A professora que ensina o que é inspiração

Gina Vieira Ponte nasceu em uma família de seis filhos, de mãe negra mineira e pai branco cearense. Os dois se encontraram no Distrito Federal, para onde se mudaram em busca de emprego e melhores condições de vida, ele vendedor ambulante, ela empregada doméstica. Formaram um lar em Ceilândia e ensinaram aos filhos que a educação era a chave para uma vida melhor. Viver o analfabetismo na pele fez os dois falarem sobre a escola como um privilégio que, se bem aproveitado, garantiria superpoderes aos filhos, poderes capazes de tirá-los da situação de privações econômicas para a vida que eles sonhassem. Porém, quando finalmente entrou na escola aos sete anos de idade, a pequena Gina não encontrou o conto de fadas que sonhava mas um ambiente carregado de racismo, no qual seus colegas caçoavam de seu cabelo e a excluíam de grupos e apresentações por causa de suas roupas puídas e seus sapatos velhos. “Meu sonho era ser uma criança invisível porque eu acreditava que se isso acontecesse eu não sofreria as agressões tão recorrentes”, conta.

Do  Think Olga

Tudo mudou no ano seguinte, quando foi aluna da professora Creusa, uma mulher negra como ela. Certo dia, Creusa pegou Gina no colo. Sua primeira reação foi se encolher porque até então proximidade física na escola era sinônimo de violência. Mas era carinho. Diante da chacota dos colegas, Creusa elogiava as tranças de Gina, dizia que ela era linda, silenciando o racismo em sala de aula. Creusa passou a incluir Gina em todas as apresentações e aos poucos seu olhar sensível a transformou completamente. Gina passou a se dedicar compulsivamente aos estudos para retribuir a esperança depositada nela pela professora. Ávida pela atenção de Creusa – que trabalhava muito com escrita autoral, colando cartazes com ilustrações para que as crianças escrevessem uma história sobre o desenho – Gina se antecipava e passou a praticar a escrita fora da sala de aula para se aprimorar. Inconscientemente, usou a escrita para elaborar o racismo e as outras discriminações que passava através de diários. “Ter me apropriado da escrita foi decisivo para minha formação. Eu não tinha condições de frequentar um acompanhamento psicológico, mas a escrita se tornou meu espaço de organização das questões que me afetavam”, diz Gina. O olhar de Creusa impactou tanto Gina que ela mudou sua perspectiva sobre si e ganhou confiança. Concluiu que a coisa mais importante que um adulto poderia fazer na vida era marcar uma criança como Creusa havia lhe marcado. Passou, então, a sonhar em ser professora.

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Anos mais tarde, Creusa é homenageada por Gina como mulher inspiradora. Foto: Reprodução/Think Olga

Não foi nada fácil a jornada até se tornar professora. Sem dinheiro para frequentar um curso preparatório para o magistério (formação para ser professora da época), montou um grupo de estudos com amigas e acabou sendo aprovada de primeira, entrando na profissão de professora já aos 19 anos. “A educação transformou minha história como minha mãe dizia que iria transformar. Em pouco tempo, meus pais não puderam mais trabalhar e eu me tornei responsável pela renda da família”, conta. No entanto, passados oito anos de experiência a frustração com o sistema escolar começou a pesar. “Comecei a perceber que a escola é uma estrutura repressora que não incentiva os jovens a estar na escola e fiz um processo de resignificação da minha identidade como professora”, diz. O foco na aprovação no vestibular, como se a vida se resumisse a ser aprovado em provas, a incomodava.

Para ela, o foco na aprovação negligencia outras habilidades das crianças e adolescentes – como criatividade, imaginação, habilidades sócio-afetivas, a capacidade de ser empático – e isso gera uma série de problemas como a falta de diálogo, a dificuldade de conviver dentro da diversidade e prejudica um desempenho efetivo ao focar demais na cópia e não dar condições de os jovens se apropriarem de conhecimentos capazes de transformar suas histórias. Dados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) corroboram a reflexão de Gina. De acordo com a última avaliação do programa, dois em cada três alunos brasileiros de 15 anos não conseguem interpretar situações que exigem apenas deduções diretas da informação dada. “Alguma coisa está errada nesse sistema que nem me olha como sujeito, não observa minha subjetividade, minha identidade, minha história e também não me dá condições de me apropriar dos conhecimentos que vão me ajudar a transformar minha história. Então precisamos repensar esse modelo educacional, sobretudo neste contexto em que vivemos, muito marcado pelas novas tecnologias”, afirma Gina.

Em uma tentativa de se aproximar ainda mais de seus alunos, nativos digitais, Gina passou a frequentar mais as redes sociais e lá se deparou com suas alunas de 13 anos postando vídeos em que dançavam sensualmente e recebendo comentários ofensivos dos meninos, sem considerá-los ofensivos. “Quando percebi minha aluna reproduzindo um referencial feminino colocado nas grandes mídias eu fui olhar para minha própria história e me dei conta de que o grande diferencial da minha vida foi ter tido a chance de viver com grandes mulheres”, diz. Na mesma época, Gina teve acesso ao material de apoio didático sobre igualdade de gênero oferecido pela Secretaria das Mulheres do Sindicato dos Professores. Ao estudar gênero, Gina percebeu que tinha como missão desvelar o machismo e mostrar como ele opera na sociedade brasileira. Somando as referências femininas de sua vida com os estudos de gênero, Gina teve a ideia de criar o projeto interdisciplinar Mulheres Inspiradoras junto com as turmas do 9º ano do Centro de Ensino Fundamental de Ceilândia.

Gina e seus alunos no lançamento do livro que conta as histórias das mulheres inspiradoras de suas vidas
Gina e seus alunos no lançamento do livro que conta as histórias das mulheres inspiradoras de suas vidas. ( Foto: Reprodução/Think Olga)

O projeto consistia em várias etapas, começando com a apresentação de um vídeo mostrando mulheres com muita exposição na mídia e de mulheres importantes para a história do Brasil e do mundo que não são tão conhecidas assim. Em seguida, Gina trabalhou com a leitura de livros que traziam exemplos de mulheres fortes e de diferentes classes sociais, etnias, faixas etárias e níveis de escolarização, como O Diário de Anne Frank, Eu Sou Malala, Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada e Não Vou Mais Lavar os Pratos. Ao mesmo tempo, a sala foi dividida em grupos com tarefa de apresentar um trabalho sobre uma mulher inspiradora da lista composta por Gina, que incluía Anne Frank, Carolina Maria de Jesus, Cora Coralina, Irena Sendler, Lygia Fagundes Telles, Malala, Maria da Penha, Nise da Silveira, Rosa Parks e Zilda Arns. Gina também levou mulheres inspiradoras para a sala de aula, incluindo Creusa Pereira dos Santos Lima, sua antiga professora e referência feminina. Por último, os alunos tiveram que escolher alguma mulher inspiradora de seu círculo pessoal para entrevistar e fazer um texto contando sua história. A maioria eram avós, mães e líderes de igrejas da região, contando a própria Gina.

“O que mais me emocionou foi ouvir de uma aluna que a partir do projeto ela descobriu que também quer ser uma mulher que carrega uma grande história. Uma outra aluna me disse que constatou a partir do projeto que essa história de mulher ser o sexo frágil é uma grande mentira porque, ao estudar a biografia da 10 grandes mulheres, descobriu que a mulher é uma fortaleza”, conta. O projeto foi tão intenso que superou as expectativas e transformou a própria identidade de Gina, que parou de alisar o cabelo e passou a afirmar sua negritude com o crespo natural. Gina conversou com suas alunas negras sobre isso e duas meninas seguiram o exemplo e também fizeram a transição capilar. “Elas passaram a ter plena consciência de quão poderosas elas são e percebi uma incidência infinitamente menor de fotos e vídeos sensuais nas redes sociais”, conclui. O projeto Mulheres Inspiradoras foi o vencedor de cinco prêmios em escala nacional e internacional, entre eles o Prêmio Nacional de Educação em Direitos Humanos em 2014 e o Primeiro Prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos “Óscar Arnulfo Romero”, promovido pela Organização de Estados Ibero-americanos (OEI) em 2015. As histórias dos alunos também foram publicadas em um livro, lançado em março deste ano. Agora, a ideia é ampliar o projeto ao capacitar mais professores para aplicá-lo em outras escolas.

Confira abaixo dois vídeos sobre o projeto:

Video Player

Arte: Pedia Robinson.

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