“Pedimos desculpas (…) Admitimos que a capa é racista!”

Noite de segunda-feira em São Paulo. O calor infernal deixa o ar rarefeito e ajuda a agravar ainda mais a sensação térmica. No pequeno auditório improvisado no primeiro andar do prédio do Pólis – Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais, nas cercanias da Praça da República, as cadeirasde padrão escolar vão sendo ocupadas uma a uma.

por  Rosenildo Ferreira no Papo Reto

A temperatura do local aumenta a cada minuto graças à ventilação precária e à constante elevação do “calor” do debate. A audiência é eclética, tanto no quesito faixa etária quanto em relação à cor da pele. No entanto, é visível a forte predominância de jovens afro-brasileiros entre os cerca de 50 presentes. E não poderia ser diferente. Afinal, o tema da noite era “A Esquerda e o Racismo”.

Mas este poderia ter sido um dos tantos debates que pipocam aqui e ali sobre assuntos da agenda política, econômica e social brasileira e global. Não fosse pelo detalhe de quem estava no “banco dos réus” eram e-xa-ta-men-te os promotores do evento: a equipe de jornalistas do Le Monde Diplomatique Brasil, acusados de racismo por parte do movimento negro de São Paulo.

Silvio Caccia Bava (à esq. de camisa escura, sentado) durante fala do frei David
Silvio Caccia Bava (à esq. de camisa escura, sentado) durante fala do frei David

O pomo da discórdia foi a ilustração da capa da 111ª edição na qual uma figura patética, bestializada, sem dentes e negra, é usada para representar o brasileiro médio, o qual pode ser prejudicado com a reforma trabalhista e previdenciária, na pauta do governo federal. Para os ativistas, a capa reforça os estereótipos negativos em relação aos afro-brasileiros, comuns na chamada mídia tradicional e “de direita”.

“Em primeiro lugar, eu quero dizer que o jornal Le Monde Diplomatique errou em relação à questão da capa. Para ser sincero nós não nos demos conta, num primeiro momento, na mensagem que a capa estava passando. Depois, com as reiteradas menções de vocês, nós caímos na real. Então, a primeira coisa é um pedido de desculpas. Não era intenção nossa fazer isso e estamos admitindo que a capa é racista”, disse Silvio Caccia Bava, diretor e editor-chefe do jornal.

Ícone do pensamento da intelectualidade brasileira de esquerda (grupo classificado jocosamente como esquerda caviar), a publicação é uma das mais longevas e bem-sucedidas entre a chamada Nova Imprensa Alternativa. Sua matéria-prima é o debate em alto nível dos temas sociais e políticos, fazendo um contraponto ao pensamento da direita neoliberal, conforme deixa claro em cada um dos artigos assinados por notórios pesquisadores e intelectuais.

Graças a essa linha editorial angariou cerca de 50 mil leitores fiéis pelo Brasil afora.

Nos últimos 15 dias, porém, o jornal e sua equipe editorial passaram a ocupar o lugar de vilão nas redes sociais. Nem bem havia chegado às bancas e as reações começaram a pipocar. Curiosamente, foram as blogueiras e as internautas que puxaram o coro. Numa demonstração de que estava disposta a aprender com o erro, a direção do Le Monde Diplomatique chamou o pessoal para conversar. “Para não ficar apenas no plano das acusações queremos, a partir da capa do jornal, fazer uma discussão mais ampla sobre o racismo e a esquerda.”

MOMENTOS DE TENSÃO, ANGÚSTIA…

Durante quase três horas, Silvio e os dois editores que compõe o staff fixo do jornal ouviram críticas ácidas, duras e na intensidade do mal que a capa da edição havia causado aos presentes. Tanto por parte dos cinco integrantes da mesa, quanto da audiência. Acomodado numa das cadeiras da plateia, o veterano jornalista ouvia tudo com atenção.

Em seu semblante era possível identificar momentos de angústia, tristeza, cansaço, contrariedade e até mesmo vergonha com as pesadas críticas e acusações desferidas a cada intervenção por parte da mesa e da plateia. “Fizemos 110 capas antes dessa e nunca tivemos um problema sequer”, falou a 1 Papo Reto no final do encontro.

A capa com charge do Jaguar
A capa com charge do Jaguar

A capa com charge do JaguarMas entre o desejo e a materialidade, e a teoria e a prática vai um oceano de distância. Isso ficou claro nas réplicas do jornalista às provocações e sugestões, como também nas propostas de providências/reparações feitas pelos debatedores. Afinal, no que se refere à exclusão do negro, a mídia, tanto à esquerda quanto à direita, adota um comportamento “padrão Brasil” de negar, pedir desculpas e tentar encerrar o caso.

“Primeiramente, é racismo!”, disparou a jovem jornalista free-lancer e militante de esquerda Gisele Brito. “Toda intelectualidade presente nas páginas do jornal não serviu para nada. O jornal custa caro e é usado para formar consciências, mas é integrado apenas por brancos que reproduzem estereótipos”, criticou.

A pouca participação ou inexistência de jornalistas afro-brasileiros nas redações, em geral, também foi destacada pelos demais debatedores como um ponto negativo, pois acaba reforçando um único modo de enxergar o mundo, a partir do eurocentrismo, também classificado como branquitude.

A historiadora e pesquisadora dos estereótipos da posição do negro na imprensa mundial Suzane Jardim começou sua fala se dizendo incomodada por estar naquele local. “Aceitei o convite com certa vergonha, pois não esperava me ver na condição de ter de explicar uma questão que é básica e começou a ser discutida em 1940, no Brasil”.

Uma das autoras do livro #Meu Amigo Secreto, que fala sobre a violência sexual contra a mulher, a relações públicas e blogueira Gabriela Moura também investiu na linha da crítica à falta de sensibilidade racial da equipe do jornal. “Mais do que sentir vergonha em estar aqui hoje, eu senti raiva ao aceitar o convite”, disparou. “Só se lembram dos negros quando descobrem que fizeram merda e aí nos chamam para ajudar a consertar.”

Neste ponto é preciso explicar um pouco mais como o processo se desenrolou.

A controvertida capa do Le Monde Diplomatique Brasil já saiu da redação sob a aura da polêmica. De acordo com informações do próprio Silvio, parte do staff foi contrário à sua publicação, pois enxergava nos traços do veterano cartunista Jaguar (fundador do Pasquim, ícone da imprensa alternativa das décadas de 1960 e 1970) um racismo velado.

Contudo, Silvio bancou a aposta por não ter detectado no desenho essa intenção manifesta. Tanto que, na nota a qual convoca para o debate (veja a íntegra no final desta matéria), ele deixa claro essa linha de argumentação. Pior. Coloca a percepção do racismo como uma conclusão do movimento negro: “(…) Quanto à capa, nós a consideramos uma iniciativa infeliz e lamentamos ter sido considerada racista e queremos pedir desculpas aos nossos leitores. (…)”.

Ao entrar no chamado estado de negação, o diretor do jornal acabou “apagando fogo com querosene”. Por conta desta postura, considerada equivocada e desrespeitosa pela quase totalidade dos debatedores e da audiência, frei David, fundador da ONG Educafro, chegou ao encontro com planos ambiciosos.

Como reparação ao dano causado à comunidade afro-brasileira, ele sugeriu uma série de medidas. Desde a publicação de uma edição especial sobre a questão racial no Brasil até a contratação de jornalistas negros, passando pela criação de um programa de estágio para afro-brasileiros estudantes de jornalismo.

Ideias boas, sem dúvida, mas impossíveis de serem adotadas numa estrutura enxuta como a do Le Monde Diplomatique Brasil. “Essa empresa é registrada como uma ONG, não somos uma corporação que visa lucro nem temos receita para fazer frente a tamanhas despesas.” Como alternativa, o diretor de redação do jornal se comprometeu em abrir espaço para o tema nas colunas do jornal.

Mas o debate sobre o racismo no Brasil é um terreno pantanoso, capaz de engolfar até mesmo aqueles reconhecidamente bem intencionados e esclarecidos. Em sua fala final, Silvio explicou que o processo de seleção dos articulistas convidados a colaborar, de forma gratuita com a publicação, se devia ao notório saber em relação à pauta proposta a cada edição.

Reações iradas dos internautas à capa e ao pedido de desculpas
Reações iradas dos internautas à capa e ao pedido de desculpas

“Nós não temos um coletivo permanente de pessoas que nós convidamos. Olhamos o que vamos tratar, a partir do mapa de conflitos sociais e buscamos o que há de melhor. Não tínhamos o critério de que teríamos de incluir um articulista negro em cada debate, mas podemos passar a tê-lo”, disse. “O que não quer dizer que não foram convidados negros para escrever no jornal.”

Foi o bastante para gerar um buchicho em meio à audiência e em toda a mesa de debatedores. Afinal, ficou a impressão de que, se o jornal não convocava negros é porque estava procurando apenas “os melhores”.

O mal-estar foi reverberado pela jornalista Ana Claudia Mielke, integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, que atuou como mediadora. Ela interpelou Silvio, ao final do evento. “Os intelectuais negros são capazes de falar sobre temas diversos, em alto nível, e não apenas de racismo.”

É, parece que a ficha do Diplô, como Silvio se refere carinhosamente ao jornal, ainda não caiu totalmente!

Carta publicada na página do Facebook do Le Monde Diplomatique Brasil, em 4/10/2016

“Caras leitoras e leitores que se pronunciaram sobre a capa desta nossa ultima edição e a classificaram de racista,

Recebemos com apreensão os comentários de que havíamos nos tornado racistas. O jornal Le Monde Diplomatique Brasil sempre esteve solidário ao movimento negro, às mobilizações das jovens mulheres negras, engajado na campanha contra o extermínio da juventude negra, e em defesa dos direitos de cidadania.
Quanto à capa, nós a consideramos uma iniciativa infeliz e lamentamos ter sido considerada racista e queremos pedir desculpas aos nossos leitores. Acolhemos a crítica, reconhecemos o erro e entendemos que essas são reações vindas de quem vive na pele, no dia-a-dia, as discriminações odiosas e classistas contra os negros e as negras no Brasil.
Acreditamos que a melhor maneira de enfrentar esta questão é abrir as páginas do jornal para publicarmos os argumentos que nos criticam, ampliando o espaço deste importante debate público.
Queremos convidar a todos que se manifestaram, e a todos e todas que se interessarem, a participar de um debate sobre MíDIA E RACISMO, dia 17 de outubro, segunda-feira, às 19:30 horas, em nosso auditório, à Rua Araújo 124 Le Monde Diplomatique Brasil

 

vídeo da  íntegra do debate Mídia e Racismo: Capa Le Monde Diplomatique Brasil, realizado em 17/10/2016.

O vídeo publicado no site Jornalistas Livres* mostra protesto contra o Le Monde Diplomatique Brasil, durante o  “6º Seminário Público – Direitos Trabalhistas: 100 anos de retrocesso?”

*Imagens: Leandro Caproni/Edição: Pedro Ivo Carvalho

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