Sobre parteiras, bruxas e hereges

Mariana queria fugir do destino de quase todas as suas contemporâneas. Não queria uma cesárea marcada para receber sua filha. Sabia da importância do trabalho de parto e do parto para a mãe e o bebê. Sabia dos riscos das cirurgias e queria evitar a cesariana se fosse possível. Era enfermeira obstetra, professora universitária e uma grande defensora da humanização do nascimento. Gozava de saúde perfeita e sonhava com um parto natural e tranquilo em sua casa, acompanhada das amigas enfermeiras com quem trabalhava e atuava.

por Ana Cristina Duarte Do Lugar de Mulher

Começou a sentir algumas contrações leves e estava feliz e excitada com a chegada do grande momento. Ao longo de dois dias as contrações começaram a ganhar algum ritmo, foram ficando aos poucos mais intensas e demandavam mais atenção, tal qual ela sempre ensinara às suas gestantes. Como viu acontecer inúmeras vezes em sua função de enfermeira obstetra, teve tempo de se alimentar, dormir, caminhar e com seu companheiro admirar a força de seu corpo e da natureza. Sua doula visitou-a, ofereceu palavras doces de encorajamento, passaram tempo juntas conversando. À tarde de sexta aproveitaram o clima ameno para um passeio no bosque, fotos, risos e expectativas. A qualquer momento tudo poderia mudar, ela entraria em trabalho de parto e finalmente conheceria sua filha.

Quando ela finalmente entrou em trabalho de parto ativo na calada da madrugada de sábado, sua equipe de enfermeiras e doula chegou e começou a se revezar nos cuidados. Os batimentos cardíacos da bebê estavam ótimos durante todo o tempo e não havia pressa. Ao final do dia ela estava cansada e quis ajuda. Foi ao hospital em busca de alívio para a dor e o cansaço. Chegou bem com seu companheiro, os batimentos cardíacos da bebê perfeitos, mas não conseguiu a ajuda que desejava. Não havia a possibilidade, como para a maioria das brasileiras, de alívio para a dor.

Naquele momento da noite suas opções seriam continuar sem medicamentos ou aceitar uma cesariana. Ela optou pela cirurgia. Três horas após chegar ao hospital foi operada, sua filha nasceu bem, a cirurgia terminou bem, ela amamentou na sala de parto e com a filha no colo foi de maca para o quarto. Durante a madrugada algo aconteceu. Ela passou mal, entrou em choque e após algumas horas voltou a ser operada. Foi para a UTI, foi transferida para outro hospital e após 11 dias veio a falecer.

Imediatamente sai a primeira notícia sensacionalista no portal G1 com uma série de mentiras que iam desde a idade da vítima até a causa da morte. Finalmente uma notícia que pudesse fazer cortina de fumaça sobre o grande escândalo do mês de julho: a falência estrutural da saúde privada na atenção ao parto.

Durante mais de quarenta anos a atenção ao parto na saúde privada brasileira operou sem qualquer tipo de controle, gerando uma taxa de cesarianas próxima de 90%. Um escândalo internacional onde os atores principais são médicos obstetras que sob diversas alegações não fazem outra coisa além de cesarianas marcadas com antecedência cada vez maior, gerando índices de prematuridade maior no setor privado do que no setor público.

Com a decisão da ANS de liberar ao público as taxas de cesariana de cada médico, abriu-se um campo de batalha no terreno do ativismo. De um lado os médicos abraçados às suas perigosas práticas 100% cirúrgicas e de outro lado as ativistas pedindo mudanças urgentes. As mudanças significam controle no número de cesarianas e transparência. E em última instância a diminuição dos lucros.

E nesse cenário de guerra dentro da grande igreja que é a obstetrícia convencional e seus templos faraônicos que são os hospitais/maternidades privados, e seus diligentes sacerdotes médicos, o cúmulo da heresia: uma parteira desejar ter um parto fora do templo, digo, do hospital. A solução: queimar a bruxa parteira na fogueira da mídia e ensinar uma lição às ativistas.

Um exemplo menos dramático do movimento de repressão foi o descredenciamento recente de duas obstetrizes do quadro de credenciados de um grande hospital em São Paulo, com quase 90% de taxa de cesarianas, porque ousaram entrar juntas no atendimento a um parto natural. Duas obstetrizes é algo proibido oralmente dentro da instituição, bem como duas doulas. Para os médicos não há limites. A mensagem do hospital foi clara para todo o movimento de humanização e para os médicos que ainda tentam trabalhar em prol do parto natural dentro dessas difíceis condições: vejam o que fazemos com quem nos desafia dentro do nosso templo.

Expulsão, excomunhão, exposição na mídia, mentiras e destruição da honra: isso é o que acontecerá a cada uma de vocês, ativistas, que ousarem ir contra a nossa igreja, nossos templos e nossos sacerdotes de jaleco. Não nos desafiem. Não nos enfrentem. Não tentem nos controlar. Essa é a mensagem que recebemos nestes dias sombrios e entrevados. Um tipo de idade média na era da energia elétrica e da comunicação eletrônica.

Onde há trevas, há um núcleo de luz. Ao longo do primeiro dia após a matéria repleta de invenções do G1, o Estadão, segundo maior jornal do Estado de São Paulo, publica duas matérias: A primeira sensacionalista, onde o jornalista copia sem pudor a notícia original do G1, com as mesmas mentiras, sem qualquer esforço de pesquisa, sendo imediatamente compartilhada por milhares de médicos anti-ativistas com comentários que demonstravam a desaprovação pela loucura do parto fora do hospital e concluído que Mariana teria morrido de parto em casa. A segunda baseada em nota informativa da Ufscar, onde a jornalista do Estadão explica o que de fato parece ter ocorrido com Mariana. Aos poucos a segunda notícia sobe em compartilhamentos e chega a mais de 55 mil replicações, passando rapidamente os números alcançados pela notícia tendenciosa e repleta de inverdades do colega, até que essa primeira versão copiada do G1 é tirada definitivamente do ar.

O episódio de Mariana nos ensinou duras lições. Aprendemos que a igreja da obstetrícia brasileira não vai deixar barato o ativismo pela melhoria da atenção obstétrica. Vai arrastar mulheres, bebês, pais e ativistas pelo concreto duro da execração pública ou pela lama da difamação pura e simples. Aprendemos que uma parte dos sacerdotes é capaz de todo tipo de artimanha para conseguir a volta do descontrole social, proferindo frases tão tenebrosas como “eu acho que isso é a seleção natural”. Mas também aprendemos que a verdade, cedo ou tarde, prevalecerá.

Resta a nós, ativistas da luta contra a violência obstétrica e contra o controle e manipulação do corpo das mulheres, não esmorecer. A roda da fortuna é de fato veloz e pesada, difícil de ser controlada. Mas somos muitas, somos fortes e para cada nome atirado à lama sem piedade, mais energia teremos para combater os desmandos da mídia sensacionalista e misógina, bem como dos representantes desesperados dessa medicina obstétrica que está fadada ao fim.

Que Mariana seja sempre lembrada pelo que ela sempre lutou: uma assistência ao parto e nascimento suave, delicada, baseada em evidências, na empatia e no amor.

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