma máquina prodigiosa do imaginário tecnológico contemporâneo e deve ser visto como um suporte estratégico para uma tarefa que é, fundamentalmente, política.

Venho defendendo que sem os deslocamentos dos significantes, indício de que algo da ordem do imaginário também se deslocou, é impossível estabelecer novos regimes de visibilidade capazes de dotar as mulheres negras de outros signos que as conduzam para o reconhecimento de que habitam outros lugares reais e simbólicos. Não basta apenas ocupar alguns lugares (Ava Duvrey já rompeu algumas fronteiras tornando-se cineasta), é preciso nos reconhecer neles.

Acredito que tal reconhecimento exige uma plataforma de ação que promova diferentes intercâmbios. Uma aproximação com a Arte pode ser um deles, considerando que os deslocamentos no universo dos possíveis que o campo artístico promove podem ser fonte de inspiração para a construção de outras cadeias significantes, capazes de liberar as mulheres negras do aprisionamento das imagens, para utilizar expressão de Alice Walker, que as interditam no trânsito dos possíveis.

Talvez se esconda no fundo desta aproximação disparatada o porvir da experiência futura a qual referimos acima. Duchamp mostrou – quando colocou a palavra farmácia em uma reprodução de uma paisagem de inverno, assinando o quadro e anunciando-o como ready-made – o que a arte faz: transfigura as coisas e as retira de seus contextos usuais. Talvez é da adoção de procedimentos surrealistas, no sentido de fazer significar diferente a partir daquilo já cristalizado, que precisamos para uma radical transformação no território do reconhecimento.

Do ponto de vista que nos ocupa, o das reconfigurações da imagem e do imaginário, a arte é, como lembra o filósofo Jacques Rancière, o ponto extremo de uma mudança polêmica do sensível, que rompe com as categorias estabelecidas. A arte restabelece os critérios para reconfigurar o território do visível, do pensável e do possível. Diz Rancière: “as ficções da arte e da política são, portanto, heterotopias mais do que utopias”.

Voltando à terminologia do termo, heterotopia quer dizer espaço do outro. Neste dia 8 de março, precisamos pensar nesses espaços, tal como fez Michel Foucault em “Outros espaços, heterotopia” ao dizer que o espaço do Outro foi esquecido pela cultura ocidental. Ava Duvrey, no cinema, e todas nós não somos reconhecidas em nossos espaços, o que nos leva a ocupar posições subalternas, ainda que o lugar social seja carregado de algum prestígio. O enfrentamento dessa perversa operação reivindica, sim, uma aliança entre política e imaginário. O dia de hoje nos leva a pensar na raiz dessas questões já esboçadas pelas ativistas e pensadoras que nos antecederam. Permaneçamos no encalço de cada uma delas e promovamos o reconhecimento do nosso Lugar no mundo.

PS: a partir deste artigo passo a publicar uma vez por mês artigos voltados para os tópicos da imagem, do imaginário e mulheres negras, intercalados por outros assuntos. Oito de março é o nosso porto de partida. O Porto de chegada será a Marcha das Mulheres Negras em Brasília.

[1]Jornalista, professora da UEL, coordenadora do curso de Especialização da FAM, integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial), pós-doutoranda em comunicação pela USP.

[2] O documentário engajado faz parte da história desse gênero. Alguns deles podem ser destacados: Three songs of Lenin; documentário realizado por Dziga Vertov em 1934, na antiga União Soviética, mostra três diretores com diferentes abordagens sobre a vida do país, construindo um retrato apaixonante de Lênin. Housing Problems: documentário realizado por Arthur Elton e Edgard Anstey em 1935, no Reino Unido, que tentava chamar a atenção para os problemas dos programas habitacionais.

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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