Para não esquecer

A polêmica sobre a intenção de se criar um Museu da Escravidão no Rio é bem-vinda

Por Flávia Oliveira, do O Globo 

Foto: Marta Azevedo

No país acostumado a soterrar o passado real e metaforicamente, é bem-vinda a polêmica detonada pela intenção da secretária municipal de Cultura, Nilcemar Nogueira, de criar, nas bordas do Porto do Rio de Janeiro, um Museu da Escravidão. A região, pelo Cais do Valongo, foi porta de entrada dos africanos arrancados do continente de origem para serem escravizados na então colônia portuguesa. É área inundada de importância histórica, tanto pela opressão e brutalidade do regime escravocrata, quanto pela resistência e pelo protagonismo negros que forjaram a sociedade brasileira, sob as óticas econômica, comunitária, cultural e religiosa — não necessariamente nessa ordem.

Mestre Ancelmo Gois iniciou o debate ao revelar o legado dos sonhos da neta de Cartola e Dona Zica no secretariado do prefeito Marcelo Crivella. Em seguida, surgiram manifestações de apoio e ressalva ao projeto. O escritor Nei Lopes, citando o saudoso historiador Joel Rufino, foi dos primeiros a chamar atenção para o efeito nocivo da referência única à escravidão na autoestima, principalmente, dos jovens afrodescendentes. Ele propôs o Museu da Herança Africana, Afro-brasileira ou Afro-carioca. Washington Fajardo lembrou o documento “Recomendações do Valongo”, que trata da criação do Circuito Histórico e Arqueológico de Celebração da Herança Africana.

A efervescência de opiniões é saudável numa cidade que faz o possível para esconder as mazelas de sua gênese. Em fins de 2016, no curso “O Brasil gosta de samba?” (assim mesmo, com interrogação), o historiador Luiz Antonio Simas lembrou que todos os endereços que marcaram a origem do mais brasileiro dos ritmos foram fisicamente destruídos. O Cais do Valongo, por onde chegou um milhão de africanos escravizados, desapareceu sob o Cais da Imperatriz, intervenção higienizante feita para receber Teresa Cristina, a futura mulher de Dom Pedro II. O sítio arqueológico, candidato a Patrimônio da Humanidade, só foi revelado durante as obras do Porto Maravilha. O Cemitério dos Pretos Novos, onde eram enterrados africanos que sucumbiam à travessia atlântica, ficou escondido sob casas na Gamboa até 1996.

O Estado escravocrata e a abolição desprovida de políticas de inclusão dos negros e pontilhada de legislação criminalizante explicam o racismo histórico e persistente da sociedade brasileira. Há quem desconheça essa causalidade por sonegação do sistema educacional; há quem a ignore por opção. Escancarar essa realidade é também combatê-la. Washington (EUA) tem um Museu do Holocausto para lembrar e banir para sempre os horrores do nazismo. Alemanha e Polônia tornaram campos de concentração da Segunda Guerra museus a céu aberto, para o mundo não esquecer o mal que a supremacia racial instituída por Adolf Hitler causou a judeus, ciganos, homossexuais.

Na África do Sul, o Museu do Apartheid foi concebido sob o lema de verdade e reconciliação — “Forgive but not forget”, “Perdoar mas não esquecer”, em tradução livre — defendido por Nelson Mandela. Para o visitante experimentar o privilégio (aos brancos) e a crueldade (com negros) da segregação, a entrada é repartida em dois caminhos, que enfileiram direitos e restrições dos grupos raciais. Havana tem o Museo de los Orishas, com o panteão de divindades africanas sincretizadas a santos católicos que moldam a religiosidade dos cubanos.

O museu sul-africano e o International Slavery Museum (Museu Internacional da Escravidão), em Liverpool (Inglaterra), são inspirações para a secretária Nilcemar no projeto carioca. Ela promete debater conceito e acervo com entidades do movimento negro, líderes de religiões afro-brasileiras e historiadores, mas não vê conflito entre exibir na instituição tanto a brutalidade da escravidão quanto a inestimável herança africana na formação do Brasil: “Tenho lacunas de conhecimento que não quero que meu neto tenha. Minha consciência racial e minha militância nasceram da compreensão de nossa história. Isso passa por não esconder o que foi a escravidão”.

É para não esquecer. Nem a maldade. Nem o legado.

 

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