Sobre feminismos, empatia, sororidade e respeito ao outro

No dia 12 de junho, autora do blog Cientista que virou mãe, ser mãe com consciência publicou o texto “’Você é gentil. Você é inteligente. Você é importante’ – O poder do discurso de todos nós” esse texto se baseia em uma pequena fala do filme Histórias cruzadas (The help, 2011). Esse filme é excelente por mostrar a segregação racial dos Estados Unidos na década de 1960, o papel da mulher negra na economia da comunidade afro-americana, o modo como os feminismos não eram democráticos, a complexa naturalização de um grupo oprimido se tornar opressor, e várias outras possibilidades, inclusive negativas como a protagonista de uma história negra ser uma mulher branca. Ironicamente, o post que fala sobre o poder do discurso de todos nós, parece não se atentar para o fato de que produzir um discurso é silenciar muitos outros e a autora, em seu trabalho pontual, ignora outras possibilidades interpretativas, e se volta apenas para o trecho no qual as sentenças “Você é gentil. Você é inteligente. Você é importante” são proferidas:

Por Adélia Mathias, no Para Beatriz 

Este trecho mostra a interação entre a garotinha Mae e sua “mãe de criação”, Aibileen, a empregada negra da família. Mae é bastante negligenciada por sua mãe, sendo criada com todo amor, carinho e respeito por Aibileen no tão problemático período de explosão da luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, que culminou com a Marcha sobre Washington, liderada por Marthin Luther King.

Entendo que é bastante problemático chamar de “mãe de criação” uma empregada negra doméstica; no filme a reprodução do estereótipo da mãe negra (ex. Tia Nastácia) – uma função exercida por mulheres negras alforriadas e/ou descendentes de um passado de escravização, que continuaram subjugadas, porque trabalhavam nas casas das famílias brancas – empodera crianças destas famílias enquanto o direito de fazer isso com suas/seus próprias/os filhas/os lhes era tirado porque nessa negociação de identidades, as mulheres negras acumulam identidades historicamente oprimidas de gênero, raça e classe social. Também vejo com estranheza um blog sobre maternidade se abster de algo essencial sobre esse trecho: a mãe da garotinha (Hilly Holbrook) e a própria Aibileen (Viola Davis) consideram a menina fisicamente feia para os padrões daquela sociedade, entretanto, enquanto a progenitora rejeita e maltrata sua própria filha, à empregada negra cabe o trabalho de acalentar essa criança. Abrir mão da abordagem desse quadro complexo para falar somente de como empoderar uma criança, de modo general como se elas não tivessem especificidades, foi deixar de tratar um bom tema sobre a maternidade. A personagem Aibileen era obrigada a empoderar a criança branca? Não! Mas provavelmente sentiu empatia por aquela criança que teve afetos negados por sua própria família apenas por ser menina e desprovida do ideal de beleza. Outra questão complexa, que não dá para analisar agora, é a de trânsito, experienciada pelas empregadas domésticas e babás que ora são parte da família, ora são meras prestadoras de serviço, num processo identitário bem ambíguo que certamente as fragiliza enquanto sujeitos.

Voltando ao texto do blog, percebemos nesse pequeno trecho, utilizado como exemplo, que a autora não está alheia às questões raciais abordadas pelo filme, me parece que ela opta por se esquivar da questão pontual que é a intersecção entre raça e gênero. Convenhamos, ela não é obrigada a falar sobre todas as possibilidades do filme, digo isso porque acredito que somos pessoas limitadas pelo nosso local de fala e porque um post não dá conta da complexidade dos assuntos que nos propomos a tratar, entretanto, num filme como esse, não dá para simplesmente para se furtar de toda uma história de sobreposição de opressões, não dá para negligenciar o contexto no qual a empregada doméstica negra empodera a filha de sua patroa branca ao invés de fazer isso com seu filho e muito menos dizer que o comentário/crítica de uma leitora mulher negra sobre o post não é relevante o bastante para que a autora repense o que foi silenciado no post inicial (ler comentários do blog).

Uma nota foi feita pela autora depois que outras mulheres negras criticaram o texto, ela se propôs a aceitar a colaboração de uma mulher negra sobre esse tema e tudo o que não foi abordado inicialmente. Atitude sensata e uma abertura ao diálogo, o que em minha opinião não deve ser superestimada, embora deva, sim, ser vista com bons olhos. O discurso de que uma mulher branca não sabe como o racismo opera dentro da comunidade de mulheres não me parece um discurso honesto, mas uma distorção de teorias que defendem que não se pode falar pelo outro; uma mulher branca pode falar sobre racismo, sim, o que ela não pode é deslegitimar a fala das mulheres negras ou achar que sabe mais do que estas, o que infelizmente acontece em alguns dos comentários. Opressões não são feitas apenas por oprimidos/as, fazem parte de uma dinâmica na qual opressores/as trabalham diuturnamente.

Se as feministas francesas travaram na aporia do essencialismo, a negação de um movimento racialmente limitado e o sentimento de culpa de feministas brancas que reconheceram seu papel na opressão racial entre mulheres – levantadas por personalidades, ativistas, pensadoras, teóricas e/ou pesquisadoras negras que vão de Sojourner Truth, no séc. XIX, até, contemporaneamente, Sueli Carneiro – também travou o desenvolvimento dos feminismos nas Américas. Foi só ao reconhecerem e respeitarem a pluralidade das mulheres, de suas lutas e anseios, e consequentemente a pluralidade dos feminismos, que o movimento conseguiu se articular novamente e se tornar a potência de modificação social que hoje é. Entretanto, tenho notado o quanto esse reconhecimento tem se tornado um discurso vazio e quando mulheres negras denunciam esse esvaziamento de sentido, muitas vezes são taxadas de radicais, no sentido conotativo e pejorativo da palavra, ou de constantemente insatisfeitas (e quem não o é?!).

Como estudante/pesquisadora de letras, de discurso e de literatura, acho o post da Cientista que virou mãe um caso emblemático do quanto nossa sororidade e empatia podem ser direcionadas, o quanto é importante assumirmos que nossas construções simbólicas são práticas de organização do mundo e o mais importante, o quanto algumas mulheres brancas ainda não pensam nas mulheres negras com respeito e dignidade, precisam, ainda, serem confrontadas em seus preconceitos raciais naturalizados para que se disponham a entender que o sujeito mulher negra, o outro dessa relação, tem voz, direitos e sabe muito bem sobre o que diz.

Não conheço a autora, não a estou julgando como pessoa, entretanto acredito que textos como esse colaboram para invisibilização da situação histórica de mulheres negras, da ocupação física e simbólica de seus corpos, de seus atos de resistência e de suas experiências e opiniões.

Num blog que propõe maternidade consciente e num post que fala sobre o poder do discurso, a naturalização de opressões, o inconscientemente praticado e o discursivamente silenciado saltaram aos meus olhos de leitora e se mostraram lições muito mais importantes do que o que está explicitamente dito.

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Adélia Mathias faz doutorado em literatura brasileira, com ênfase na literatura afro brasileira contemporânea escrita por mulheres. Mulher negra, filha de mãe solteira, feminista e pesquisadora de questões de raça e gênero.

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