Parlamento branco comprova que ‘mentira cívica’ não foi desfeita

Em 2013, somente 55 (10,7%) dos 513 deputados federais eram negros. Já no Senado, o número era ainda menor. Apenas três (3,7%) em 81 parlamentares

Por Jorge Américo,

Em 13 de maio de 1997, o senador Ab­dias do Nascimento se dirigiu à tribuna não para comemorar, mas para denun­ciar a ‘mentira cívica’ que completava 110 anos. O descontentamento do par­lamentar com a Abolição da escravidão estava expresso na realidade da popula­ção negra, concentrada nos extratos mais marginalizados da sociedade.

“De escravos passaram a favelados, meninos de rua, vítimas preferenciais da violência policial, discriminados nas es­feras da justiça e do mercado de traba­lho, invisibilizados nos meios de comu­nicação, negados nos seus valores, na sua religião e na sua cultura”, denunciou.

Abdias, destacado intelectual e artista, foi senador da República pelo PDT repre­sentando o estado do Rio de Janeiro em duas oportunidades. Primeiro, de 1991 a 1992 e, mais tarde, de 1997 a 1999.

Poucos negros ocuparam o Congresso Nacional na sequência, como demons­trou levantamento feito pela ONG Trans­parência Brasil em 2013. Naquele ano, somente 55 (10,7%) dos 513 deputados federais eram negros. Já no Senado, o número era ainda menor. Apenas três (3,7%) em 81 parlamentares.

A luta política dos negros sempre foi rebaixada e tratada como um sintoma da incapacidade pessoal de lidar com as di­ficuldades da vida. No discurso histórico, Abdias aludia que toda denuncia de dis­criminação racial da qual é vítima faz o negro ser taxado de “complexado”, “res­sentido” ou “perturbado mental”.

A presidenta do Geledés Instituto da Mulher Negra, Sueli Carneiro, recorda que inúmeros embates foram necessá­rios para a desconstrução dessa men­talidade.

“A minha geração trabalhou pelo me­nos três décadas para desmitificar a de­mocracia racial. A elite nos dizia: ‘Nós dizemos que não tem racismo e vocês fingem que acreditam e tudo vai dar certo enquanto esse acordo permanecer’. Esse acordo está rompido, de tal maneira que o racismo já não precisa mais ser hipócrita ou sutil. Ele é explí­cito”, reflete.

Conflito racial

Para Sueli, os casos de racismo contra jogadores de futebol e a violência que vi­tima jovens negros são exemplos de co­mo a intolerância racial já não pode mais ser disfarçada.

“Vocês são a geração que vai enfren­tar a dimensão mais truculenta dessa lu­ta. É isso que os aguarda: o conflito ex­plícito, o conflito direto. E o nosso temor enquanto velha geração de militantes era saber se tem gente para segurar esse ro­jão, se temos organização política para fazer esse enfrentamento.”

O discurso lúcido de Sueli se dirigiu ao grupo de jovens presentes na plenária de campanha do professor Douglas Bel­chior, que disputa uma vaga na Câmara dos Deputados pelo estado de São Pau­lo. Com o lema “Um preto no recinto”, a atividade reuniu, no último dia 20 de se­tembro, lideranças da nova e antiga ge­ração para refletir sobre a necessidade de candidaturas surgidas do seio de organi­zações negras. Juninho Palmarino foi in­dicado como deputado estadual, também por São Paulo.

A possibilidade de construção de uma nova sociedade a partir da via eleitoral costuma gerar acalorados debates entre membros do movimento social organiza­do. Reginaldo Bispo, do Movimento Ne­gro Unificado (MNU), sempre foi resis­tente a essa opção, mas considera o atual momento político do país extremamen­te delicado, o que torna necessário a pre­sença de porta-vozes comprometidos com as demandas sociais.

“Uma Boate Kiss a cada dois dias sem que se sensibilize nenhum poder, ne­nhum segmento de importância que de­cide qualquer coisa… é preciso que a gen­te tenha uma voz que chame atenção, unifique esse discurso para que a gente vá para cima e mude essa realidade”, de­clarou Bispo.

O ativista se refere à comoção gera­da na opinião pública pela tragédia na qual morreram 242 jovens em decor­rência de um incêndio em um salão de baile. Ao mesmo tempo, segundo Bispo, pouco destaque é dado aos jovens ne­gros que são assassinados diariamente nas periferias.

 

Leia: 

Abdias Nascimento: 13 de maio uma mentira cívica

 

Fonte: Brasil de Fato

+ sobre o tema

Depoimentos de Escravos Brasileiros

Em julho de 1982, o estudante de história Fernando...

Arqueólogos acham peças de engenho de 1580 em São Paulo

Descoberta ajuda a documento o início do ciclo da...

Juremir Machado da Silva: ‘muitos comemoram Revolução sem conhecer a história’

Samir Oliveira O jornalista e historiador Juremir Machado da Silva...

Fotografias definiram a visão que o Ocidente tem da África

Imagens de africanos começaram a circular pela Europa no...

para lembrar

Dre Sueli Carneiro : “Le racisme produit une fausse conscience de supériorité “

La société brésilienne doit abandonner l'hypocrisie, assumer qu'elle est exrêmement...

Colorindo Egos, por Sueli Carneiro

Nesta semana ocorreu em São Paulo o I Congresso...

Faz-de-conta, por Sueli Carneiro

Acaba de ser lançado o livro Não somos racistas,...

Velhas teses, novas estratégias

A constatação óbvia é repetida em certos veículos de...
spot_imgspot_img

O precário e o próspero nas políticas sociais que alcançam a população negra

Começo a escrever enquanto espero o início do quarto e último painel da terceira sessão do Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes, nesta semana na...

Fórum da ONU em Genebra discute desenvolvimento econômico dos negros

No terceiro dia do 3º Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes, promovido pela ONU, em Genebra, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, destacou a importância...

Instituto Geledés promove evento sobre empoderamento econômico para população negra

O Geledés – Instituto da Mulher Negra realizou nesta quarta-feira (17) evento paralelo ao Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes que acontece na sede das Nações...
-+=