Quem são os bárbaros? Reflexões acerca do documentário: Eu não sou seu negro (James Baldwin)

James Baldwin foi poeta e crítico social afro americano, nascido em Nova York em 1924 tem nos romances suas críticas centrais acerca das diversas opressões daquele momento histórico, da luta por direitos civis nos Estados Unidos na década de 60. Baldwin, como a maioria dos negros e negras do mundo possuí uma história de luta permeada pelo sofrimento iniciado desde infância. O documentário, que pretende ser uma biografia de Baldwin, relatando através de sua escrita e dos gestos irónicos que transparecem uma doçura e um bravio, intencionava mostrar as dificuldades do seu livro inacabado Remember this house, que seria uma história da América através das vidas de Martin Luther King, Jr. (1929-1968), o ativista dos direitos civis Medgar Evers (1925-1963), e Malcolm X (1925-1965), amigos de Baldwin, assassinados antes de completar 40 anos. O documentário é um daqueles que nos deixa inquietante e com vergonha de viver em uma sociedade onde pessoas se auto destroem em nome de uma ojeriza ao outro, o diferente. Como dizia Fanon (2008: 181 – 191)

Por Elaine Santos para o Portal Geledés 

Se para mim, a um certo momento, colocou-se a necessidade de ser efetivamente solidário com um determinado passado, fi-lo na medida em que me comprometi comigo mesmo e com meu próximo em um combate com todo o meu ser, com toda a minha força, para que nunca mais existam povos oprimidos na terra. (…)A desgraça do homem de cor é ter sido escravizado.A desgraça e a desumanidade do branco consistem em ter matado o homem em algum lugar. Consiste, ainda hoje, em organizar racionalmente essa desumanização. Mas, eu, homem de cor, na medida em que me é possível existir absolutamente, não tenho o direito de me enquadrar em um mundo de reparações retroativas. Eu, homem de cor, só quero uma coisa:

Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a servidão do homem pelo homem. Ou seja, de mim por um outro. Que me seja permitido descobrir e querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre. O preto não é. Não mais do que o branco. Todos os dois têm de se afastar das vozes desumanas de seus ancestrais respectivos, a fim de que nasça uma autêntica comunicação.

 

A dispersão geográfica dos negros, no caso estadunidense, se deu pelo terror, terror tamanho, que retratado, causa dor ainda hoje. A maior vergonha da América, o seu histórico escravista, mantém-se na negação dos direitos civis à comunidade negra. No caso brasileiro, os negros não foram integrados ao Brasil que se construía no pós-escravidão, logo sua exclusão é própria e constitutiva daquele capitalismo colonial e perpassado de uma geração a outra. O documentário nos trouxe a realidade atemporal ao mostrar que nossas memórias e dores não empalidecem com o tempo, mesmo dentro de uma democracia fingida que garante legalmente uma suposta aceitação, sabemos que os nossos continuam morrendo e só descansam quando a batalha se encerra com nosso decesso. Buscamos o Poder Negro, aquele mencionado por Stokely & Hamilton (1967: 6) que consideramos a força do “Terceiro Mundo”, ou seja, a nossa luta estreitamento relacionada com as lutas de libertação em todo o mundo. O diretor Raoul Peck, um negro haitiano, é um homem que atravessou seu tempo que dialoga com a história não como um cultismo ao passado e sim com as marcas deixadas para relacionarmos a situação do mundo atual. Também diretor do esperado filme “O Jovem Marx” Peck diferentemente da esquerda presente, relaciona a questão de classe e mostra como o capitalismo cumpre perfeitamente sua forma constitutiva de nos dividir cada vez mais e afirma que a “raça é apenas uma emanação do capitalismo” em ambos filmes o peso do capitalismo ainda se faz presente nas diversas opressões e análises, tanto a realizada por Marx como por Baldwin (PECK, 2017). Bastante mencionado nos últimos anos Peck coloca seu nome como cineasta abaixo das ideias que os seus filmes pretendem evidenciar, Peck me lembrou Fanon quando afirmou ao seu amigo Roger Tayeb “No somos nada sobre esta tierra, a menos que seamos, en primer lugar, esclavos de una causa, la causa de los pueblos, la causa de la justicia y la libertad” (CESAIRE et al, 2017: 26)

 

 

Referências

CESAIRE, Aime [et al]. (2017) Leer a Fanon, Medio Siglo Después.  Ciudad Autónoma de Buenos Aires – CLACSO, 1 ed.

FANON, Franz. (2008) Pele negra máscaras brancas. EDUFBA, Salvador.

STOKELY Carmichael & HAMILTON, V. Charles. (1967) Poder negro. Primeira Edição espanhola, Siglo XXI Editores, México.

Entrevista Concedida a Página Comunicação, Arte e Cultura em 01 de maio de 2017. Raoul Peck sobre ‘O Jovem Karl Marx’: “Vou ao passado para compreender a eleição de Trump.” Consultada a 12.06.2017

<http://www.comunidadeculturaearte.com/raoul-peck-sobre-o-jovem-karl-marx-vou-ao-passado-para-compreender-a-eleicao-de-trump/>

 

Elaine Santos é Socióloga, Doutoranda em Sociologia no Centro de Estudos Sociais (Coimbra) e Integrante do Roda das Pretas – Mulheres Pretas discutindo sua condição e existência desde Coimbra, Lisboa, Honduras, Madrid e Brasil.

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