Seymour Drescher – Abolição – Uma história da escravidão e do anti-escravismo

Seymour Drescher – Abolição – Uma história da escravidão e do anti-escravismo. São Paulo: UNESP, 2011, 736p.

Por: Arsênio Corrêa

Muito oportuno o lançamento feito pela Editora UNESP, do livro ABOLIÇÃO de autoria de Seymour Drescher, professor de História e Sociologia da University of Pittsburgh. Destacaria entre os seus méritos a demonstração de que o papel desempenhado pela Inglaterra na sua abolição não decorreu, como chegou a ser afirmado, por interesses econômicos, mas pelo vigor alcançado, no país, por esse movimento.

O livro foi lançado originalmente em 2009. Na apresentação à edição brasileira, o Professor Antonio Penalves Rocha, autor da tradução, destaca entre outras coisas, “que passados cerca de 35 anos, quase nada dos trabalhos de vanguarda dos historiadores norte-americanos foi traduzido e publicado no Brasil.”. O autor dividiu suas 736 páginas em quatro partes, sendo a primeira denominada “A Extensão” composta de 3 capítulos; a segunda “A Crise”, 5 capítulos; a terceira “A Contração”, igualmente com 5 capítulos; e, a última, “A Reversão” estruturada em 2 capítulos.

Sobre a extensão da escravidão o trabalho nos mostra que se tratou de uma instituição perene e universal, ou seja, nos dias de hoje poderíamos dizer que o movimento escravista globalizou-se. Há que se levar em conta que essa instituição (maldita) foi considerada como natural. Decorreria da natureza das coisas. Chegou a ser considerada necessária e de todo justificável, por autores tão destacados quanto Aristóteles.

Embora seja lícito admitir que a escravidão humana sempre existiu, de forma organizada e voltada para a produção, no Ocidente, tem inicio basicamente no século XV. Essa delimitação se faz necessária a fim de que, esse corte no tempo, nos permita ter presente que foi nessa última fase que ela se expandiu e se extinguiu.

Segundo o autor, o movimento antiescravista organizado, na Inglaterra, surgiu ainda em fins do século, adquirindo grande amplitude no seguinte. Adquiriu tal pujança que logrou desmantelar “essa vasta extensão transoceânica da escravidão criada depois de 1450. O tráfico negreiro transatlântico, que outrora havia transportado mais de 100.000 africanos por ano, foi abolido. Na década de 1880, a instituição da escravidão foi abolida em todo o Novo Mundo.”. (pág.XV). Devemos considerar que os povos europeus sofreram influência do Império Romano, diz o autor: “Durante o milênio que se seguiu à queda do Império Romano do Ocidente, os Estados que estavam dentro de sua antiga órbita sancionaram a escravidão”. Durante os três séculos, a partir de 1450, a escravidão foi mantida e expandida em todo o mundo; as descobertas marítimas tornaram a escravidão transoceânica, conforme denomina o autor.

A partir do século XVIII, o sistema escravista deparou-se com a criação, a noroeste da Europa, do “antiescravismo organizado”. Escreve “…., em uma segunda onda da expansão européia, que se estendeu da década de 1880 à 1930, a dominação imperial operou sob a bandeira do antiescravismo e não da escravidão”. (pág. XV).

Chama atenção o fato do autor enfatizar que o movimento antiescravista surgiu num momento em que a instituição (maldita) mais acumulava lucros e se mostrava insubstituível. A farta documentação pesquisada nos mostra que o quadro, do ponto de vista econômico, lhe era favorável. Assim, o livro desmonta a tese de que essa instituição foi a abolida por ser ineficiente. Portanto, torna-se indefensável usar esse argumento. A partir do século XV tivemos a expansão marítima liderada pelos países europeus. Dessa expansão, decorrente, sobretudo do descobrimento da América, participaram Ingleses, Portugueses, Espanhóis, Franceses, Holandeses. Todas as terras que foram desde então colonizadas pelos europeus adotaram a escravidão como forma de produção e controle social, utilizando-se da importação de seres humanos comprados ou seqüestrados junto às tribos africanas.

Entre os exemplos mobilizados para documentar a amplitude do movimento antiescravista, menciona a presença dos espanhóis da Catalunha: “Os camponeses, tanto quanto as elites, eliminaram a avaliação positiva da escravidão e basearam suas reivindicações de libertação em ensinamentos cristãos e afirmações categóricas de dignidade humana, liberdade e igualdade.”. (pág.12). Em suma, podemos dizer que o movimento caracterizava a presença do que hoje denominamos sociedade civil ou parte importante dela.

Seguindo na ilustração de como a sociedade civil desmantelou a escravidão nos dá noticia da reação do fundador do movimento batista (cristão), Andreas Karlstad, contemporâneo de Martinho Lutero. Ambos ficaram desanimados com o que viram na Itália, como diz o autor: “A reação de Karlstad ao mercado de escravos em 1516 era indicativa de distanciamento, bem como de desaprovação. Ele encontrou uma instituição que era existencialmente estranha e biblicamente familiar.”. “Nosso texto fala de escravos”, ele refletiu.

E invocou o Deuteronômio, 15:11-12, para exortar os vendedores de seres humanos a não reprimirem os escravos, a libertá-los sem terem a liberdade de reconduzi-los posteriormente à servidão. Pois senão, provocam a ira de Deus e maculam a aliança com Ele e o nome Dele…”. A escravidão transformou o Mediterrâneo em um mar de comércio de escravos. Os europeus e os muçulmanos participaram ativamente na captura e comércio de escravos desde os fins do século XV aos fins do século XVIII. Ressalte-se ainda, a complexidade das relações estabelecidas pela Inquisição. Destaca o autor que a partir do século XV até o XVIII, os europeus deslocaram aproximadamente 13 milhões de africanos escravizados através do Atlântico para a Europa, para as ilhas africanas, para a bacia do oceânico Indico e, acima de tudo, para as Américas. Compara a escravidão à perseguição aos judeus, em pleno século XX, desenvolvida na Alemanha, a partir da década de 30, do mesmo modo que com os Gulags soviéticos. Entende como uma reincidência reveladora da intolerância presente na história humana, a mesma que justifica ou tenta justificar as piores praticas com relação a outros seres humanos.

Destaca que o Brasil foi o único país a abolir a escravidão sem se socorrer da revolução. Sem embargo de que não tenha havido maior participação popular na campanha abolicionista, não se pode aqui deixar de lado a contribuição de brasileiros ilustres como Rui Barbosa para o desfecho que representou a abolição da escravatura entre nós.

Caberia ainda destacar que, durante mais de 40 anos, políticos brasileiros empreenderam diversas iniciativas para acabar com a escravidão. Queria também chamar a atenção para o significado da solução encontrada, pela cafeicultura paulista, que se revelou capaz de substituir a mão-de-obra escrava. Tenho em vista a engenhosidade do sistema de colonato, segundo o qual os emigrantes incorporados à atividade nas fazendas de café não eram simples assalariados, mas dispunham da possibilidade de dispor de cultivos próprios. Esse registro é tanto mais relevante quando, a pretexto da preferência pessoal pela pequena propriedade, muitos intelectuais menosprezaram essa solução. Perderam de vista que a sobrevivência econômica do país dependia da manutenção das posições conquistadas no mercado internacional, exigência a que não se podia atender com o modelo de colonização experimentado por famílias alemãs no Sul.

A elite política brasileira seguiu, nessa matéria a política traçada pelo Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva (1763/1838), no documento que intitulou “Representação sobre a escravatura”, e que se destinava à Assembléia Constituinte, instalada a 3 de maio de 1823: “Torno a dizer, porém que eu não desejo ver abolida de repente a escravidão, tal acontecimento traria consigo grandes males. Para emancipar escravos, sem prejuízo da sociedade, cumpre primeiro fazê-los dignos da liberdade; cumpre que sejamos forçados pela razão e pela lei a convertê-los gradualmente de vis escravos em homens livres e ativos.

Então os moradores deste Império, de cruéis que são em grande parte neste ponto, se tornarão cristãos e justos e ganharão muito, pelo andar do tempo, pondo em livre circulação cabedais mortos, que absorve o uso da escravatura; livrando as suas famílias de exemplos domésticos de corrupção e tirania, de inimigos seus e do Estado, que hoje não têm pátria e que podem vir a ser nossos irmãos e nossos compatriotas.”.

Foi deste modo, portanto que a discussão sobre a extinção da escravatura dava os primeiros passos. Seguiu a política de fazê-lo progressiva e sem solução de continuidade, a partir da experimentação das possíveis formas de promover a imigração até o encontro daquela de que resultou a preservação da cafeicultura, o regime do colonato. Precedida da Lei Eusébio de Queirós, de 4 de setembro de 1850, na qual ficou proibido o tráfico interatlântico de escravos; da Lei do Ventre Livre de 28 de setembro de 1871 na qual se considerava livre todos os filhos de mulher escrava nascidos a partir da Lei; da Lei dos Sexagenários de 28 de setembro de 1885 na qual tornou livre todos os escravos com mais de 60 anos. A escalada legislativa mostra que a batalha contra a instituição (maldita) se ateve à esfera política, prescindindo de soluções revolucionárias, aspecto a que chama a atenção o nosso autor.

Ao final dessa resenha quero destacar a conclusão a que chega o prof.. Seymour Drescher: “E a história da redução da escravidão permanece como um modelo de empreendimento comparativo para todos os que desejam ampliar o campo dos direitos humanos.”

Seymour Drescher
Seymour Drescher

Seymour Drescher é professor de História e Sociologia na Universidade de Pittsburgh (Pensilvânia, Estados Unidos) e autor de extensa bibliografia, iniciada ainda nos anos sessenta. Especialista na obra de Tocqueville, chamou a atenção para temas relevantes de que se ocupou, ofuscados pela contribuição no tocante à recuperação da idéia de democracia, com o famoso livro Democracia na América.

Fonte: FLC

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