Sobre a fragmentação da memória na infância

Quando você é criança a construção da memória não é linear como muitas vezes supomos.

Enviado por  LUIZ ROBERTO LIMA via Guest Post para o Portal Geledés

Mas quando se é criado em um orfanato a sua memória é uma colcha de retalhos. Você não se lembra da sua festa de aniversário, pois comemorava-se de todos ao mesmo tempo. Você não tem um brinquedo especial, pois tudo é de todos. As suas roupas que aquele tia -, deu especialmente pra você, no outro dia estará no corpo do outro amigo. Você vai chorar e terá que aprender a lidar com isso.

Você terá que entender que a tia Ana, talvez goste mais do Pedro do que de você. De que algumas visitas vão levar pra passear sempre as mesmas crianças, mesmo que no banco do carro, caiba também você.
Você correrá até o fim da grade olhando o carro sumir no horizonte e continuar gritando tchau tia, como se ela ainda pudesse ouvir. Sem saber quando ela vai voltar e, torcendo pra que não demore, pois você vai morrer de saudades. E aí você a esquece.

Você dá graças a Deus que chegou alguém para levar doações no momento em que você estava sendo surrado. Você já aprendeu a engolir o choro e fazer de conta que esta tudo bem. Porque depois pode ser pior.

E que algumas vezes aparecerá anjos que te salvam sem saber.

Tudo são só fragmentos. Só pedaços soltos que não se encaixam na sua memória afetiva.

Você tenta entender porque a maioria das crianças são adotadas e arrumam uma família e você não.

E mais tarde descobrirá que a preferencia na adoção são as crianças brancas.
Você não entende porque os castigos para travessuras é ficar sem comer e, você terá que recorrer novamente a pasta de dente.

Você se sente fragilizado, quando um adulto te coloca pra bater no seu outro amigo e covardemente te faz esfregar o cocô que ele fez na sua própria cara. E você não consegue se perdoar por isso, mesmo sabendo que você não tem o controle da situação.

Você percebe a colcha de retalhos quando você, com nove, dez anos, ainda faz xixi na cama – e tem que jogar o lençol fora e virar o colchão do outro lado escondido. Porque se descobrem vão esfregar novamente no seu rosto e você passara o dia pelado, com as outras crianças rindo, inclusive uma menina.

Você bem novo tem que lidar com as exaustivas limpeza até altas horas da noite as vezes madrugadas, mesmo quase dormindo em cima do esfregão.

É difícil na tenra infância entender porque aquela tia que cuidava de você de um dia para o outro não vem mais.

E se pergunta: Será que foi a mal criação que eu fiz; foi porque a chamei de boba e disse que não gostava mais dela. E você pede desculpas pra Deus, e ele não te atende.

Simplesmente você não consegue compreender que ali é o emprego dela, que é apenas um trabalho e, que um dia, ela vai tirar férias ou não vai voltar nunca mais.

Meu amigo chamava Rubens, o qual me obrigaram a esfregar fezes em seu rosto. Eu pude pedir desculpa, ele nem ligou, só disse que estava feliz por amá-lo, mesmo ele sendo quem ele era.
Ele havia tornado-se assaltante, e morreu assassinado um tempo depois.

Eu sou isso fragmentos e in-memoria.
Apesar de tudo nós encontrávamos forças pra sorrir.

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