Sobre o natimorto Comitê de Gênero

Há duas semanas, o Ministério da Educação (MEC), por meio da Portaria nº 916, de 9 de setembro de 2015, instituiu o Comitê de Gênero, de caráter consultivo, que contaria com representantes das secretarias do MEC e de outros órgãos para auxiliar no desenvolvimento de políticas públicas que promovessem os direitos relacionados à questão de gênero, assim como o enfrentamento das diversas formas de preconceito, discriminação e violência. O que parecia ser um aceno progressista, logo se mostrou uma miragem. Trata-se de mais uma prova de que as disputas em torno de gênero continuam vivíssimas.

Por Adriano Senkevics, do Ensaios de Gênero

Desde que a bancada fundamentalista começou a ganhar mais espaço no Congresso Nacional, inúmeros retrocessos têm sido postos em cena. Entre eles, vale destacar o Estatuto da Família, a tentativa de proibir o aborto nos casos de estupro, a derrota do programa Brasil sem Homofobia e o arquivamento do PLC 122. Mais recentemente, a retirado do termo “gênero” do Plano Nacional da Educação e, em seguida, de diversos planos estaduais e municipais, deixou claro que a disputa não se dava somente em torno de certo número de bandeiras, como também de conceitos.

Criminalizar gênero tornou-se central para desarticular uma oposição progressista em favor dos movimentos feminista e LGBT.

Nesse contexto, árduo que só, o MEC divulgou, no mês de agosto, uma nota técnica relativamente ousada em defesa dos conceitos de gênero e orientação sexual para as políticas educacionais e o próprio processo pedagógico (Nota Técnica nº 24/2015), entendendo que tal abordagem é crucial para a construção de escolas efetivamente democráticas, capazes de combater as desigualdades e reconhecer e valorizar as diferenças. Como que dando continuidade a esse posicionamento, o mesmo Ministério resolveu instituir, dias depois, o referido Comitê de Gênero.

Porém, de acordo com Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, pressões oriundas da Frente Parlamentar Evangélica sobre o Palácio do Planalto fizeram com que o governo cedesse. Mesmo antes do Comitê de Gênero ter saído do papel, ele já foi intensamente modificado – ou melhor, fragilizado – pela Portaria nº 949, de 21 de setembro de 2015, que o transformou em um Comitê de Combate à Discriminação. Trata-se de um comitê genérico… sem gênero!

Renato Janine Ribeiro, ministro da educação, teve que vir a público explicar o porquê do recuo na criação do Comitê de Gênero.
Renato Janine Ribeiro, ministro da educação, teve que vir a público explicar o porquê do recuo na criação do Comitê de Gênero.

Na fala do ministro Renato Janine Ribeiro, o qual teve que escavar uma boa desculpa para justificar o injustificável, o novo Comitê é mais abrangente e elimina o viés de colocar gênero em primeiro plano em detrimento de outros “pontos essenciais”. Num mundo ideal, seria possível concordar com o ministro.Todavia, na atual conjuntura, em que a queda de braço em torno da questão de gênero é bastante intensa, não é possível considerar um avanço aquilo que foi, de fato, um retrocesso. Gênero caiu fora de tal comitê porque ele soa incômodo aos ouvidos dos fundamentalistas evangélicos.

A nós, militantes e estudiosos do campo de gênero, não é novidade alguma o recuo do governo petista. Em 2011, ao criticar o programa Brasil sem Homofobia – pejorativamente chamado de “kit gay” por políticos de extrema-direita – com o argumento de que não se deve fazer “propaganda de opção sexual”, o que a presidenta Dilma fez foi deslegitimar todo um conjunto de ações que estavam sendo pensadas e executadas dentro da temática. Pagamos até hoje o preço desse recuo. Assistimos a um processo gradual de enfraquecimento dos movimentos feminista e LGBT e, em paralelo, de crescimento dos setores conservadores. Conforme afirmei em outro texto, gênero é essencial para o Estado brasileiro, ainda que pela sua derrocada.

A presidenta Dilma Rousseff em entrevista de 2011, quando ela se posicionou contra a “propaganda de opções sexuais”: momento que marca sua ruptura com a questão de gênero e sexualidade.
A presidenta Dilma Rousseff em entrevista de 2011, quando ela se posicionou contra a “propaganda de opções sexuais”: momento que marca sua ruptura com a questão de gênero e sexualidade.

Agora, o ministro Janine Ribeiro parece ter repetido alguns desses tropeços. Ao negar que o MEC esteja promulgando uma “ideologia de gênero” – um debate inócuo, pois a noção de “ideologia de gênero” é absurda por si só – o ministro chegou a afirmar que “há muitas formas de as pessoas se relacionarem com o próprio corpo, e ninguém pode fazer propaganda para que a pessoa tenha uma linha”. Novamente, o argumento da “propaganda” sendo mobilizado para justificar retrocessos. Ninguém, em sã consciência, poderia acusar que o Comitê de Gênero faria “propaganda” de alguma coisa. Resta saber, no entanto, qual é a disposição do governo em combater a propaganda sistemática em torno da heteronormatividade que tanto estimula violências e preconceitos. Volto a me perguntar: é uma reprise de 2011?

Para concluir, o natimorto Comitê de Gênero ilustra que, para além de uma reação extremamente conservadora do que há de pior na política brasileira, estamos diante de um governo capaz de entregar tudo que tem para permanecer um pouco mais no poder. Isso significa, na maior parte das vezes, rifar os direitos sociais e trabalhistas e recuar em todas as possibilidades de transformação. Não há mais projeto que se sustente. Não há sequer governo. O que restará para a sociedade quando esse pesadelo acabar?

+ sobre o tema

Esporte: lugar de quem?

Em primeiro lugar, acredito que faz-se necessária uma apresentação...

As mães das propagandas de margarina são felizes?

Só há dois requisitos básicos para dominar toda a...

Qual o melhor lugar para ser mulher no mundo?

Um estudo anual divulgado nesta sexta-feira pelo Fórum Econômico...

para lembrar

Gordofobia: um assunto sério

O policiamento dos corpos e a imposição de um...

Diferentemente dos homens, mulheres vão para corredor da morte por ‘crimes’ sexuais

Além das execuções oficiais, mulheres são mais suscetíveis aos...

Por que a Índia trata tão mal suas mulheres?

Muitos a chamaram de "coração valente" ou "filha da...

Enfrentamento ao tráfico de mulheres será uma das prioridades da Secretaria de Políticas para Mulheres

Brasília - O enfrentamento ao tráfico de mulheres, principalmente...
spot_imgspot_img

O atraso do atraso

A semana apenas começava, quando a boa-nova vinda do outro lado do Atlântico se espalhou. A França, em votação maiúscula no Parlamento (780 votos em...

Homens ganhavam, em 2021, 16,3% a mais que mulheres, diz pesquisa

Os homens eram maioria entre os empregados por empresas e também tinham uma média salarial 16,3% maior que as mulheres em 2021, indica a...

Escolhas desiguais e o papel dos modelos sociais

Modelos femininos em áreas dominadas por homens afetam as escolhas das mulheres? Um estudo realizado em uma universidade americana procurou fornecer suporte empírico para...
-+=