Por que a ‘nova Globeleza’ é um avanço para a representatividade das mulheres negras no Brasil

Nua, sambando e com o corpo pintado com vinhetas da Rede Globo. Era assim que a Globeleza era conhecida desde 1991 até o ano passado.

Por Marcella Fernandes e Andréa Martinelli, para Huffpost Brasil

Na vinheta exibida pela emissora neste domingo (8), aquela que foi batizada de “musa do carnaval do Brasil” aparece diferente: sambando, mas vestida com roupas típicas do frevo e do maracatu, além de porta-bandeira de escola de samba acompanhada de um mestre-sala.

Assista ao vídeo:

O Fantástico exibiu a vinheta em primeira mão neste domingo. “Esse ano a inovação foi trazer o carnaval de cada região, a cultura de cada lugar. A ideia desse filme era juntar todas as ideias do Carnaval em 37 segundos”, disse Flávio Mac, diretor de arte da Globo em entrevista ao jornalístico.

“São muitas novidades. A diversidade agora vai aparecer ainda mais. Muitos figurinos e muito mais o nosso folclore do nosso Carnaval em si“, completou Erika Moura, a atual Globeleza na mesma entrevista.

A repercussão do vídeo nas redes sociais foi acalorada. De um lado alguns comemorando, de outro, alguns criticando:

O foco, então, parece não estar apenas em uma única mulher, mas nas diversas representações que o Carnaval brasileiro tem.

Rosane Borges, pós-doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e professora Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação também da USP, acredita que a nova representação da personagem “Globeleza” é positiva e vai a encontro de valorizar elementos da cultura nacional.

A Globeleza não é o retrato da mulher negra. Ela é a representação da Mulata, que vem do imaginário escravocrata e da ideia de que a ‘branca é pra casar, a mulata para fornicar e a preta para trabalhar’. Quando a Globo insiste na mulher negra como símbolo do Carnaval que ‘tudo pode’ é este imaginário colonizado que ela está reforçando”, disse em entrevista ao HuffPost Brasil.

Para Rosane, uma discussão como esta traz à tona uma questão complexa e que diz respeito ao que é esperado de diversos grupos e sobre quais são as suas funções sociais:

“Uma imagem diferente da hegemônica [dominante] entrega outras possibilidades de representação para esta mulher e, inclusive, na hora de representar a si mesma, e outros conjuntos de mulheres que existem na sociedade e também da cultura em que ela vive. Então, eu acho que a princípio, essa mudança é positiva, sim”

E completa:

“Quando você insiste numa imagem objetificada, nela não há diversidade. Por que colocar só uma mulher negra sambando? A gente tem uma diversidade enorme de mulheres que são destaques no Carnaval e no samba. Tirar a mulher negra desse lugar de objetificação é um passo importante. Não há mudança na política real, se não há mudança nos mecanismos de imagens que reforçam isso.”

A especialista ainda explica que não é porque há um pequeno avanço nesta representação que é preciso discutir menos a imagem da mulher negra e os símbolos que são criados pelos meios de comunicação.

“Não devemos desconsiderar que o racismo ainda é um eixo extremo e negativo para a sociedade. A gente tem que tirar essa questão como algo simplificado e colocar como estrutura. Racismo e sexismo são questões estruturais que precisam ser combatidas.”

E a comunicação, em si, tem um papel importante em construir e amplificar narrativas já existentes, mas que estão escondidas:

“A gente tem uma mudança no modelo da comunicação que é muito substantiva. As redes sociais tiraram aquele padrão dominante de distribuição da informação. Hoje existe uma maneira de que mais pessoas ouçam outras vozes, que não a dos hegemônicos. Aquela narrativa que prioriza um único lado da história não é real.”

Machismo, racismo e violência contra a mulher negra

Em 2014 foram registrados 4.832 homicídios de mulheres no País, segundo dados mais recentes do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. Desde 2006, primeiro ano de vigência da Lei Maria da Penha, o número de vítimas caiu 2,1% entre as mulheres brancas e aumentou 35,0% entre as negras.

Uma pesquisa da Unicef chamada Violência Sexual mostra que as mulheres negras são as mais vitimadas por tipo de agressão.

“Na análise sobre os fatores que estão por trás da exploração sexual comercial, é importante considerar que a desigualdade estrutural da sociedade brasileira é constituída não só pela dominação de classes, de gênero e de raça. (…) Dessa forma, a criança e o adolescente não têm sido considerados sujeitos, mas, sim, objeto da dominação dos adultos, tanto por meio da exploração de seu corpo no trabalho quanto de seu sexo e da sua submissão. As relações dominantes de gênero e de raça, por sua vez, se evidenciam pelo fato de que a grande maioria das vítimas é formada por mulheres negras e pardas”, diz o estudo.

Mestre em Filosofia Política pela Unifesp, Djamila Ribeiro, destaca como a exploração da imagem da “mulata brasileira” na Globeleza remete a episódios de violência sexual de mulheres escravizadas por senhores de engenho.

Luiza Bairros tem uma frase muito interessante que explicita muito bem o lugar que a sociedade confere à mulher negra: “nós carregamos a marca”. Não importa onde estejamos, a marca é a exotização dos nossos corpos e a subalternidade. Desde o período colonial, mulheres negras são estereotipadas como sendo “quentes”, naturalmente sensuais, sedutoras de homens. Essas classificações, vistas a partir do olhar do colonizador, romantizam o fato de que essas mulheres estavam na condição de escravas e, portanto, eram estupradas e violentadas, ou seja, sua vontade não existia perante seus ‘senhores'”, escreveu em artigo para o blog Agora é que São Elas, da Folha de S. Paulo. A ativista Stephanie Ribeiro é coautora do texto.

Para Lorena Monique, ativista e responsável pelo canal do youtube Neggata, uma mulher negra, nua e sorrindo está muito próximo da ideia opressora de colonização que temos em nossas mentes:

“Magra, alta, esguia, peitos grandes, bunda grande, cabelo encaracolado e com algumas mechas loiras e, principalmente, negra com a pele clara. Esse é o padrão da mulher negra aceita (como objeto sexual, mas aceita). O problema é que a grande maioria das mulheres negras não se encaixa nesse padrão. Mulheres negras de pele retinta, gordas, com lábios mais grossos, feições mais fortes e que não saibam sambar ou que não desejem ser vistas apenas como objetos sexuais. Essas não têm vez […]. O que é a Globeleza se não uma mulher negra nua, dançando de forma sensual, sem nenhuma fala, nenhuma conexão com o espectador, além da sua imagem? É impossível assistir a uma de suas vinhetas e não perceber que não se trata da mulher Valéria Valenssa, mas apenas do seu corpo, sua sensualidade e sua força sexual. A Globeleza é apenas um corpo que samba, faz sexo e nada mais. Ah, claro, também é uma mensagem muita clara de qual é o papel da mulher negra na sociedade brasileira”, escreveu em texto para o HuffPost Brasil

A história da Globeleza

Hoje representada por Erika Moura, que assumiu a personagem em 2015, a Globeleza consagrou a carreira da dançarina Valéria Valenssa, no cargo de 1991 a 2004. Foram 14 anos sambando estampada com vinhetas feitas pelo marido, o diretor de arte Hans Donner.

O posto também foi ocupado por Giane Carvalho (2005), Aline Prado (2006-2013) e Nayara Justino (2014).

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