A segunda Morte de Castro Alves

por: Mário Maestri*

Antônio de Castro Alves não vai bem de saúde. Sobre ele, em forma lenta, estendeu-se uma cortina de silêncio, uma espécie de véu do esquecimento. Atualmente, afirma-se que a poesia do nosso mais conhecido vate ressente a usura dos tempos, tornando-se, na forma e no conteúdo, um discurso estranho aos nossos dias. Avança-se que ela registra apenas sentimentos de uma época que, de tão distante de nós, torna-se uma desconhecida. Diz-se que a sua leitura da escravidão teria expressado o olhar temeroso dos escravizadores, e não dos escravizados.

Em 1997, quando do sesquicentenário de seu nascimento, pouco se fez, pouco se falou, pouco se discutiu sobre o mais dileto filho da Bahia. O insosso transcurso da celebração não deixaria lugar a dúvidas. Castro Alves ¾ junto com o espartilho, o rapé e a polca ¾ faria parte das antigualhas de um passado longínquo que nos causam apenas difusos sentimentos de nostalgia por uma época definitivamente superada. O transcurso dos 140 anos de sua morte, em 6 de julho de 2011, passou também praticamente sem registro.

Transcendendo ao seu tempo, quando arte, a poesia registra experiências e sentimentos profundos do mundo que a produziu. O poeta, ao apreender poderosamente facetas de sua época, enriquece o conhecimento dos coevos da experiência humana passada, iluminando igualmente o presente. Um vate morre realmente quando pouco ou quase nada diz de essencial aos seus novos leitores.

Nos últimos trinta anos, dedicamo-nos à pesquisa da escravidão colonial brasileira, com ênfase no trabalho e na resistência dos trabalhadores escravizados, pois cremos que foi assim que pejaram e determinaram profundamente nossa história. Tal empenho levou-nos a estudar a literatura brasileira do século 19, sobretudo em busca de subsídios para a compreensão das estruturas sociais daquelas épocas, em geral, e da ideológicas das classes proprietárias, em especial.

No contexto dessas investigações, relemos Castro Alves, poeta que nos encantara quando ainda adolescente, nos anos 1960. Com surpresa, encontramos registrados, nas poesias do baiano genial, os grandes temas da resistência servil ¾ justiçamento dos proprietários; autocídio dos cativos; infanticídio; quilombos, etc. ¾ que a historiografia especializada da escravidão colonial brasileira apenas começou a abordar, em forma sistemática, a partir dos anos 1970, sobretudo, para, muito logo, tornarem-se, nos anos 1990, temas marginais da investigação.

Impressionou-nos igualmente a virulência com que o poeta anatematizara a ordem negreira e o despudor e verdadeiro prazer com que cantara a revolta e o ato de sangue do cativo sublevado contra seu escravizador, e isso em uma época em que a escravidão dominava poderosa o país. Para nós, sua poesia apresentou-se como um singular paradoxo, ao destoar de praticamente toda a produção literária ficcional em prosa e em verso conhecida da época.

Procuramos explicação para o fenômeno nos estudos sobre a literatura brasileira do século 19. Não foi menor nossa surpresa ao constatar que, em forma geral, a crítica especializada abordava essa poesia sem contextualizá-la historicamente e, comumente, ignorando olimpicamente os avanços da historiografia que tendiam a valorizar e iluminar, sob novos enfoques, a leitura poética de Castro Alves da sociedade negreira. Maior foi ainda nossa perplexidade ao constatarmos que, frequentemente, esses estudos retiravam em forma arbitrária toda e qualquer radicalismo à poesia castroalvina, apresentando-a não raro como uma visão de membro da classe pudente. Chegavam, assim, a leituras radicalmente opostas as nossas, sobre a mesma produção.

A indiferença e a ignorância da crítica literária para com a historiografia da escravidão colonial brasileira não bastam para explicar tais avaliações. Atualmente, são também importantes as tendências revisionistas que, nos estudos do passado, procuram reabilitar a sociedade escravista, apresentando-a como um mundo em que os cativos viveram condições de existência quase aprazíveis: comiam bem, trabalhavam pouco, acumulavam bens, impunham suas razões aos escravizadores, como apresentado exaustivamente, em 1990, por Jacob Gorender, em A escravidão reabilitada! [São Paulo: Ática, 1990. 271 pp.] Não é difícil estabelecer os paralelos e as correspondências entre esses dois movimentos, pois ambos tendem a desconhecer, nos seus respectivos domínios, a resistência dos escravizados como elemento essencial da história do Brasil pré-Abolição.

Consultamos colegas e amigos profissionais da literatura, igualmente admiradores da poesia de Castro Alves. Também perplexos, assinalaram a crescente desvalorização do poeta baiano nos cursos de literatura de nossas universidades e a quase hegemonia de uma crítica acerba ao poeta da qual não conseguiam explicar as raízes mais profundas.

Em fins de 1996, fomos convidados a participar de um pequeno seminário a ser realizado, no segundo semestre de 1997, em uma universidade sul-rio-grandense. Salvo engano, era o único encontro mais ambicioso sobre o poeta que registraria, no Rio Grande do Sul, o transcurso do sesquicentenário de seu nascimento.

Aproveitamos o mote. A fim de preparar nossa participação no evento e compreender um pouco sobre as raízes desse quase mistério, lemos e relemos a documentação que havíamos reunido sobre Castro Alves. Quando o encontro foi, sintomaticamente, suspenso, pensamos ampliar e transformar nossa intervenção em um artigo. Devido à dinâmica do próprio trabalho, o que seria um artigo, assumiu a dimensão de um ensaio.

Foi assim que nasceu A segunda morte de Castro Alves: genealogia crítica de um revisionismo, que pretendeu ser apenas a contribuição de um historiador da escravidão à retomada do debate e das pesquisas sobre a obra de Castro Alves. Não desenvolvemos no livro, lançado em 2000, análise estética da poesia castroalvina, para a qual não estamos preparados. Apenas, tentamos estabelecer genealogia crítica do revisionismo empreendido sobre o sentido social da poesia de Castro Alves e sobre seus principais pressupostos e determinações ideológicos e metodológicos.

Retomando o objetivo de também prestar homenagem a intelectual brasileiro que pautou sua breve vida sob o signo da integridade intelectual e moral, estamos relançando esse estudo, há muito esgotado, como 19º título da Coleção Malungo, da UPF Editora, em versão corrigida e ampliada.

Mário Maestri, 63, é historiador e professor do Programa de Pós-Graduação em História da UPF, RS.

Fonte: Pravda

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