Para tod@s

Característico da cultura brasileira, o preconceito vitima não só as minorias, mas a sociedade inteira. Surpreendentemente, o mundo corporativo surge como espaço propício para criar o caldo da diversidade e mudar esse quadro

Por Amália Safatle

O sonho de Leila era lecionar. Formada em Letras nas Faculdades Oswaldo Cruz, em São Paulo, gosta demais da língua inglesa. Mas, quando conseguia vaga em uma escola pública, o governo estadual não concedia o laudo médico.

 

Leila tem 5% da visão. Até que acabou desistindo, isso há cerca de quatro anos. Dois anos atrás, a secretaria estadual de Educação criou cotas para deficientes. Mas aí Leila Bahia, hoje coordenadora de Recursos Humanos da Hewlett-Packard, a HP, já tinha se encaminhado para outro rumo. Com funções administrativas, é braço direito dos que fazem a seleção dos novos contratados da empresa. E se prepara para um dia colocar o “olhômetro” em funcionamento, tornando-se uma recrutadora também.

 

Deficientes, assim como jovens aprendizes, são protegidos por leis de cotas nas empresas. A partir de um determinado número de empregados, as companhias são obrigadas a reservar um percentual de vagas (5%) e, de certa forma, a quebrar a lógica que impera no mundo corporativo capitalista: a de buscar maiores lucros por meio de pessoas mais capazes e produtivas, que se encaixam em um padrão preestabelecido de “competências”. Leia-se: homem, branco, heterossexual, de 30 a 40 anos, formado nas chamadas faculdades de primeira linha. E, claro, sem deficiências.

 

Surpresa que o ambiente das empresas seja justamente considerado o mais propício para quebrar preconceitos e cultivar a diversidade. “A escola é a guardiã dos valores da sociedade, e valores não só bons: incluem o racismo, a homofobia e o machismo. A família, a Igreja e os sindicatos também são instituições rígidas. A empresa é de fato a mais flexível”, afirma Reinaldo Bulgarelli, expert em questões ligadas à diversidade, diretor da consultoria Txai e professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, na área de responsabilidade social corporativa.

 

Em resposta às pressões da sociedade, há empresas que aos poucos percebem a necessidade de rever posturas e passam a entender diversidade como um ativo que inclusive funciona a favor dos negócios. “Como a inovação pode surgir em um ambiente onde todo mundo pensa igual?”, questiona Regina Macedo, diretora de marketing corporativo da HP, empresa da área de tecnologia da informação, onde inovação é a mais valiosa das matérias-primas.

 

Mas a própria HP está às voltas com uma questão das mais básicas, que não chega nem mesmo à relação de homens e mulheres em cargos de chefia, e sim a de equiparar a quantidade de funcionários do gênero masculino e feminino em toda a empresa. Hoje são 74% homens para 26% mulheres.

 

Rosana Echio, gerente de recrutamento e seleção, chefe de Leila, conta sobre as dificuldades de encontrar candidatas mulheres nas faculdades, pois há um entendimento na sociedade de que tecnologia é um assunto masculino e poucas delas acabam se interessando por esse mercado. No entender de Regina, é um contrassenso, pois o mundo eletrônico e suas redes cada vez mais proporcionam o relacionamento, o diálogo e a troca, características muito femininas.

 

Mas, se as empresas se acomodam com a ampla oferta de candidatos homens ou de qualquer outro padrão predeterminado, alimentam o círculo vicioso. Segundo Bulgarelli, gestores arrogantes ou ingênuos costumam dizer que, se há ausência ou pouca representatividade de algum segmento dentro da empresa, isso se deve a causas externas: o governo, a sociedade, as raízes históricas.

 

Como se trata de um círculo vicioso, lembra o especialista, a reversão é possível em qualquer ponto dele. E as empresas têm não só uma corresponsabilidade nesse quadro, como o poder de transformá-lo. Tal quadro contraria fortemente a ideia – forjada não se sabe com base em que – de que formamos uma sociedade tolerante, cordial, aberta ao plural e ao diverso.

 

Recente pesquisa encomendada pelo Ministério da Educação (MEC) à Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) traz uma contundente radiografia do pensamento brasileiro em relação a minorias. A Pesquisa sobre Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar ouviu 18.599 pessoas, entre alunos, professores, diretores, funcionários, pais e responsáveis de 501 escolas públicas em todo o País e concluiu que o preconceito é generalizado. Nada menos que 99,3% o manifestaram em relação a pelo menos uma área temática, entre as quais gênero (contra mulheres), geracional (pessoas mais velhas), deficiência física ou mental, orientação sexual (homossexuais), socioeconômica (pobres), etnorracial (negros, índios e ciganos) e territorial (pessoas da área rural) – nesta ordem de importância.

 

E 99,9% da amostra mostrou desejo de manter algum nível de distância social em relação a pelo menos um desses grupos. A distância social foi medida em diferentes graus, por exemplo: desde aceitar a pessoa pertencente a um dos grupos a estudar na mesma escola que seu filho até permitir que essa pessoa se case com ele.

 

“O preconceito aparece como uma característica da nossa cultura”, afirma José Afonso Mazzon, professor da FEA-USP e coordenador do estudo. A pesquisa foi pioneira no campo da diversidade na educação brasileira, mas apresentou uma questão mais profunda e ampla do que se imaginava de início. “Os resultados indicam que não basta uma política educacional para enfrentar o problema, pois o preconceito e a discriminação já se manifestam no ambiente familiar e extramuros, antes mesmo que o aluno vá para a escola. Por isso, é preciso uma política de governo, envolvendo todos os ministérios”, diz.

 

Da mesma forma que pode prejudicar o desempenho escolar – a pesquisa indica forte correlação entre maior preconceito e piores notas -, a intolerância afeta os negócios no mercado de trabalho. Flavia Moraes, que trabalhou durante mais de 20 anos na Philips e hoje lida com uma série de empresas na condição de consultora independente, pontua as vantagens da gestão com base no diverso: favorece a criatividade para lançamento de novos produtos e serviços, melhora o clima organizacional, aprimora as práticas éticas na empresa e provoca mais engajamento e motivação nas equipes.

 

Ana Paula Nunes de Lima, responsável pelo Programa de Diversidade instituído no ano passado no Banco Itaú, cita um exemplo simples. Com 3.200 funcionários deficientes – de modo a cumprir a cota de 5% -, ela descreve como uma situação, mesmo que imposta pela força da lei, pode mudar algo. Quando um funcionário encontra um colega sem os membros superiores no refeitório e vai lá auxiliá-lo, não deixa de ser um exercício de olhar para o outro. Justamente em um ambiente onde cada um se debruça sobre o próprio prato de comida e mal olha para o lado. “Isso ajuda até na prática da liderança”, diz.

 

Como diz Bulgarelli, diversidade significa levar vida para a organização. “Onde tem vida, tem diversidade. Assim é na natureza.” Além disso, a diminuição das desigualdades no mercado de trabalho é o caminho mais efetivo para reduzi-las em toda a sociedade, como declara o Instituto Ethos na apresentação da pesquisa social, racial e de gênero, realizada em 2007 com as 500 maiores empresas no Brasil.

 

“A inclusão das mulheres negras no mercado de trabalho, por exemplo, traz resultados imediatos e importantes no combate à pobreza”, diz Caio Magri, responsável pela área de Políticas Públicas do Ethos. Segundo ele, não por acaso as políticas de financiamento, reforma agrária, habitação e microcrédito são fortemente centradas nas mulheres, pela capacidade de acumular tarefas de trabalhadora e chefe de família, de gerenciar o lar, garantir a presença dos filhos na escola e manter a casa própria.

 

Magri ainda acrescenta que o ambiente plural, criativo e solidário é característica das companhias bem colocadas nos rankings das melhores empresas para se trabalhar. E Bulgarelli cita um relatório do Fórum Econômico Mundial – que monitora a questão de gênero- , segundo o qual os países mais ricos são justamente os mais avançados em equidade, pois, ao distribuir melhor as oportunidades, evitam a criação de bolsões de pobreza.

 

Mas, diante de tantas evidências sobre a importância e o valor da diversidade nas empresas e na sociedade, ela está longe de se consolidar no mercado de trabalho brasileiro, a não ser por imposição da lei e pressão de determinados grupos, o que só reforça a tese do preconceito amplo e cristalizado na sociedade que o estudo da Fipe apontou.

 

A pesquisa do Ethos entre as 500 maiores empresas no Brasil não só retrata a dificuldade de mulheres, negros, indígenas, amarelos e deficientes acessarem cargos de chefia como traz um outro resultado estarrecedor. Parte considerável dos presidentes das empresas – 39% – considera adequada a participação de mulheres em nível executivo, que não passa de 11,5%. E 34% dos presidentes também julgam apropriada a proporção de 3,4% de negros em altos cargos de chefia.

 

Diante do afunilamento hierárquico, quanto mais as mulheres e os não brancos estudam e se qualificam, mais expostos estão ao desemprego. “Isso mostra a ineficiência da sociedade. É como se fosse dado o recado: se você for esforçado, vai quebrar a cara”, diz Bulgarelli.

 

Magri avalia que, embora as estatísticas ainda não reflitam, os resultados devem melhorar dentro de um prazo médio. Isso porque há uma série de políticas governamentais voltadas para a inclusão, empresas e instituições públicas passam a se mostrar empenhadas nessa direção e muitas companhias privadas têm tomado iniciativas e criado programas em prol da diversidade.

 

Entretanto, são mudanças de pensamento muito recentes. A própria iniciativa do Ethos pela diversidade no mundo empresarial não contempla a minoria LGBT, de lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. “A questão não apareceu ainda como um desafio no nosso diálogo com as empresas. Para surgir, é preciso haver pressão social, reivindicações. De qualquer forma, é um tema que precisa, sim, ser tratado, e caberia no questionário da pesquisa com as companhias”, avalia Magri.

 

Para Bulgarelli, o assunto da diversidade é tão novo que nem chega a ser considerado pela maioria das empresas como um tema da sustentabilidade. “Tudo aconteceu praticamente do ano 2000 para cá. E o aspecto cultural ainda não ‘grudou’ nessa discussão, muito mais voltada para o social e o ambiental”, afirma.

 

Para ser ter ideia, exemplifica ele, mesmo o Banco Real, pioneiro em abordar o tema da diversidade e referência no assunto, somente em 2006 abriu um lactário no prédio-sede da Avenida Paulista, em São Paulo, para atender as funcionárias que amamentam. “Isso porque o edifício abriga 5 mil colaboradores, é um verdadeiro município”, diz.

 

Fora da caixa

E se os avanços ainda são poucos em relação a assuntos básicos, como participação e remuneração de minorias como negros, mulheres e deficientes nas empresas, quem dirá uma visão um pouco mais sofisticada da diversidade.

 

Uma questão que perpassa todos esses grupos minoritários, por exemplo, é a da diversidade de perfis. Funcionários competentíssimos, todos formados em Harvard, com visões de mundo e jeitos de trabalhar alinhados a um elevado padrão de eficiência pode parecer uma receita de sucesso. Entretanto, seria o primeiro passo para o empobrecimento da empresa, tornando-a incapaz de lidar fora de seus muros com uma realidade diversa, variável e volátil.

 

A Google é exemplo inevitável de empresa que pensa diferente disso. A começar da logomarca, que muda constantemente – mas sem perder a identidade. E é conhecida por abrigar um grupo de funcionários não exatamente encaixados ao “modelito” de eficiência. “Eles não têm compromissos com resultados imediatos, não funcionam no esquema cumprir-rapidamente- tarefas-e-obedecer-ao-chefe. Estão lá para viajar na maionese, para detectar tendências, para oxigenar a empresa”, diz Regina, da HP.

 

Mas na maioria das companhias no Brasil impera um único padrão comportamental, o de ficar até mais tarde no escritório, ainda que o serviço tenha acabado, por exemplo. “Isso é muito característico de países de Terceiro Mundo, talvez um complexo de Colônia, que quer mostrar lá fora como se é competente e produtivo”, diz a consultora Flávia Moraes. “Além disso, enquanto o chefe não vai embora, ninguém sai.”

 

Masculinas, masculinizadas e masculinizantes

 

Não basta incluir as minorias e adaptá-las ao padrão dominante, é preciso quebrá-lo, modificá-lo. Caso contrário, o movimento é de homogeneização, não de diversificação. Assim, de nada adianta a mulher anular suas características femininas a fim de se tornar mais aceita e conquistar posições na hierarquia.

 

“Conheci uma funcionária de uma empresa que se recusou a entrar na rede criada para que as mulheres discutissem suas questões, simplesmente porque não queria ser reconhecida como uma mulher. Acreditava que isso a prejudicava”, conta Flávia.

 

“É o que se chama de introjeção”, diz Bulgarelli. “Para conquistar e manter o poder, uso a mesma ideologia, mesmo que ela seja maléfica para mim.” Ele retrata a maioria das empresas como masculinas, masculinizadas ou masculinizantes.

 

Masculinas, quando têm a maioria de seus funcionários homens, não só em cargos de chefia, como na base. Masculinizadas, quando assumem certos rituais e símbolos dos quais as mulheres não costumam partilhar – um exemplo clássico é os homens tomarem decisões empresariais estratégicas em rodas de uísque e charuto nos horários avançados, quando as diretoras mulheres já tiveram de ir para casa cuidar dos filhos. E masculinizantes, quando buscam transformar o outro à sua imagem e semelhança.

 

É sabido que gênero é uma construção cultural. A antropóloga americana Margaret Mead (1901-1978), que fez um dos primeiros estudos de gênero com base em um trabalho de campo na Papua Nova Guiné, demonstrou isso ao observar a diferença de temperamento em três sociedades primitivas. Homens e mulheres Arapesh agiam de forma maternal; já homens e mulheres Mundugumor tinham uma cultura agressiva e bélica; e homens Tchambuli enrolavam o cabelo e se preocupavam com a aparência, enquanto suas mulheres eram enérgicas e organizadoras.

 

Não se trata de julgar como positivas ou negativas as características construídas pelos gêneros masculino e feminino nas diversas sociedades – na ocidental moderna, por exemplo, é comum acreditar que mulheres são cuidadosas, detalhistas, indecisas e intuitivas, enquanto homens são agressivos, empreendedores, objetivos e racionais. O positivo é a variedade de perfis, mas desde que essa diferença não seja usada para sobrecarregar um ou outro.

 

A saída está em dividir as tarefas, acredita Bulgarelli. Para ele, uma coisa que as empresas podem fazer, por exemplo, é definir que todos os funcionários – homens e mulheres – que têm filhos com menos de 6 anos tenham horário flexível para eventualmente ir à reunião de pais e mestres, levar a criança ao pediatra, levar ou buscar o filho na escola de vez em quando. Reeducar os funcionários homens para cuidar mais da casa e da família. Ampliar a licença-paternidade.

 

Até porque os homens estão sofrendo com a atual divisão de papéis, ao que indica a obra Executivos – Sucesso e (In) Felicidade, de Betania Tanure, Antônio Carvalho Filho e Juliana Andrade (Editora Campus Elsevier). O livro mostra como a falta de equilíbrio entre o tempo dedicado a assuntos profissionais e assuntos pessoais e familiares é enorme fonte de insatisfação.

 

Como diz Bulgarelli, o preconceito não produz vítimas isoladas. “Todo mundo é vítima, todo mundo perde. Isso é inerente ao conceito da diversidade, em que tudo e todos estão interligados.”

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Matéria original: Para tod@s

 

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