Polícia afasta delegado que disse não saber se houve estupro coletivo

Após afirmar que não estava convencido de que realmente houve estupro coletivo no caso da menina de 16 anos estuprada por mais de 30 homens no Rio de Janeiro, o delegado Alessandro Thiers foi afastado do caso pela Polícia Civil.

Por Mariana Della Barba , do BBC

A advogada da vítima, Eloísa Samy, e o Ministério Público pediram o afastamento de Thiers alegando machismo e misoginia no tratamento da adolescente.

No final da tarde de domingo, a Polícia Civil do Rio anuncio que o caso ficará sob a responsabilidade da delegada Cristiana Bento, da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (DCAV). Em nota, a Polícia afirmou que a decisão “visa evidenciar o caráter protetivo à vítima na condução da investigação, bem como afastar futuros questionamentos de parcialidade no trabalho”.

Segundo o canal Globonews, Bento afirmou que a garota entrou no Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes ameaçados de Morte (PPCAM), executado pela Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro. Ela já teria saído de casa e estaria em local não divulgado.

Em seu perfil de Facebook, Eloísa Samy afirmou que a família da adolescente dispensou seus serviços.

“Hoje à tarde recebi pelo WhatsApp um aúdio da avó da adolescente me agradecendo pelo meu empenho e dedicação ao caso, mas dispensando a continuidade dos meus serviços em razão da família agora estar sob os cuidados e a proteção da Secretaria de Direitos Humanos do Estado”, disse.

Acusações

Até o momento, não houve prisões relacionadas ao caso. Em entrevista coletiva após o depoimento da vítima e de suspeitos, o delegado Alessandro Thiers afirmou que a polícia estava “investigando se houve consentimento dela, se ela estava dopada e se realmente os fatos aconteceram. A polícia não pode ser leviana de comprar a ideia de estupro coletivo quando na verdade a gente não sabe ainda”.

Samy havia pedido o agastamento de Thiers do caso afirmando que suas perguntas “desqualificavam a vítima”.

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“Ele não tem condições de conduzir esse caso. Durante o depoimento da vítima, fez perguntas que claramente tentavam culpá-la pelo estupro. Ele chegou a perguntar: ‘Você tem por hábito participar de sexo em grupo’. Não acreditei e encerrei o depoimento”, disse Samy à BBC Brasil.

“Ele mostra uma atitude machista por claramente desqualificar a vítima e a violência que ela sofreu, a responsabilizando pela violência do estupro. Assim, ela faz com que ela sofra duas vezes, com a violência do estupro e com a violência inconstituicional pelo descrédito que lhe é dirigido”, acrescentou a advogada.

“Assim fica fácil perceber o que faz com que tantas vítimas de estupro deixem de denunciar seus agressores no Brasil.”

A BBC Brasil procurou a Polícia Civil para comentar as acusações. A delegacia comandada por Thiers afirmou que, durante o depoimento, a vítima foi questionada sobre “ter conhecimento de que havia um outro vídeo sendo divulgado em mídias sociais em que ela apareceria mantendo relações sexuais com homens, conforme relato de uma testemunha”.

A jovem afirmou desconhecer as imagens e disse que elas não eram verdadeiras, segundo a polícia. “A mãe da vítima acompanhou todo o depoimento, sendo que, em determinado momento, houve discordância entre a advogada e o desejo da mãe da vítima. Por esta razão a oitiva da mãe foi feita sem a presença da advogada.

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Provas

A advogada da vítima também critica o fato de o delegado não ter pedido a prisão preventiva dos suspeitos ouvidos pela política.

“Ele (o delegado) reitera que divulgar imagens como essas envolvendo menores é crime, chama os suspeitos para depor, eles confessam e daí eles são liberados? Não consigo entender. O vídeo não é prova o suficiente?”

Samy afirma ainda que o fato de a gravação mostrar que a garota está desacordada já é prova o suficiente de estupro. O delegado, no entanto, alegou que não ainda havia subsídios para pedir a prisão preventiva.

Para o procurador de Justiça Mario Sarrubbo, professor da Faculdade de Direito da Faap, de São Paulo, o vídeo que mostra a garota deitada e desacordada enquanto os rapazes tocam suas partes íntimas e debocham é um “indício forte” de que houve o estupro, e deve ser confrontado com outras provas.

“Eu teria pedido a preventiva. Temos um vídeo com confissão”, diz ele. “Eles afirmam (em gíria própria) que houve estupro.”

No vídeo, um dos rapazes diz: “Mais de 30 engravidou”. Em uma foto divulgada também pelo Twitter é possível até ver o rosto de um deles, que posa para a câmera em frente à menina.

O Código Penal Brasileiro, em seu artigo 213 (alterado pela Lei 12.015/09), considera atos libidinosos não consentidos como crime de estupro.

“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”, descreve a lei.

“Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas com alguém que por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”, acrescenta.

Enviar vídeos ou fotos de menores de idade é crime previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com pena de três a seis anos de prisão.

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‘Nítido’

“É nítido no vídeo que ela não tinha condições de manifestar sua vontade ou não (de consentir o sexo). É claro que ela está dopada e/ou desacordada e, portanto, vulnerável. Isso por si só já está tipificado no Código Penal como violência sexual mediante fraude”, avalia a advogada Ana Lucia Keunecke, diretora jurídica da ONG de defesa dos direitos das mulheres Artemis.

“Não havendo assim nenhuma necessidade de outras provas, já havendo indícios suficientes para o pedido de prisão preventiva dos suspeitos.”

Segundo ela, é comum ver delegados fazendo com que a vítima prove que houve estupro.

“Não creio que o fato de não se ter pedido a prisão preventiva dos suspeitos seja despreparo da autoridade, é cultura do machismo, cultura do estupro”, afirma Ana Lucia.

Trauma

A advogada também diz ter ficado revoltada com o fato de o delegado ter marcado o depoimento dos suspeitos para o mesmo momento em que a adolescente estava na delegacia. “Exatamente no mesmo horário e local. Ela ficou ainda mais abalada.”

Segundo Samy, a jovem está extremamente traumatizada. “Ela está começando a apresentar sintomas de síndrome de pânico. Não quer sair de casa. Está muito abalada.”

A advogada diz que o Estado não ofereceu nenhum tipo de acompanhamento psicológico – ela mesma teria conseguido o apoio de um profissional para a adolescente.

Com colaboração de Adriano Brito, da BBC Brasil em São Paulo

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