Sobre ser mulher, negra e a importância de formular política

Há alguns dias, fui convidada por algumas companheiras a compor uma mesa intitulada: “Onde estão as mulheres negras na universidade?”. Com algumas ideias na cabeça ligadas à minha experiência na Universidade de São Paulo (USP), uma das mais elitistas do país e que até hoje não tem cotas, comecei a fazer um levantamento de dados para serem expostos. Ainda que eu soubesse que a situação era ruim, nada foi tão desesperador como ver tais dados em números. Escrevo este texto para compartilhar com vocês, não só pela proximidade do 20 de novembro, mas para lembrar o quanto a nossa resistência, enquanto mulheres negras, se dá diariamente, em todos os lugares em que estamos.

 

Por *Fernanda Kalianny, no Marcha Mulheres

 

Pensando em termos raça, uma das perguntas que respondemos obrigatoriamente quando nos inscrevemos no vestibular da USP e cuja resposta consta no site da Fuvest – responsável pelas provas do vestibular – é se nos declaramos “pardos”, “pretos”, “brancos”, “amarelos” ou “indígenas”. Levando em consideração os dados que já constavam no site da instituição, selecionei alguns que pudessem ilustrar o perfil de alunos na universidade. Para começar, já na inscrição do vestibular há um enorme contraste: 73% das pessoas que se inscreveram se declaram brancas; 4,5 pretas; 17,2% pardas; 5% amarelas e 0,3% indígenas. Daqueles que se matricularam: 76% são brancos; 3,1% pretos; 13,2% pardos; 7% amarelos e 0% indígenas. Nos cursos mais elitizados, como medicina, pardos e pretos somam apenas 10,4%. É preciso olhar para esse monte de números e lembrar que São Paulo tem uma população na qual 12,5 milhões de pessoas se declaram pretas ou pardas, isto é, 31% dos habitantes do Estado.

Diante desses números, podemos nos questionar: quantos são os/as negros/as que encontramos nas salas de aula pela universidade ou no nosso local de trabalho em cargos de chefia? Por outro lado, quantos trabalhadoras/es negras/os estão na cantina das universidades, na limpeza ou no trabalho maçante e árduo da xerox? Quantos são reitoras/es de universidades ou nossas/os professoras/es? A lista de perguntas poderia se estender, tornar-se ainda maior, e assim pode ser porque é fácil desnudar o racismo. É fácil pensar em quem são as pessoas que ocupam postos de poder, quais são os rostos que nos vem à mente quando pensamos naqueles que nos servem ou, ao contrário, quando pensamos em “intelectuais”.

Um dos primeiros pontos a serem colocados quando fazemos esse debate é sobre o conhecimento, afinal por que é tão importante termos mais negras/os sentados nas cadeiras da universidade, dando aula e fazendo pesquisa? O conhecimento, na sociedade em que vivemos, é sinônimo de poder. Se existem poucas/os negras/os em universidades renomadas, estamos diante de escolhas que são feitas e de um projeto planejado e executado com eficiência. Afinal, especificamente no caso de nós mulheres negras, quais são os impulsos que recebemos para adentrar à universidade? Além disso, para sermos pesquisadoras, escrevermos e darmos voz aos nossos pensamentos, ideias e experiências? Muito pouco ou quase nada.

Soma-se a isso o fato de levarmos bastante tempo para conhecermos teóricas negras que nos sirvam de exemplo e nos motivem. Quantos anos levamos para conhecer Bell Hooks, Audre Lorde ou Patricia Hill Collins? E o quanto conhecê-las muda a forma que enxergávamos a produção de conhecimento? Quando as primeiras universidades passam a ser implantadas no Brasil, isso ocorre sob o signo da brancura. A tão aclamada ciência, na verdade, é confinada a uma única experiência de raça e de etnia. Essa estrutura inicial continua sendo reproduzida, o que faz com que o fato de nós, pessoas negras, também produzimos, também falamos e temos ideias, seja entendido como uma afronta de forma mais ou menos explícita.

O que se produz dentro da universidade passa, portanto, por um processo de racialização, pois, assim como quase nunca é questionada a forma com que os homens agem e são as mulheres estudadas e colocadas como “histéricas” ou malucas, o branco, a brancura também não é estudada. Estuda-se o negro, a negra, o comportamento das mulheres, mas pouco se pensa sobre aqueles que são educados para serem dominantes em nossa sociedade: o homem, branco e heterossexual. Mas é bom lembrarmos que não há como existir neutralidade ou imparcialidade em qualquer lugar que seja segregado racialmente.

Se pensarmos nas mulheres negras, mas também nas mulheres de baixa renda como um todo, nós somos educadas para cuidar das pessoas, sermos mães, companheiras, para pensarmos no bem de todos a nossa volta, antes de pensarmos em nós mesmas. No caso das mulheres negras, há ainda um agravante, pois a nossa imagem é atrelada a dois diferentes estereótipos: 1) mulher lasciva, hiper-sexualizada; 2) mãe preta, que cuida das crianças brancas, do marido e dos filhos. Ambos os estereótipos, nos tratam como se estivéssemos mais próximas da natureza e, portanto, do que é ligado aos animais e ao menos evoluído. É como se nós, mulheres negras, não precisássemos usar a nossa mente para desenvolver os papéis que nos são dedicados.

Em contraste com esses estereótipos, quando nos propomos a desenvolver trabalhos ligados ao pensamento, à escrita, ao domínio da nossa mente e intelectualidade, causamos estranhamento e muitas vezes somos desestimuladas. Seja porque alguns não entendem a importância de nós negras escrevermos e colocarmos isso em público, pois vêem esse tipo de trabalho como menos revolucionário ou importante na luta dos movimentos sociais. Ou pelos próprios desafios que encontramos na universidade, quando enfrentamos as dificuldades financeiras, mas também o racismo explícito que pode ser notado nos olhares que recebemos, a mão erguida para fazer um comentário que o professor sempre ignora ou nas perguntas relacionadas a sermos funcionárias do local e não alunas.

Escrevi os longos parágrafos que seguem por diferentes motivos: um deles é demonstrar para outras companheiras negras que estão passando por algo parecido que elas não estão sozinhas; o segundo, é para incentivar que outras companheiras negras aceitem o desafio de colocarem cada vez mais o que pensam no papel, na internet, onde quer que seja. Enquanto mulher negra, jovem, nordestina e bissexual, quero ainda ressaltar qual é a importância de escrevermos. Eu diria que escrever é parte importante do empoderamento.

Nos empodera porque conseguimos desabafar, porque ganhamos autonomia para botar nossas ideias e, por fim, porque aumenta a nossa segurança de falar em público. Além disso, ainda que seja importante estarmos nos movimentos sociais diversos, lutarmos, fazermos fala e estarmos na linha de frente, é preciso que nós também formulemos. E as formulações muitas vezes – por uma questão de classe, pois as pessoas com melhores condições financeiras costumam ter mais tempo para pensar e formular – estão sendo feitas por nossas companheiras brancas, que por mais que tentem jamais entenderão o que passamos diariamente no que diz respeito ao racismo.

Formulemos política, companheiras negras! Pois a formulação também é um espaço de poder, assim como é o conhecimento. E não nos cabe apenas sermos representadas, é preciso que nós mesmas nos representemos. Avante!

Por um feminismo anti-racista!
Pelo enegrecimento do feminismo!
Marchemos até que todas sejamos livres!

*Fernanda Kalianny é cientista social, mestranda em antropologia e militante da Marcha Mundial das Mulheres de São Paulo.

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