Sidney Chalhoub estuda história da escravidão no Brasil

Professor fala sobre história, domínio e democracia, sob o prisma das maiorias

Por Tatiana Fávaro

A partir de uma convicção compartilhada pelos historiadores, de que não existe sociedade democrática sem acesso ao conhecimento, o professor titular de História do Brasil da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Sidney Chalhoub, contribui, desde que se formou em História pela Lawrence University – em Wisconsin, Estados Unidos –, em 1979, para garantir a representatividade da história dos escravos e negros no imaginário político do País.
Tido como um dos grandes pesquisadores sobre dados da história do Brasil no século XIX, Chalhoub buscou na narrativa uma forma de tornar o conhecimento histórico acessível ao cidadão educado comum. Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense e doutor em História Social do Trabalho pela Unicamp, Chalhoub lançou, entre 1986 e 2005, quatro livros individuais e outros três, coletivos. Um verdadeiro passeio pelo cotidiano dos trabalhadores, escravos, negros, e um mergulho sartreano no modo como essas maiorias enxergavam e lidavam com o que era feito de suas histórias.

 

A curiosidade pela história de seu País, nascida durante sua graduação no exterior, fez Chalhoub iniciar, na década de 1980, um estudo no Rio de Janeiro semelhante ao que Florestan Fernandes havia realizado para São Paulo, sobre a questão do negro no período posterior à abolição. A busca tomou outros rumos. As fontes de vigilância e repressão aos pobres tornaram-se preciosas e o estudo sobre as condições de moradia, trabalho, conflitos, rivalidades e mercado de trabalho posteriores à abolição resultaram em “Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque” (Brasiliense, 1986).

Era só o começo de um legado que passa pelos meandros da escravidão no Brasil, pelo uso da alforria como instrumento de controle, pelo racismo nas decisões públicas na área da saúde, por políticas de dominação e relações raciais. Em trechos da entrevista concedida aoGlobo Universidade, o professor fala sobre história, domínio e democracia, sob o prisma das maiorias.

Globo Universidade – Como a escravidão, bem como a liberdade, funcionou como instrumento de controle social no Brasil?
Sidney Chalhoub – No caso da escravidão no Brasil existe a constatação de que a possibilidade de os escravos se alforriarem, apesar de ser bastante pequena, forma um aspecto importante no controle social, caracterizado por essa estratégia dupla de uso da violência e de compensações paternalistas. Esse interesse na política de domínio na escravidão levou ao interesse, numa fórmula sartreana, de entender o que as pessoas fazem com o que fazem delas (“Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte“, Companhia das Letras, 1990). Minhas pesquisas são voltadas em geral para o espaço urbano, usando fontes típicas da história social, como fontes policiais, criminais, prisionais, de imprensa, fontes de informações sobre o cotidiano das pessoas comuns. Uma coisa surpreendente na época foi uma quantidade repetida de escravos recorrendo à polícia e à Justiça para conseguir a própria liberdade. Há um senso comum de que a escravidão é a ausência total de direitos e de possibilidades de você recorrer à Justiça para conseguir objetivos próprios. Isso é verdade, em grande medida, mas a situação é mais complexa.

GU – O interesse em como ocorre o controle dos trabalhadores o levou em seguida à questão das políticas públicas…
SC – No caso do Rio, no século XIX, havia uma grande quantidade de escravos que morava em cortiços. Nesse estudo eu notei que havia denúncias muito frequentes contra os cortiços, como forma de habitação insalubre, que causava epidemias na cidade. Em
Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial” (Companhia das Letras, 1996), tentei entender quais eram os pressupostos que baseavam as decisões dos governos, no caso do período imperial e do início da República, sobre que epidemias priorizar e que estratégias utilizar nas políticas de saúde pública. O trabalho argumenta, com descobertas empíricas, que há uma preocupação muito grande, desproporcional, com a febre amarela, uma doença que, por motivos que até hoje a medicina não explica direito, era muito mais mortal para imigrantes europeus, brancos. Então, as políticas de saúde pública priorizavam as doenças que podiam tornar o ambiente mais propício à vida de imigrantes e ao embranquecimento da população e enfatizavam menos as doenças mais letais para a população negra, caso muito evidente da tuberculose e do cólera. Isso tem a ver com uma dificuldade que a sociedade brasileira tem de lidar com situações trágicas para a população negra. Hoje em dia, a insensibilidade em relação à violência urbana e a indiferença em relação às escolas públicas têm a ver com a dificuldade de encarar de frente a cor dos pobres no Brasil.

GU – Em seu livro Machado de Assis, historiador (Companhia das Letras, 2003), o senhor usou a literatura para tornar palatável a descrição e discussão sobre a sociedade brasileira do século XIX, e sua lógica e funcionamento. Como o senhor transportou essa preocupação com as políticas de dominação e as políticas públicas para o estudo sobre Machado de Assis?
SC – Eu me interessei em retomar Machado porque alguns textos dele falam sobre escravidão, sobre políticas de domínio no século XIX, e comecei a dar aulas utilizando a literatura de Machado para discutir a sociedade brasileira naquela época. Machado se tornou chefe de uma seção do Ministério da Agricultura, nos anos 1870. Na verdade, os dois assuntos da seção em que ele trabalhava eram talvez os mais espinhosos no século XIX: escravidão e política fundiária. E o que dá para ver na análise desses papéis é um Machado sempre interessado em alargar a interpretação das leis, em benefício dos escravos, no período de crise até a abolição da escravidão. Nesse sentido, a experiência foi bem sucedida. No caso da política fundiária, há várias tentativas, como técnico, de buscar propostas e revisões da legislação de modo a restringir o tamanho dos lotes de terra, mas nesse caso a impressão que fica é a de derrota.

GU – O senhor é tido como autor de grandes contribuições no fornecimento de informações sobre o século XIX. Como o senhor avalia a produção desse material e no que ele pode contribuir em estudos que derivem desse trabalho?
SC – Meu interesse pela história dos negros no período pós-abolição fez com que eu me voltasse em seguida para o período anterior. Em geral, os historiadores caminham para trás e, até 20 ou 30 anos atrás, havia o mito na historiografia brasileira de que não havia fontes para estudar a escravidão, pois logo no início do período republicano existiu uma iniciativa do Ministério da Fazenda – Ruy Barbosa era ministro na época – de mandar queimar fontes sobre escravidão. Essas matrículas de escravos foram destruídas com o intuito de impedir ações judiciais dos ex-senhores por indenização, o que levaria o Estado à falência. A partir dos anos 1970, os historiadores passam a buscar fontes que dessem informações não só sobre os barões, os viscondes, o político tal, mas sobre seus dependentes. E isso nos levou a arquivos antes muito pouco trabalhados, como os cartoriais e criminais, que estavam preservados. Uma série de coisas das quais a gente não tinha notícia passou a ser investigada de maneira sistemática. Isso é muito importante para pensar em democracia.

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GU – Isso reforça a importância da preservação das fontes, de arquivos, para uma reconstituição da história atual no futuro?
SC – Sim. Agora mesmo, no Brasil, há uma questão importantíssima. Processos trabalhistas dos anos 1940 em diante, em diversos locais do País, já foram destruídos porque os juízes podem ordenar a destruição de processos findos depois de cinco anos. Podem não se dar conta do valor que isso tem, mas daqui a cem anos essas fontes vão ser fundamentais para entender como os trabalhadores vivem hoje em dia e podem ajudar uma sociedade a se sensibilizar quanto à importância de ter mecanismos de promoção de justiça social.

 

Fonte: Globo 

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