Quem tem medo das pedagogas negras?

Não vou me demorar em responder a pergunta que intitula o presente texto, visto que a própria História da Educação não hesitou em apontar os homens e as mulheres brancas enquanto temerosas à ascensão profissional de professoras negras. No século XIX, quando a educação foi utilizada para pavimentar o projeto nacional de civilização e progresso brasileiro, criaram as primeiras Escolas Normais para a formação de professores, as quais eram majoritariamente compostas por homens, e naquele período era possível notar a forte presença de homens negros atuando nas escolas profissionais e como diretor escolar (DÁVILA, 2006), entretanto, no inicio do século XX, “o número de homens de cor envolvidos no ensino público diminui, seguido por um decréscimo no número de mulheres de cor, até que a década de 1930 e 1940 a esmagadora maioria de professores era composta por mulheres brancas” (DÁVILA, 2006, p. 152).

Por Ivanilda Amado Cardoso

Enviado por  Nida Amado via Guest Post para o Portal Geledés

Tais mudanças no cenário da profissão docente podem ser atreladas a dois fatores: o processo de branqueamento e o desprestígio da docência que acarretou um rebaixamento salarial e proletarização da profissão quando esta se “feminizou” (Rosenberg : Amado, 1992).

Segundo Dávila (2006), durante as reformas encapadas por médicos sanitaristas e reformadores da educação, os processos sistemáticos e hostis de seleção de professores/as, que transvestidos nos discursos de profissionalização docente, de capacidade técnica e moralidade, provocaram gradual branqueamento do campo da profissão docente “[…] o moderno quadro de professores que os reformadores criaram era branco, feminino e de classe média” (DÁVILA, 2006, p. 148).

Nesse contexto, o processo de branqueamento e feminização da docência, que gradativamente tornava-se desprestigiada financeiramente, incidiram fortemente na carreira das professoras negras, pois ainda que a docência, no século XX, tenha se tornada desprestigiada, a mesma era considerada espaço de distinção e ascensão social para as mulheres brancas que titulavam a figura de civilidade moralidade, limpeza e boa reputação, no caso das mulheres negras, o espaço educacional formal era cada vez mais de difícil acesso.

Em Salvador (BA), perde-se a conta das mulheres negras alfabetizadoras informais que não obtiveram ascensão social com a profissão docente. No meu bairro Saramandaia, periferia da capital baiana, posso contabilizar, com ajuda da minha mãe e vó, seis mulheres negras as quais, desde a década de 1950, foram as principais responsáveis pela alfabetização das crianças, tais experiências sociais demonstra os problemas nas políticas de acesso à educação, principalmente da população negra.

Dona Cleonice, que ainda hoje tem uma escola, com infraestrutura totalmente fora dos parâmetros nacionais de qualidade estabelecidos pelo MEC, mas que para algumas mães do bairro ainda é alternativa frente ao processo de expulsão dos seus filhos da rede pública de ensino. Pode-se registrar outras educadoras do bairro como, por exemplo, Luh, Cleusa e Val, as quais mantêm uma Banca (reforço escolar) em suas próprias casas. A falecida Dona Dasdores, também fora uma figura importante na alfabetização das crianças. Mas Dona Adelaide, a temida professora que dava bolo (palmatória) e colocava no castigo do sapo quem errasse a tarefa, foi a responsável pela alfabetização da maioria das crianças da comunidade.

Essas mulheres tiveram papel importante na educação das crianças da comunidade, tendo em vista que a definição da educação como direito subjetivo, em que se garante acesso ao ensino gratuito e obrigatório, e a expansão da educação, são políticas educacionais recentes, data da constituição de 1988. Antes disso, as varandas e quintais das senhoras, pelo menos nos bairros periféricos de Salvador, foram os principais locais de educação. As histórias dessas mulheres precisam ser resgatadas, contadas e registradas. Futuras Reflexões!

Como havia mencionado, neste breve texto não tenho pretensão aprofundar a discussão sobre a presença/ausência de mulheres negras no magistério, algumas pesquisas cumpriram esse propósito. Vale a pena ler o livro “Cor e Magistério” organizado por Iolanda Oliveira e o livro “A cor da Escola” de Maria Lúcia Rodrigues Müller.

Certa vez fui provocada com uma crítica sobre o ingresso de mulheres negras em curso de menor prestígio social, na perspectiva da pessoa provocadora, as jovens negras precisam ingressar em cursos de maior prestígio social, como, por exemplo, Direito, Medicina, Engenharias etc. Considero um importante ponto de problematização, tendo em vista o cenário educacional, todavia vale ponderar que tal critica deslegitimam a luta histórica e protagonismo de mulheres negras pelos espaços educacionais, como fizeram as Rosas Negras, Antonieta de Barros, Tereza Santos, as mães de Santos e muitas outras anônimas.

Sim, o curso de Pedagogia é atravessado por muitos problemas políticos, estruturais e epistemológicos, e as observações podem ser consideradas válidas se o proposito for o de instigar as jovens negras a criarem diferentes estratégias para melhor colocação no mercado profissional e ascensão social, no entanto, é preciso cuidar para não corroborar com o pensamento elitista dos que desejam ver as mulheres negras longe das universidades e que, por isso, desqualificam espaços políticos que historicamente tornou-se privilégios de mulheres brancas.

Considerar a docência como único espaço profissional reservado às mulheres é uma forma de limitar suas possibilidades de atuação profissional, isso também precisa ser problematizado, mas há que se ponderar e contextualizar a inserção de muitas mulheres negras nos cursos de Pedagogia, pois mesmo sendo considerado um curso de baixo prestígio social, ainda representa significativo aumento no corpo discente das universidades brasileiras.
Acredito que o curso de pedagogia a tem sido um atrativo, senão uma escolha política, calculada e estratégica de mulheres negras, como um caminho de possibilidades para sua formação profissional e de atuação e intervenções pedagógicas antirracistas.

Aliás, a (re) educação das relações étnico-raciais historicamente são processos sociais encampados por mulheres negras deste país. Tem gente com medo!

Por isso, duras críticas de cunho racista, elitista e conservadoras, são direcionadas ao curso de Pedagogia, como explicitadas nas palavras da antropóloga Eunice Durham, a qual defende a volta da Escola Normal por considerar o curso de Pedagogia uma “fábrica de maus professores” oriundos da escolas públicas (Durham, 2008).

Em entrevista a revista Veja, quando questionada sobre a expansão de universidades, Durham afirma: “estou convicta de que já temos faculdades públicas em número suficiente para atender aqueles alunos que podem, de fato, vir a se tornar Ph.Ds. ou profissionais altamente qualificados. Estes são, naturalmente, uma minoria” (DURHAM, 2008, entrevista concedida à Revista Veja, ed. 2088, 26 de novembro de 2008).

O filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. (2008) corrobora com a crítica de Durham e afirma que o estudante do curso de Pedagogia “[…] é a raspa do tacho do vestibular”, por isso, as “Reformas dos cursos de Pedagogia e licenciatura serão úteis quando a clientela que procurar tais cursos for uma clientela um pouco mais intelectualizada” (GHIRALDELLI JR. 2008, n.p.). Quem seria essa clientela intelectualizada?

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Fonte: Preta & Acadêmica- Comunidade no Facebook.

Tais críticas têm forte cunho racial e são direcionadas à estudantes negros/as, principalmente mulheres negras, visto o crescente acesso dessas mulheres no ensino superior, provocado, também, pelas políticas de Ações Afirmativas. Entretanto, apesar de observarmos uma mudança na composição das universidades públicas, no que concerne a atuação em escolas da educação básica ao ensino superior, o perfil docente no Brasil é majoritariamente branco, e as assimetrias raciais tornam-se mais acentuadas à medida que se aumenta os níveis de escolaridade, ou seja, na educação infantil identifica-se um número expressivo (mas ainda é menor que o número de professoras brancas) de professoras negras atuando, no entanto, esse contingente mina quando se analisa o ensino superior que tem expressivamente a presença de homens e mulheres brancas.

Os reflexos do projeto político de branqueamento da profissão docente do século XX podem ser identificados por meio dos dados do Censo da Educação Básica e numa breve observação dos bancos das salas de aulas e departamentos universitários. E mais, a política de branqueamento projetada no século XX não repercutiu apenas no perfil do professorado, os currículos escolares são eugênicos e eurocêntricos.

A Sinopse Estatística da Educação Básica publicada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep) , atualizada em 2014, nos mostra que na educação básica, o total de docentes atuantes é de 2.190.743, desse contingente, 20% são profissionais do sexo masculino e 80% do sexo feminino. Quanto à distribuição de profissionais por cor/raça atuando na educação básica, se autodeclararam brancos 43% e a soma dos autodeclarados pretos e pardos, conforme classificação do IBGE, os negros representam 28%. Os autodeclarados amarelos são 1%, os indígenas representam menos de 1% e não declarados são (28%).

Com base na Sinopse Estatística da Educação Básica, podemos inferir que, de modo geral, o perfil dos profissionais da Educação Básica no Brasil é expressivamente composto por mulheres brancas, com formação superior, principalmente no nível de graduação.

Um dado relevante desse perfil docente brasileiro é que, enquanto se observa um contingente expressivo de docentes brancos e do sexo feminino atuando na Educação Básica, na Educação profissional e no Nível Superior, em contraste identifica-se forte presença de docentes negros e indígenas atuando na modalidade educacional Quilombola e Indígena, o que nos permite inferir que há um protagonismo político desses segmentos no tratamento das questões relacionadas ao seu grupo social. Entretanto, se olharmos por outro viés, os dados apontam para a ausência de mulheres negras em outras etapas e níveis da educação, principalmente nas Instituições de Ensino Superior, bem como nos demais espaços de definição das políticas públicas educacionais.

Felizmente, ainda que lentamente, algumas professoras negras têm ocupado importantes espaços na política educacional, podemos citar alguns exemplos mais recentes: Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva primeira mulher negra com assento no Conselho Nacional da Educação-MEC, a pedagoga Nilma Lino Gomes, reitora da UNILAB e atual Ministra da Seppir- (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), também destaca-se a professora da rede Municipal de Belo horizonte Macaé Evaristo que atuou como Secretária da Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI/MEC) e muitas outras!! Essas mulheres desafiaram o projeto de branqueamento da profissão docente.

Outrora tinham medo de que Dona Cleonice, Luh, Adelaide e outras alfabetizadoras negras anônimas ascendessem através do magistério, hoje estão amedrontados com a possibilidade do ensino da história africana e afro-brasileira nas escolas e com as rupturas e questionamentos das literaturas racistas que se convencionou a chamar de cânones universais.

Temem porque sabem que a docência para as mulheres negras sempre foi um espaço político e estratégico na luta contra o racismo.

É disso que se tem tanto medo!

Referências
DÁVILA, Jerry. Diploma de brancura: política social e racial no Brasil (1917-1945). Trad. Claudia Sant‟Ana Martins. São Paulo: Editora Unesp, 2006. 400p.

DURHAM, Eunice. Fábrica de maus professores. Revista Veja, São Paulo, v. 41,
Educação antirracista caminhos abertos para a lei 10.639/03. Brasília: SECAD, 2005, p. 39-62.

GHIRALDELLI JR, Paulo. Era uma vez Eunice Durham tropeçando e a esquerda esperando a revolução. Disponível em:https://ghiraldelli.wordpress.com/2008/11/25/era-uma-vez-eunice-durham-tropecando-e-a-esquerda-esperando-a-revolucao/ Acesso em 20/03/2015.

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